SOBRE POLÍTICA, INIMIGOS E REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL

Charge de Carlos Latuff – imagem da internet.

Construir inimigos é um dos esportes favoritos da política. Os inimigos permitem que a sociedade empreenda uma batalha em torno de uma causa comum. Permitem que de repente, em uma sociedade de classes, patriarcal e racista, e, portanto, atravessada pelo conflito, seja possível parar tudo e delimitar o bem e o mal. Como nas ficções infantis – e também nas não tão infantis –, a identificação é direta: cada super-herói tem seus amigos e inimigos, aqueles representam o bem, estes o mal.

Os inimigos destroem casas, cidades, planetas; matam mulheres, crianças, idosos, animais, alienígenas do bem. Os super-heróis, por sua vez, matam os seus inimigos, destruindo, da mesma maneira, suas casas, cidades, planetas; matam suas mulheres, seus filhos, seus pais, seus animais de estimação e os alienígenas do mal. Mas os primeiros são os inimigos; os segundos somos todos nós. Nós. O público. A nação. Segurança pública e segurança nacional caminham próximas na delimitação do inimigo. A doutrina de segurança nacional desenvolvida pela Escola Superior de Guerra no Brasil da década de 1960 delimitou os comunistas e buscou exterminá-los. Quem a ideologia da segurança pública define como inimigos?

Saber quem são os nossos inimigos nos traz, de certa maneira, tranquilidade. Mobiliza o que seria um medo difuso, abstrato e de longo prazo, para algo palpável, concreto, corporificado. Delimitar o inimigo é também uma maneira de tomar decisões políticas sem grandes oposições: a mídia, a opinião pública, os diferentes poderes, todos se unem para combatê-lo. Quem questionaria propostas destinadas a combater o Curinga ou o Lex Luthor?

Numerosos estudos mostraram que apesar de a ideologia da notícia ser a busca pelo inusitado – é o que vende jornal – a representação desse inusitado ocorre de maneira consensual. Definir um acontecimento como inusitado implica desde já a legitimação do pensamento hegemônico. O jornalismo faz isso o tempo todo e não há nada melhor para vender jornal e atrair audiência do que reforçar o senso comum. Esse já é um bom motivo para que à mídia também sirva a delimitação de inimigos.

Charge de Carlos Latuff – imagem da internet

Para compreender o que se pretende com as propostas de redução da maioridade penal no Brasil não se pode passar ao largo desse tema. A questão que se debate não é o crime, a violência e a segurança, mas sim o que se define como crime, violência e segurança. Não se trata de combater um inimigo – dado por natureza – em prol da segurança de uma ilusão de sociedade consensual e indefesa. A representação da realidade não se confunde com a realidade. Mas produz efeitos reais.

“Situações definidas como reais são reais em suas consequências”. Esse é o teorema de Thomas, que entra no argumento para explicar por que muito embora as condutas violentas praticadas por adolescentes e controladas pelo sistema penal não representem nem 5% do total, os adolescentes pobres e negros são o contingente que mais morre vítimas de homicídio no Brasil, contabilizados aqueles praticados por agentes estatais. Também ajuda a explicar por que a redução da maioridade penal e, portanto, a criminalização dos adolescentes vem a ser a solução apresentada para as mazelas cotidianas dos brasileiros. Essa é a consequência real de uma definição de realidade que não condiz com todas as pesquisas existentes a respeito.

Partindo da representação de que os adolescentes cometem atos infracionais porque são inimputáveis – senso comum no discurso pró-redução da maioridade penal –, apresenta-se a solução: torná-los imputáveis e fazê-los responder como adultos no sistema de justiça criminal. O objetivo declarado, conforme se lê, vê e ouve no discurso político e midiático, é a redução da criminalidade através da prisão. Mas e o objetivo real, qual é?

A separação entre objetivos declarados e objetivos reais do direito penal e da prisão é um legado de Foucault que permitiu responder a uma intrigante questão: se a crítica ao fracasso da prisão nasceu junto com ela, por que ela não só permanece como principal forma de punição mas também se reproduz aceleradamente? E a resposta: os objetivos que ela declara ter são diferentes dos que ela realmente tem.

Se a prisão cumpriu com uma função ao longo desses pouco mais que dois séculos de existência como principal forma de punição nos países ocidentais essa função foi a de delimitar as ilegalidades que deveriam ser perseguidas. Ao criminalizar a base da sociedade, imuniza-se o topo, ações funcionais ao sistema capitalista. Além disso, produz a delinquência através de uma série de saberes-poderes que se inauguram com a busca da cura da suposta anormalidade do delinquente – construído, diga-se de passagem, por esses próprios saberes.

Assim, pouco importa se a sociologia da prisão já demonstrou o paradoxo de se querer integrar alguém socialmente desintegrando-o; permitir seu retorno ao mundo do trabalho, retirando-o dele; garantir o fortalecimento das relações familiares destruindo os seus laços. Pouco importa se a criminologia crítica demonstrou que o sistema penal atua seletivamente perseguindo os excluídos do mercado, na interação com outros mecanismos que constroem o estereótipo do crime e do criminoso, deixando à margem dessas definições a criminalidade típica das classes média e alta – ainda que muitas vezes mais danosa. Não interessa debater o fato de que a prisão do causador de um dano não resolve o conflito e deixa a vítima a ver navios. Ou ainda o reconhecimento de que o crime é uma conduta comum, praticada por todas as pessoas que vivem em sociedade. Afinal, ninguém questiona que patologias carregaria o indivíduo que sonega impostos, desvia dinheiro público, polui nascentes ou suborna funcionários públicos.

Nada disso importa. Por que a despeito de os objetivos declarados não poderem absolutamente ser atingidos através das políticas propostas, não é a sua eficácia o que está jogo. O que está em jogo é, uma vez mais, a representação da ideia de segurança. Se a política definiu como inimigos da sociedade os adolescentes pobres e negros, especialmente ligados ao tráfico de drogas, basta que essa mesma população sinta que algo está sendo feito para combatê-los. E assim, os políticos são reeleitos, os jornais continuam lucrativos, tem-se mais matéria prima para a indústria do controle do crime; ou, simplesmente: cumprem-se os objetivos reais.

Mas enganam-se aqueles que pensam que isso para por aí: depois da redução da maioridade penal, novos pânicos morais virão, assim como novos inimigos, os quais já estão nos ateliês de moda sendo projetados por poderosos estilistas – para parafrasear Galeano.

Se é a representação de quem vem a ser o “criminoso”, o “crime” e a “violência” o que define as decisões políticas a serem tomadas a respeito, então é a representação sobre o que é a segurança o que importa para definir a sua eficácia: interessa o suspiro aliviado de uma população de medos fomentados pela mídia e pela política. As consequências humanas desse processo, podem ter certeza, não estarão nas páginas de jornais, mas na pele de uma juventude que já está sendo sacrificada, como na história bíblica do bode expiatório, carregando nas costas o peso de todos os problemas vivenciados pela população. O Brasil é hoje o palco de mais um genocídio, depois de tantos que já se sucederam em nossa história. A redução da maioridade penal reafirma sua continuidade como política de governo aplaudida pela mídia. Enquanto não houver um verdadeiro debate sobre o tema, vazias pesquisas de opinião pública continuarão apontando os nada aterradores resultados de que a maior parte da população aplaude não só a redução da maioridade penal, mas também a tortura, os homicídios praticados por policiais e a pena de morte. Não surpreende: contra inimigos não há limites.

Atualmente tramita no Senado a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) n.º 33/2012, que propõe a redução da maioridade penal no Brasil de 18 para 16 anos de idade. 

SOBRE POLÍTICA, INIMIGOS E REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL, pelo viés de Marília De Nardin Budó*.

* Marília é formada nos cursos de  Comunicação Social – Jornalismo e Direto na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), com especialização em Pensamento Político Brasileiro na mesma instituição. É Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e, atualmente, cursa o doutorado em Direito na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Marília foi professora no curso de Comunicação Social – Jornalismo de quase toda a redação da revista o Viés.

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