A PRAÇA TAHRIR E O ANALFABETO POLÍTICO

Manifestantes rezam na Praça Tahrir, fevereiro de 2011

Cotidianamente, ao ligarmos a TV, lermos os jornais impressos ou os sítios de notícia na internet, ficamos sabendo de mais um caso de corrupção política. São deputados, senadores e ministros. Prefeitos e vereadores. Governadores e secretários. Uma lista que parece não ter fim. Nas colunas de opinião, e até nos materiais noticiosos, eles são destruídos, seus podres vêm à tona e o sentimento parece ser de que se trata de um filme velho do qual já sabemos o final.

Depois fica a impressão de que é a política que não presta, são as relações internas ao jogo político que corrompem até os mais incorruptíveis, é a “banda podre” do país. Alastra-se, enfim, o pensamento de que o melhor que se pode fazer com a política é manter distância dela. Daí surge o “analfabeto político”.

Brecht, em meados do século XX, já descrevia as características do analfabeto político, o pior dos analfabetos. Sua poesia define assim o sujeito: “O analfabeto político é tão burro que se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia a política”. O analfabeto político não sabe, como escreve Brecht, que o preço do pão ou do seu sapato depende de decisões políticas. O analfabeto político ignora que sua vida é completamente rodeada pela política e de que ele é, desde o nascimento, um ser político.

Mas, um fenômeno mais interessante surgido nos últimos tempos, reconstrói o senso de política, apresentando a internet e as mídias sociais como fóruns de um novo pensamento político. Este pensamento que se imagina fora do espectro da política, digamos, rasteira e feita pelos políticos “normais”, em suas diversas esferas. Para aqueles que acreditam nesse fenômeno, as mobilizações sociais não precisam mais da organização partidária ou escolher a priori sua visão da política. Agora, as interações virtuais, em regime de fórum livre de ideias, serão capazes e suficientes para que o povo se organize e defina suas demandas.

E este novo fenômeno, inspirado nas diversas mobilizações ocorridas no mundo no decorrer do ano passado, em especial na Primavera Árabe, vai ganhando diversas formas, novos gritos e passa a reivindicar outras pautas até ser mutilado, sem que suas inspirações iniciais sobrevivam.

As inspirações vão se perdendo e se ressignificando. Suas formas de atuação, que pareciam antes démodés, ganham novo status e são apropriadas por outros movimentos. Esses movimentos novamente ressignificam a importância das mobilizações populares e, ao final do processo, vemos a apropriação das formas de manifestação sendo “recicladas” e as reivindicações “transformadas”.

É assim que o que era a Praça Tahrir passa a ser comparado com o banho coletivo no espelho d’água do Congresso Nacional; que Guy Fawkes, o anarquista dos quadrinhos e do filme V de Vingança, vai parar na capa da revista Veja como símbolo de inspiração; e o que se queria revolucionário se ressignifica para o analfabeto político.

Chegamos então ao ponto crucial da questão: a maneira como as formas de manifestação são apropriadas por grupos e pessoas que pouco têm interesse nas transformações que aquelas manifestações desejavam inicialmente. É um processo bem conhecido de fagocitose do sistema. Como no processo biológico, a fagocitose do sistema inicialmente reconhece um corpo estranho e, aos poucos, passa a envolvê-lo até que dele não sobre mais do que a lembrança. A lembrança, sim, será a única a sobreviver, também ressignificada e pacificada.

Marcha contra a corrupção, setembro de 2011

Ao mesmo tempo em que os processos se ressignificam e perdem seus ideais no caminho, novos “protagonistas” surgem. No ano de 2011, isso pode ser bem caracterizado na forma de apropriação da Primavera Árabe. Mesmo que persistisse certa inspiração nos anseios dos movimentos árabes, o que se caracterizou como o fenômeno daquele processo foram os usos de redes sociais durante as manifestações. E foi essa a grande apropriação feita, de que haveria certa forma nova de organização feita pela internet.

Isso, com o passar do ano, foi desandar nas marchas ocorridas no Brasil contra a corrupção. As tais marchas, que ganharam grande espaço na mídia tradicional, se caracterizaram por terem como estandarte principal o ataque à corrupção. E só. Os manifestantes não desejavam grandes transformações sociais ou uma mudança de regime. Só tinham olhos para a corrupção, e de uma corrupção específica, do Estado. Talvez embriagados pela leitura de revistas semanais reacionárias, os manifestantes esqueciam que a corrupção é muito mais do que política, podendo estar presente em todas as esferas da vida. O processo de privatizações ocorrido no Brasil esqueceu de privatizar também a corrupção, que segue como artigo encontrado apenas nas relações dos cidadãos com o Estado – em todas as suas formas e domínios.

O retrato do ano que passou mostra que é preciso avançar nas formas de manifestação e demonstrar novamente a força do descontentamento popular. Com a possibilidade de, se assim não for, as tentativas do ano anterior serem engolidas e transmutadas para o uso do “homem de bem” aburguesado, o analfabeto político clássico.

A PRAÇA TAHRIR E O ANALFABETO POLÍTICO, pelo viés de João Victor Moura

joaovictormoura@revistaovies.com

Imagens: [Capa] Ramy Raoof/[1] Pan-African News Wire File Photos/[2] Saulo Cruz

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