SELVAGEM?

O disco “Selvagem?”, d’Os Paralamas do Sucesso, que completou em 2011 seus 25 anos, não é um disco qualquer. Não pode ser colocado no balaio dos grandes sucessos do Pop Rock brasileiro, tomando-se por base apenas seu marco comercial. Ele vai além do sucesso de vendagem, afinal vendeu muito – mesmo oferecendo algo novo, diferente. Não era o mais do mesmo, a reprodução da fórmula de sucesso fazendo o que se espera: sucesso. Era algo novo, era uma aposta, era um risco fazendo o que poderia não ter feito: sucesso.

Em “Cinema Mudo”, de 1983, e “O Passo do Lui”, de 1984, Herbert Vianna (vocal e guitarra), Bi Ribeiro (baixo) e João Barone (bateria), muito jovens, com pouco mais de 20 anos, já mostravam todo seu potencial, tanto no que se refere a fazer legítimos hinos pop – como “Vital e sua moto”, “O que eu não disse”, “Meu Erro” e “Romance Ideal” – quanto nas referências a ritmos jamaicanos – vide a própria “Cinema Mudo”, “Ska”, “Óculos” e “Assaltaram a gramática” –, o que mostrava uma peculiaridade muito especial nos três garotos. Embora o grupo de canções que fugiam da lógica pop new wave fosse, até o momento, bem menor, já dava ares das novas perspectivas do grupo. Mas por que mudar, se estava tudo indo tão bem? Aí entra em cena, em 1986, o disco “Selvagem?”, reflexo direto dos meninos que começaram a crescer. Falando especialmente de Herbert Vianna, seu irmão, o antropólogo Hermano Vianna, afirma no documentário “Herbert de perto” (2006) que esse crescimento foi em público, nos palcos, nas rádios, na TV e, obviamente, nos discos.

O ano de 1985 foi especialmente agitado para o Brasil. É certo que os anos anteriores, os de chumbo, implantados pela ditadura civil-militar (1964 – 1985), não foram de maneira alguma tempos de férias, tranquilos. Mas em 1985, com o fim institucional da ditadura e a abertura política “lenta, gradual e segura”, os ares eram de novidade, de esperança, de mudança. Para os Paralamas, era um ano igualmente movimentado. Logo em janeiro, se apresentaram na primeira edição do Rock in Rio, participação que foi fruto do sucesso dos dois primeiros discos. O show foi muito bem recebido pela crítica e pelos fãs. Nos meses que se seguiriam, Herbert, Bi e João sairiam pelo Brasil se apresentando até duas vezes por noite. Os ensaios ainda eram na casa da avó de Bi, Vovó Ondina, que inclusive foi homenageada no primeiro disco do trio com a música “Vovó Ondina é Gente Fina”. Também em 1985, Os Paralamas do Sucesso vão para a Europa, para alguns shows nos países “costumeiros” de toda turnê internacional. Contudo, o retorno do trio é bem diferenciado dos outros artistas que estiveram juntos na viagem. Antes de voltar ao Brasil, eles passam por alguns países da África e também pela Jamaica. As viagens pelo terceiro mundo, um lugar de gente negra e pobre, pareceu muito familiar aos diversos cantos do Brasil visitados pelos músicos em sua turnê nacional, também em 85. Além disso, em 1984, a banda já havia feito os shows de abertura da turnê brasileira do jamaicano Jymmy Cliff. Tudo isso somou-se e, em 1986, veio “Selvagem?”, onde pesou a responsabilidade típica de quando se faz o que se está afim de fazer, não com falta de compromisso, mas, sim, sem respeitar as amarras do mercado fonográfico.

Quando foi apresentado à banda o riff de guitarra que viria a ser “Alagados”, Bi e João acharam aquilo com cara de samba-enredo. E isso é ruim? Não, eles adoraram. “Alagados” abre o disco avisando logo de cara que as próximas horas serão bem diferentes. E boas. O cunho social da letra, muito evidente, é em partes fruto do período que Herbert estudou no Rio de Janeiro e atravessava de ônibus diariamente a Favela da Maré. Depois, já como uma banda de sucesso, conheceram Salvador, capital da Bahia e onde fica Alagados, região periférica da cidade. Um pouco mais tarde, com ainda mais sucesso na bagagem, conheceram Trenchtown, uma favela jamaicana nos subúrbios de Kingston, capital da Jamaica e local onde nasceu Bob Marley. O Brasil, dessa forma, parecia muito mais com a Jamaica, embora muitos tentassem e tentem até hoje negar. São “os filhos da mesma agonia”.  O clipe da música, ousado, confirma tudo isso. O viés popular da vida nas grandes cidades, em ritmo dançante que lembra o samba, convida a todos para cantar as amarguras. Quando o refrão, com break, é sustentado pela batida de tamborins, a evidência grita.

Na sequência vem “Teerã”, ska de características clássicas (assim como muitos outros que virão adiante no disco). A letra faz referência à capital iraniana e principalmente à guerra entre Irã e Iraque (1980 – 1988). O processo traumático que representa uma guerra, principalmente para os civis, é retratado na figura das crianças e o futuro de Teerã. A terceira faixa é “A Novidade”, com letra de Gilberto Gil, que também canta em “Alagados”. O refrão, que é até hoje muito popular, faz menção, novamente, aos desiguais do Brasil. A literalidade forte diz tudo, dispensa explicações: “Oh mundo tão desigual/ Tudo é tão desigual/ De um lado esse carnaval/ Do outro a fome total”. A letra de Gilberto Gil, contou João Barone em entrevista para A Folha de São Paulo, foi composta sobre uma idéia cantarolada por Herbert Vianna sobre a melodia. Gil, respeitando a métrica proposta pelas frases ininteligíveis de Herbert, criou a letra sobre a melodia que recebeu em uma fita cassete, enquanto fazia shows em Florianópolis. Ao telefone, passou a letra. Do outro lado, Herbert anotava e chorava de alegria. Gil, que fora referência, era agora parceiro.

A quarta música é uma composição de João Barone e Bi Ribeiro. “Melô do Marinheiro” dividiu com “Alagados” a preferência nas rádios em um processo espontâneo. Os fãs gostaram dela, pediram nas rádios e a colocaram para tocar. Não tomou espaço da música de trabalho. Popularizou-se de forma instintiva e virou mais um dos hits do disco. “Marujo Dub”, como o nome já diz, é um Dub baseado na música anterior, o primeiro do disco que, corajoso, já apresenta de cara dois dubs brasileiros às rádios. O segundo é “Teerã Dub”, a última faixa do disco e, igualmente, uma versão de “Teerã”. Os ecos e efeitos na voz saturada, típicos do Dub, assim como a “cara” de remix e a evidência do baixo e da bateria acompanham ambas as faixas. Corajosos e arriscados, os dois dubs são um dos vários marcos do disco.

A sexta faixa é “Selvagem”, música de conteúdo assustadoramente atual. Nela a letra apresenta, novamente, uma crônica da vida no Brasil e as armas que cada casta dispõe em mãos. Com riff marcante, o mais pesado do disco, Herbert canta sobre a polícia e sua tentativa incansável de manter tudo em seu lugar, custe o que custar. O governo, por sua vez, com seu falatório vazio e seu controle absoluto do poder, construído na base da enganação, mostra a cara de suas armas. Em “E a liberdade cai por terra aos pés de um filme de Godard”, faz-se referência à censura imposta pelo governo Sarney ao filme “Eu te Saúdo, Maria” de Jean-Luc Godard. Na sequência, a cidade apresenta suas armas na forma de mendigos e meninos de rua, enquanto os negros “a esperteza que só tem quem tá cansado de apanhar”.

Em seguida, vem “A Dama e o Vagabundo”, a primeira música do disco que traz como mote um relacionamento amoroso. O porém está no caráter desse relacionamento, que, apesar das diferenças, dá certo, ao contrário da típica desilusão amorosa que tantos hits ofereceu aos Paralamas. A oitava música é “There’s A Party”. Cantada em inglês, é a que mais se aproxima do pop rock dos dois primeiros discos. Com pouco mais de dois minutos, é a música mais curta. “O Homem”, nona música do disco, apresenta como temática o conflito interior de cada um, colocando em cheque a costumeira dualidade da vida. Questiona o bem e o mal e canta “Nenhuma doutrina mais me satisfaz”. A última música do disco – afinal, “Teerã Dub” não foi incluída na versão original em LP – é uma regravação de “Você/Gostava Tanto de Você”, clássicos de Tim Maia. Sucesso garantido em um reggae que encerra a boa novidade que foi “Selvagem?”.

Definido o lado conceitual do disco, que já vinha sendo trabalhado nos meses finais de 1985, Os Paralamas do Sucesso chamaram Liminha – ex-baixista dos Mutantes e produtor de alguns dos mais aclamados discos do rock brasileiro – para trabalhar a parte técnica. Pelas mãos de Liminha passaram também algumas das segundas guitarras presentes no disco, assim como alguns teclados. Estava garantida a referência técnica da produção, afinal, a experimentação com os novos gêneros musicais deveria estar em excelente qualidade sonora, bem mixado, produzido e afins. Liminha mais que deu conta do recado. Entraram para as gravações em abril e não demoraram mais que um mês para terminar. Armando Marçal foi convidado a tocar as percussões em algumas faixas. Para a capa do disco foi escolhida uma foto do irmão de Bi que estava colada na parede do local de ensaios, ainda na Vovó Ondina. Nela, o jovem Pedro aparece sem camisa, usando-a ao redor da cintura, como uma saia, e segurando um “cajado”. Um índio meio estranho em um dos muitos acampamentos ainda com turma de Brasília, onde Bi e Herbert se conheceram. A estranheza fica completa com o ponto de interrogação que é acrescentado e pergunta: Selvagem?

Em junho estava na praça e o resto é história.

Passado o ano de 1986 e todo o sucesso do disco “Selvagem?”, Os Paralamas do Sucesso foram, gradativamente, mergulhando ainda mais nas referências jamaicanas e caribenhas. Por exemplo, foram acrescentados os teclados, tanto na gravação dos discos quanto nos shows. Da mesma forma, vieram os instrumentos de sopro e assim a banda segue empilhando sucessos.

No último dia 11, em Porto Alegre, a banda apresentou o show comemorativo dos vinte e cinco anos do disco, no Bar Opinião. A casa estava lotada e no palco, além dos três Paralamas, estava Liminha na segunda guitarra. Na primeira parte do show, tocaram “Selvagem?” na íntegra e de maneira fiel ao LP de 86. Logo após, na segunda parte do show, apresentaram outros sucessos dos mais de trinta anos de carreira. Ali, naquele momento, ficou mais que evidente a consolidação que uma carreira bem conduzida oferece ao artista. “Vital e sua Moto”, do primeiro disco, foi comemorada pelo público como se tivesse sido lançada ontem.

É fato que talvez esse texto não tenha trazido exatamente alguma novidade. Mas escrever sobre esse disco é tão bom quanto ouvi-lo mais uma vez (já deve ser a milésima). Ainda tão atual. Escrever sobre ele é, em muito, motivado pela ideia de oferecer de novo essa fonte que temporalmente é velha, mas cuja vanguarda permite que ultrapasse os tempos e que todos que quiserem bebam dela. Aliás, acho que essa é a principal intenção de tudo que foi escrito aqui. Nessa comemoração, no passar desses vinte e cinco anos, comemore ouvindo e cantando bem alto toda a ousadia desses três rapazes latino-americanos que, provavelmente, não sabiam o estrago que estavam por fazer. No melhor sentido, é claro.

“SELVAGEM?”, pelo Viés de Rafael Balbueno
rafaelbalbueno@revistaovies.com

Um comentário sobre “SELVAGEM?

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

xxn xnnx hindi bf xnxxx junge nackte frauen

Posts Relacionados

Comece a digitar sua pesquisa acima e pressione Enter para pesquisar. Pressione ESC para cancelar.