Identidades diferentes, espaços comuns

flip na rua do skatista Guilherme Racionais, em Santa Maria. foto: Cauan Queiroz Kehl
uma rampa de concreto em meio à arquitetura da cidade, para um skatista, transforma-se em uma “transição natural”: flip na rua do skatista Guilherme Racionais, em Santa Maria. foto: Cauan Queiroz Kehl

Saio de casa, skate na mão, ando três quadras “a pé”, não tem asfalto na minha rua e meus vizinho reclamariam se colocasse o poliuretano das minhas rodas nas suas calçadas, remodeladas ou não. Sigo o caminho até o “pico” onde tenho uma certa liberdade para andar de skate, onde encontrarei outros como eu, com vizinhos e suas calçadas como eu, com uma rua de pedra, como eu. Onde estão nossos espaços de reconhecimento como skatistas? Onde justificamos nossas ações enquanto skatistas, onde elaboramos nossa crítica, qual é o espaço de nossas disputas, desacordos e controvérsias? E nossos acordos? A cidade não nos pertence mais, e se nos atrevermos a desejá-la ou usá-la devemos justificar ser dignos dela.

 a problemática do streetskate e sua relação com o espaço público ultrapassa a dimensão política e sócio-econômica em uma conjuntura de vida pública privatizada e vida privada publicizada

Semanas atrás, tivemos em Santa Maria um caso de repercussão nacional que mostrou um pouco da situação de despreparo dos agentes públicos e privados de segurança, sim, um pouco, pois fatos como o que ocorreram com o skatista Jean e seus amigos na UFSM são corriqueiros, talvez em menor proporção de lesões físicas, mas igualmente intensos em lesões psicológicas e sociais. Em um momento de intenso embate ao empoderamento liberal dos nossos espaços públicos, sejam nos megaeventos, seja na cessão desses espaços, amplamente utilizados, para empreendimentos privados sem retorno social ou na falta de planejamento público, a relação social entre skatistas e demais extratos da sociedade traz à tona importantes reflexões para entendermos como nós, brasileiros, nos relacionamos com a dicotomia público/privado. Pois a problemática do streetskate e sua relação com o espaço público ultrapassa a dimensão política e sócio-econômica em uma conjuntura de vida pública privatizada e vida privada publicizada. Rebobina a fita mano!!
Final da década de sessenta, começo dos anos setenta, o surf pare um novo “esporte” (estre aspas pois meu viés é mais cultural), uma nova cultura. Ele próprio, o surf, já é uma pratica ou manifestação esportiva que foge do segregacionismo das regras dos esportes olímpicos. Segundo o documentário histórico Dogtown and z-boys de Stacy Peralta, lançado em 2001, após um derramamento de petróleo ocorrido em alto mar, as praias da costa do pacífico ficaram impossibilitadas para a pratica do surf, assim o grande número de jovens praticantes ficou sem sua prática esportiva usual e corriqueira, tendo que, a partir do ocorrido, improvisar uma nova forma de divertirem-se e aproveitar o verão californiano.
De acordo com o documentário, surge aí o skate como uma nova perspectiva de interação ao espaço urbano e movimento cultural. Com a baixa temporada nas praias californianas naquele ano, devido ao vazamento de petróleo, diversas casas estavam vazias, e suas piscinas (característica das habitações litorâneas da califa) secas e com ondulações parecidas com as ondas desejadas.

a denominação “radical” não poderia ser relacionada com o objetivo destes esportes em buscar a raiz da atividade esportiva, ou seja, não somente o corpo mas também a mente sã? Talvez. E mente sã é mente crítica, pelo menos foi assim que sempre percebi

Como não podiam usufruir de suas “pranchas de surf” para explorar as ondas do oceano, a criatividade, característica desde sempre usada nos novos esportes surgidos na época e denominados esportes radicais como roller, asa delta, escalada, bmx, ski, fez-se presente. Cabe aqui um parêntese, a denominação “radical” não poderia ser relacionada com o objetivo destes esportes em buscar a raiz da atividade esportiva, ou seja, não somente o corpo mas também a mente sã? Talvez. E mente sã é mente crítica, pelo menos foi assim que sempre percebi.

ollie do skatista Lucas Mosquito, em Santa Maria. Foto: Cauan Queiroz Kehl
“ollie” do skatista Lucas Mosquito, em Santa Maria, passando de um terraço a outro. Foto: Cauan Queiroz Kehl

Usando pedaços de tábuas de madeira acopladas a eixos e rodas de patins, construíram os primeiros skates mais parecidos aos moldes atuais, invadiam as casas para praticar “surf no concreto”, origem da futura linguagem de um novo grupo social.
Voltemos ao nosso foco, a ambiguidade do skate, onde o mesmo transita entre os esportes mais praticados no país, que de certa forma é um reconhecimento social, ao mesmo tempo que recebe forte repressão nas ruas, ou seja, sua marginalização, fundamentada no surgimento da sua modalidade mais popular, o “streetskate” [skate de rua].
No final dos anos setenta começa no Brasil a esportivação do skate no Brasil, com o surgimento de campeonatos amadores e profissionais. Como até então não havia apelo do skate entre a população brasileira, não haviam espaços específicos para a prática, como as piscinas californianas. Com o número de praticantes aumentando vertiginosamente, e pela falta de estrutura e conhecimento dos poderes públicos, empresários viram ali um “gap” de oportunidade de lucro,  então começaram a surgir pistas particulares que cobravam ingresso para que o praticante pudesse usufruir de suas instalações nem sempre tão específicas, mas voltadas para o skate.
À época houve muita revolta dos skatistas, principalmente em São Paulo, mas também em outras capitais, a maioria dos praticantes era oriunda das classes média e baixa, daí gerou-se um movimento de revolta, pois a maioria não tinha condições financeiras de pagar para andar nas inéditas “pistas de skate”, acabando por ficar em frente às “pistas” praticando o seu esporte. Surge então o “streetskate” ou o skate de rua que acabou por difundir-se Brasil afora, pelo seu resgate à ideia de liberdade já proposta em sua origem como prática e também pelo contexto cultura da juventude da época. É claro, houve forte repressão, inclusive na década que se seguiu. Em 1988 Jânio Quadros chegou a proibir o skate no parque Ibirapuera em São Paulo, na mesma década os skatistas da Praça da Matriz em Porto Alegre também sofreram forte repressão.
Voltamos à Santa Maria, local historicamente conhecido entre skatistas da região sul do Brasil como uma das cidades mais repressoras do skate no Rio Grande do Sul, quem anda sabe, quem algum dia andou de skate por essas bandas sabe, talvez até lembre das “operações” da “Choque” ou da PATAMO na antiga rua 24 horas: brigadianos fechavam as duas saídas da rua e vinham de ambas as direções recolhendo skates e batendo “geral”. Não havia diálogo ou conversa, era correr ou apanhar e ter o “carrinho” recolhido. Os comerciantes não davam muita importância, já que a aglomeração de skatistas dava-se mais à noite; já os vizinhos dos prédios residências delegavam aos porteiros a tarefa de não nos deixar andar na frente de determinados prédios, por óbvio, o porteiros não tinha sucesso na missão, por isso aconteciam coisas inusitadas, como uma certa vez em que recebi um balde de água sobre mim, despejado por uma das inquilinas de um prédio.
Ali naquele local tínhamos um espaço de reconhecimento, vários skatistas novos, dos mais variados bairros da cidade, se conheciam ali, formavam amizades, não havia pistas, justificavam ali sua própria existência e mostravam ali para mim uma das facetas mais belas do skate, e que igualmente para mim justifica a cultura, falo da releitura do urbano, da releitura da arquitetura, da releitura do uso do espaço público.
O skatista Jean Senne faz da larga calçada um obstáculo e pula ela de heelflip. foto: Cauan Queiroz Kehl
O skatista Jean Senne faz da larga calçada um obstáculo e pula ela de heelflip. foto: Cauan Queiroz Kehl

a subversão pública de uma realidade concreta sempre é punida e skatista sabe bem disso, assim como nossas instituições sociais

Os skatistas que tiveram atrito com dois guardas da UFSM estavam no lugar errado perante a leitura que a nossa sociedade tem de como deve ser usado o espaço público. Não era para skatistas estarem ali, era uma escada, feita para subir ou descer (nunca conseguirei enxergá-la assim rsrsrsr) e não para ser vista como uma “set” ou um “palco” para “manual”, a subversão pública de uma realidade concreta sempre é punida e skatista sabe bem disso, assim como nossas instituições sociais.
Certas coisas são imperativas em nossa sociedade, ou seja, são acordos sociais que estão além da nossa vontade, na sociologia podemos chamá-los de fatos sociais. Para defini-los contarei com ajuda teórica do autor Émile Durkheim (1858 – 1917), sociólogo francês.
Fatos sociais caracterizam-se pela sua propriedade de existir fora das consciências individuais ou exteriores ao indivíduo, de modo que são imperativas e coercitivas, pois o fato social impõe-se ao individuo quando o mesmo tenta resistir à sua força.
Como exemplo, os fatos sociais podem ser normativos, como nas regras do direito, onde se manifestam quando o indivíduo viola uma regra e é punido por uma sanção legal do Estado; é o caso da proibição de skate em vias públicas, acarretando como sanção multas e recolhimentos de skates.
Ou podem ser morais, onde a consciência pública ou coletiva identifica e reprime o ato que afronta a sua coesão, como, por exemplo, o ato de agentes públicos de abordar skatistas que não estariam em “seu lugar” ou que não deveriam estar ali, pois não seria local adequado para sua prática e seu estilo de vida, como os skatistas na universidade, que apesar de ser pública impede ou necessita de aviso prévio para a sua utilização. Como a função da sua arquitetura é subvertida e a ideia de depredação é associada ao skate, a norma interna é aplicada, coagindo os skatistas  retirarem-se do local.
Tendo como características de nossa sociedade um conjunto de normas, explícitas ou subliminares, que está fora e materializa-se no organismo social antes de solidificar-se na consciência individual, exercendo forte coerção a ponto de constranger o individuo “desviante”, podemos dizer que a criatividade individual ou de um grupo social é cerceada pelas imposições dos fatos sociais de sua época. Cabe aqui uma observação, geralmente o skatista não constrange-se pela simples coerção, se esta não for física. A coerção só terá efeito se for aplicada por quem tem domínio do uso da violência.
Mas o que mantém a coesão social destas sociedades, ou o que a cria? A divisão do trabalho social é de extrema importância para entendermos a coesão social das sociedades modernas, pois seus efeitos econômicos não se comparam aos seus efeitos morais, tendo como função a criação de solidariedade entre duas ou mais pessoas, onde uma tem consciência da importância do seu trabalho para si e para outrem. Esta solidariedade é classificada em dois tipos: solidariedade mecânica e solidariedade orgânica, dependendo da localização histórica da sociedade em questão.
Mas quais são os conceitos de solidariedade orgânica e solidariedade mecânica? Para entendermos estes conceitos, devemos primeiramente entender a divisão do trabalho segundo Durkheim e o seu entendimento sobre as formas de sociedades e as diferenças entre sociedades pré-modernas e  sociedades modernas.
Sociedades pré-modernas (situadas aqui antes da Revolução Industrial) eram comunidades com pouca densidade populacional e, por isso, com pequena diversidade de funções exercidas pelos indivíduos, onde cada um sabia seu papel para o bom andamento e desenvolvimento do trabalho. Mas não havia a consciência de interdependência entre estes trabalhos, pois um não precisava necessariamente da existência de outro para ser executado.
Eram sociedades onde o grupo prevalecia sobre o indivíduo, ou seja, havia forte consciência coletiva e por consequência uma fraca consciência individual, daí a grande influência da tradição, dos costumes e da religião. Outra característica das sociedades pré-modernas era a sua segmentação, pois não havia contato com o exterior (outras sociedades), pois a mesma sustenta-se por si mesmo e, como os indivíduos pertencentes a essas sociedades não possuem relação com o mundo exterior, são muito semelhantes, dando pouco espaço para diferenças e individualidades.
Eis aí a maior característica das sociedades pré-modernas, a solidariedade mecânica, onde há forte consciência coletiva, predomínio das semelhanças, indivíduo ligado à sociedade de maneira direta, o direito ou normas são repressivos e há forte coesão entre os indivíduos a ela pertencentes.
Nas sociedades modernas há maior consciência da interdependência entre os indivíduos através da divisão social do trabalho, fenômeno já existente em toda a história das sociedades, mas que tomou maior proporção durante a revolução industrial. As sociedades antigas ou pré-modernas experimentaram o crescimento e a interação com o exterior ou outras sociedades através da maior densidade populacional advinda destas mudanças e testemunharam o crescimento e uma maior distinção das profissões. Estes fenômenos também agiram com relação aos indivíduos.
Deste novo paradigma surgiram novas interações entre populações distintas, uma maior diversidade de funções sociais, a diferenciação dos indivíduos gerando uma forte consciência individual e, por consequência, o enfraquecimento da consciência coletiva (substituídas pelas representações coletivas) e uma maior especialização do trabalho. Estas características das sociedades modernas produziram, segundo a teoria abordada, a solidariedade orgânica, como dispositivo dos indivíduos para integrar-se à sociedade e necessária para manter a coesão social.
O direito torna-se restitutivo, ou seja, existe a vontade moral, baseada na solidariedade orgânica, de restituir o indivíduo marginalizado à sociedade, por ter conduta imprópria ou não condescendente com a consciência coletiva ou com alguma norma das instituições coletivas.

Um sofá improvisado com uma cantoneira de metal no estacionamento do futuro Centro de Eventos, no Farrezão, serviu de obstáculo para o skatista Marcelo Noal deslizar de
Um sofá improvisado com uma cantoneira de metal no estacionamento do futuro Centro de Eventos, no Farrezão, serviu de obstáculo para o skatista Marcelo Noal deslizar de “crooked”. foto: Cauan Queiroz Kehl

Esta (chata, eu sei) elucidação destes conceitos é importante para que eu chegue ao ponto que é interessante abordarmos daqui em diante. As instituições coletivas das sociedades atuais, principalmente as ligadas à segurança, sua formação e como esta interfere na percepção do “street”.
Mas o que podemos definir como instituição? Entenderemos instituições como um mecanismo de organização social, formadas por um conjunto de normas, valores e regras e sua evolução, num sentido mais amplo. Aqui, enfoco na representação física destas instituições coletivas e sobremaneira as instituições de polícia ou militares e em como exercem seu papel essencialmente conservador, agindo contra mudanças e pela manutenção da ordem vigente.
As instituições responsáveis pela segurança pública, como visto anteriormente, são mecanismos de organização social e mantenedoras da ordem vigente. Os skatistas (ao disputarem espaços da rua com transeuntes, automóveis e bicicletas; ao andarem em praças, corrimãos, estacionamentos e, enfim, ao transformar locais da cidade em terrenos radicais, os skatistas, especialmente os adeptos do “streetskate” passam a ser alvo do poder público) passam a sofrer a repressão, pois leem a cidade e sua arquitetura de forma diferente dos demais indivíduos, subvertendo a realidade à sua volta aos seus interesses.
A polícia militar é responsável direta pela segurança das ruas e por manter a ordem em um ambiente (cidade) criado e pensado sistematicamente como um espaço da ordem. Apesar de estarem inclusas em uma sociedade moderna onde a solidariedade orgânica impera, estas instituições tem características de sociedades fechadas e mecânicas, vejamos.
Nos seus escalões mais baixos, os indivíduos pertencentes a esta instituição estão ligados de maneira direta, sem separações de tarefas muito diferentes e sem barreiras institucionais administrativas, ou seja, não há intermediários entre os agentes públicos; além disso, existe forte coesão entre os elementos pertencentes, que nasce nos compromissos e juramentos que são obrigados a fazer quando ingressam na instituição ou corporação, como costuma-se dizer.
Estes juramentos, que são obrigatórios a todos que desejem ingressar na instituição, além de orientar a prática do trabalho policial, fazem com que entre suas fileiras cresçam crenças e sentimentos comuns aos membros do grupo, exacerbando para o campo prático o predomínio das suas semelhanças, em detrimento de suas diferenças como indivíduos civis, e não agentes do Estado. Deve-se mencionar também o poder ideológico das fardas e uniformes e os signos nestes contidos, colaborando para a “uniformidade” presente.
Como já nos dizia Foucault, “a disciplina produz saber/poder, o registro contínuo do conhecimento, o ápice, e este conhecimento geram poder. E essas técnicas disciplinares (Espaço/Tempo/Vigilância e Saber) são a garantia para o adestramento, para a subordinação acrescida de outras tantas técnicas sutis de aprisionamento dos corpos”.
Por fim, temos ainda seu caráter de direito repressivo, pois, quando o policial ou segurança age de forma prática nas ruas, age de maneira repressiva contra o que não tem um ordenamento jurídico definido (streetskate). Sendo assim, não pode ser restitutivo, mas apenas repressivo, porque até a “abordagem” o skatista não é “fora da lei”. Temos então uma entidade pertencente a uma sociedade baseada na solidariedade orgânica com características internas de sociedades pré-modernas com solidariedade mecânica. Mas quando relacionamos a ação pratica destas entidades nas ruas com a repressão ao “streetskate” em uma sociedade moderna, podemos concluir que a criatividade que o skate de rua subverte é cerceada pela imposição social através dos agentes repressores.
No centro de Santa Maria, o skatista João Pedro pula a escadaria de nove degraus. foto: Cauan Queiroz Kehl
No centro de Santa Maria, o skatista João Pedro pula a escadaria de nove degraus. foto: Cauan Queiroz Kehl

A coerção que sofremos diminuiu em sua face mais violenta, isso não se pode negar, mas aumentou em sua face castradora de perspectivas criativas e críticas ao uso dos aparelhos urbanos: um ocioso “feliz” não será bem visto na sociedade do trabalho, mesmo que o “ócio” em si seja o seu trabalho.

Primeiramente, é inegável o crescimento do streetskate como modalidade e como grupo social, pois apesar da repressão existente por parte dos agentes do Estado e da própria população, a mesma acaba por massificar o que é tribal e sectário. Para Maffesoli, o tribalismo é um movimento vitalizante da sociedade, pelo qual se encontram formas para re-encantar o mundo. “Nas massas que se dividem em tribos, ou nas tribos que se agregam em massas, esse re-encantamento do mundo tem como cimento principal uma emoção ou uma sensibilidade vivida em comum”.
Entendemos que, como grupo, mesmo negando o formalismo imposto pela indústria cultural, skatistas adotam estilos próprios, singulares: de praticar o seu esporte, as formas de vestir-se, de falar um idioma próprio, usando linguajar específico atravessado por gírias e termos que só são compreendidas no convívio entre eles. O grupo tem, em seu âmago (ou em grande parte), a vontade de ser aceito e de solidificar o vínculo entre a ética (o laço coletivo) e a estética (o sentir comum) burguesas. Isso reflete-se quando estamos em situação de coerção violenta.
Não se pode negar, no entanto, que a proibição do skate nas ruas, praças e logradouros é uma forma de delimitar e disciplinar a pratica do skate de rua, tirando da sua ação prática a capacidade quase que infinita de criatividade técnica (manobras) advinda do uso da arquitetura urbana de forma não convencional.
Talvez retirando junto a essa criatividade o direito de usufruir e ler de forma diferente os espaços urbanos, subordinando a atividade a leis que delimitam esse uso, assim como nas pistas, necessárias para a manutenção de participantes mas estáticas em sua concepção: ela já vem pronta, portanto o espaço para a criatividade torna-se limitado, diferentemente da cidade que de certa forma está sempre em mutação.
Quando somos abordados na rua por policias, guardas municipais ou terceirizados, geralmente temos que justificar o fato de andar de skate, a própria prática em si. Sem um cálculo estratégico de ganho pessoal, tanto econômico como social, tal prática não é cabível à racionalização, não é cabível à forma de pensar os interesses privados contemporâneos, algo como – “tô andando de skate mas trabalho” ou “ando de skate mas sou competitivo e participo de campeonatos”. Na verdade, penso ser inadmissível à racionalização burguesa a prática de algo sem ganho direto ou de médio prazo: o custo deveria ser, no mínimo, igual ao benefício.

A verdade é que a função social da cidade, como conhecemos hoje, não tem nenhuma relação com o ser humano ou com sua qualidade de vida, as cidades foram pensadas para a produção capitalista de bens de consumo.

Nessa ótica é, digamos, inadmissível o bom ócio, que é acompanhado de crescimento crítico e subjetivo de si, ou seja, andar de skate, filmar, fotografar, melhorar suas manobras, melhorar seu estilo, melhorar fotos, perceber novos ângulos de filmagem, novos usos da arquitetura, etc. A coerção que sofremos diminuiu em sua face mais violenta, isso não se pode negar, mas aumentou em sua face castradora de perspectivas criativas e críticas ao uso dos aparelhos urbanos: um ocioso “feliz” não será bem visto na sociedade do trabalho, mesmo que o “ócio” em si seja o seu trabalho. Ao mesmo tempo o skate, como mercado, precisa da aceitação da mesma sociedade castradora que detêm o poder de compra, logística e venda, etc.
Outra questão que se levanta no momento, tanto no Brasil como no resto do mundo, diz respeito à retirada dos skatistas das ruas. Logo após a construção de pistas, existe uma tendência de que criem-se leis proibindo skate em locais públicos. Isso pode ser verificado mundialmente nos países com maior número de skatistas, como na “meca” do skate Barcelona, onde a construção da Les Corts Skatepark foi sucedida pela tentativa de proibição do skate no antigo e renomado local de encontro dos skatistas na cidade, o museu MACBA (Museu de Arte Contemporânea de Barcelona), no centro catalão. A verdade é que a função social da cidade, como conhecemos hoje, não tem nenhuma relação com o ser humano ou com sua qualidade de vida, as cidades foram pensadas para a produção capitalista de bens de consumo.
A cidade inserida no contexto do Estado como o conhecemos tem em seus agentes de segurança e nas instituições que representam toda a coerção necessária para manter a cidade e seus aparelhos (ruas, bancos, calçadas, escadas, canteiros, muros, corrimãos, ladeiras, etc) funcionando como a ordem vigente deseja, reprimindo os que subvertem esta lógica de uso da cidade, reprimindo uma das poucas liberdades que temos. Espero neste texto não ter tornado o skate algo chato e acadêmico, mas minha vivência em cima da lixa e minha vivência acadêmica ainda estão em fase de acomodação. Vivamos a vida, vento na cara e skate for fun para nóis, tipo 90’s, e era isso.
Identidades diferentes, espaços comuns, pelo viés de Márcio Soares*
*Márcio Soares é estudante de Ciências Sociais na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), skatista e integrante da Associação dos Amigos do Skate de Santa Maria (AASSM)
Fotos de Cauan Queiroz Kehl, dono do blog Remela na Testa.

Um comentário sobre “Identidades diferentes, espaços comuns

  1. Sou praticante de parkour e me identifico muito com seu texto, valeu por compartilhar da ideia!
    ps: ótimas referências para pesquisa, usarei nas minhas :))

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