A guerra à pixação na “Cidade Cultura”

Foto: Marcelo de Franceschi.

Com a possibilidade de deflagração de uma nova operação por parte da polícia, o assunto volta à tona. Volta porque nos anos de 2012 e 2013 Santa Maria foi palco de duas grandes operações de combate à pixação: as operações “Cidade Limpa” e “Rabisco”. Ambas contaram com um grande efetivo policial para cumprir uma série de mandados de busca e apreensão na casa de adolescentes e jovens adultos investigados por potencial incidência no delito tipificado no artigo 65 da Lei de Crimes Ambientais.

O uso indevido e abusivo de medidas punitivas por parte do poder público não é novidade, apesar de os objetivos declarados do direito penal distanciarem-se da realidade cada vez mais. A ideia de que toda e qualquer situação não resolvida com ações públicas sócio-políticas possa e deva ser solucionada pelo Poder Legislativo é falaciosa. Em Santa Maria, por exemplo, como medida para abordar a pixação, o vereador João Carlos Maciel (PMDB) propôs um Projeto de Lei que implementasse a “Política Municipal Antipichação”, aprovado em 2013. A primeira versão do projeto data de 2006 e não foi aprovada por questões legais: nessa versão da proposta eram previstas sanções penais aos pixadores (proposta notadamente inconstitucional quando proposta pelo poder legislativo municipal). Agora, um novo projeto de lei é a aposta da prefeitura municipal para dar cabo à pixação na cidade.

Essas ações ilustram a forma a qual é abordada a pixação por parte dos representantes políticos municipais: com estímulo à forte repressão por parte da polícia e nenhum – ou pouquíssimo – diálogo sobre o tema. O terceiro pé do tripé que reprime a pixação santa-mariense encontra sustentação nos veículos de mídia tradicionais. Esses são os principais aparatos utilizados para legitimar uma repressão ineficaz de proporções (ridiculamente) homéricas. A cada tentativa frustrada de reprimir a pixação, a pixação na cidade aumenta. Há resistência.

A notória ineficiência para extinguir a pixação não deve ser razão para que o tema seja banalizado. A submissão dos indivíduos investigados aos atos policialescos e às instituições da ordem configuram, por si sós, formas de punição antecipada. Ainda que por fim nenhuma participação reste comprovada oficialmente, os indivíduos ficam etiquetados como desviantes.

 

Foto: Guilherme Pittaluga Hoffmeister.

A seletividade penal e a construção da criminalidade

É claro que nem todos aqueles que incorrem em condutas tipificadas como crime são rotulados. O sistema penal funciona de forma seletiva, pois nem todas as condutas anormais (ilegais) são perseguidas da mesma forma pelos órgãos de repressão estatal. Como exemplo, no ano de 2013, a sonegação de impostos – que é crime – no Brasil superou R$ 415 bilhões. O valor corresponde aproximadamente a 10% de toda a riqueza gerada no país durante o período e é maior que os orçamentos federais de 2014 para as pastas de educação, desenvolvimento social e saúde, somados.

Esse delito é do tipo que insufla as estatísticas da cifra ilegal do crime. Isso quer dizer que apesar de acontecer com bastante frequência, normalmente não consta nas estatísticas oficiais dos órgãos de controle e seus praticantes não são submetidos ao processo penal. O estigma é reservado apenas àqueles que cometem alguns poucos delitos pré-selecionados por aqueles que detêm o poder econômico e político no país. Não por coincidência a esmagadora maioria da população carcerária do Brasil tem cor, idade e classe social muito bem definidas.

As instituições formais do sistema penal não são as únicas a determinarem quais são os delitos perseguidos pelas engrenagens da máquina de controle social. Sobre essa seleção de delitos uma instituição informal merece especial destaque: a mídia tradicional. A relação incestuosa que se estabelece entre sistema penal e mídia tradicional é fruto também da legitimação que essa dá àquele, cotidianamente. Dentre todos os fatos e crimes, poucos se tornam notícia. Ora, tem de haver escolha dos fatos, ou seja, um recorte para a construção das notícias. Os meios de comunicação são determinantes na construção das ideologias, atitudes e valores da sociedade. As informações são transmitidas de acordo com o interesse e com o enfoque daqueles que controlam os meios de comunicação. No mais das vezes, observa-se uma clara relação entre ideias e ideologias dominantes e as práticas da mídia. Quando a seleção é feita, normalmente visa estrategicamente legitimar ações ou desviar o foco de outros eventos.

Quando os jornais locais passam a ter como pauta a abordagem de um assunto em particular, como a pixação, os enfoques dados por eles e as associações feitas à conduta refletem na percepção da comunidade local sobre o tema. No caso santa-mariense, além de considerarem a conduta como depredação de patrimônio – o que por si só já mostra um equívoco crasso do ponto de vista jurídico –, o recorte feito associa livremente os pixadores a outros delitos, como o tráfico de drogas. O que é de uma alta irresponsabilidade jornalística.

Com o controle da produção da informação, a criação de estereótipos negativos – como o de delinquente – e o fomento da sensação de insegurança contribuem para mobilizar a atividade pública e padronizar a reação das pessoas. Além disso, irresponsavelmente faz com que a população aceite quaisquer medidas para o fim de assegurar uma distorcida ordem política. Assim, a manifestação midiática exerce um papel de grande relevância na construção da criminalidade, na legitimação dos agentes e do próprio sistema penal na sociedade.

 

Foto: Marcelo de Franceschi.

A pixação além do que se vê

Por vezes as autoridades negligenciam o fato de que além das necessidades inerentes à sociedade (como a de segurança, organização do trabalho e comunicação), somam-se necessidades específicas, como uma atividade criadora, de obra (e não apenas de produtos e de bens materiais consumíveis) necessidades de informação, de simbolismo, de imaginário, de atividades lúdicas. O direito à cidade perpassa pela efetivação dessas atividades específicas. Criminalizar condutas como o ato de manifestar-se, seja intelectualmente ou através de ações materiais diretas como a pixação, denota um raciocínio calcado principalmente em preceitos de ordem estético-moral e financeiros. A economia e o capital acabam por orientar a forma de organização da sociedade, definindo a moral vigente e conceituando Justiça, bem como as condutas a serem perseguidas pelo sistema penal.

No Brasil, inicialmente, a conduta de pixar era adequada ao crime previsto no artigo 163 do Código Penal (crime de dano), por ser entendida enquanto depredação de patrimônio. Tal adequação foi sistematicamente caindo em desuso, pois vigeu o entendimento de que o simples ato de pintar uma parede não poderia configurar depredação. Não havendo possibilidade de adequar a conduta de pixar a nenhum outro tipo penal existente até então fez-se “necessária” a criação de um novo crime para reprimi-la.

A saída encontrada foi tratar a matéria em um dispositivo legal diverso: o artigo 65 da Lei de Crimes Ambientais (9.605/98). O novo entendimento indica que o bem jurídico digno de proteção agora não é mais o patrimônio público ou privado, mas sim a estética urbana. Fato que é bastante contestável. Apesar de a pixação ser considerada um crime ambiental por lesar, em teoria, a estética da urbe, os legisladores parecem não se importar com imensos outdoors, placas de publicidade e afins. Para muitas pessoas, essas publicidades que já incorporam a estética urbana (assim como as pixações) poluem visualmente muito mais do que uma ou outra tag na parede. Parece que para aqueles que detém o poder de legislar a diferença reside na questão econômica patrimonial, ou seja, no direito à propriedade, e não na estética da urbe. Quem puder pagar pelas telas pode aplicar suas aquarelas como bem entender. Exige um alto grau de abstração imaginar um proprietário que pixa seu próprio patrimônio ser indiciado por essa “lesão” à estética urbana.

Há outros problemas com a Lei, o padrão de adequação ao tipo penal passou a ser confuso porque a distinção entre pixação e graffiti (ou grafite) não é clara, trata-se de um terreno separado por uma linha tênue e maleável. Por muitas vezes, tal distinção parece não existir, muitas pessoas sequer a consideram. Mesmo na academia de artes plásticas e visuais há embates em relação ao que seria a pixação e o que seria o graffiti. Há divergência de opiniões a respeito do que é belo e o que é feio na arte. O que é a arte? Mesmo com todas essas questões que circundam o meio artístico – inclusive academicamente –, na prática, o primeiro filtro pelo qual a conduta passa para ser definida se é crime ou não é o do policial (civil ou militar), ou do guarda municipal que se depara com a situação. Esses atores decidem se a manifestação lesa a estética urbana.

Falar em pixação é falar de um universo de singularidades. A pixação nem sempre tem um interesse estético, nem sempre é artística. Por muitas vezes possui um conteúdo altamente político, de protesto. A pixação pode ser lida enquanto manifestação artística, política e/ou cultural e, além disso, pode ainda ser compreendida enquanto forma deliberada de transgressão. O que se evidencia pela grande quantidade de pixações em momentos históricos importantíssimos a nível mundial, como maio de 68 em Paris, a ditadura militar no Brasil e vésperas da queda do muro de Berlim.

A pixação é uma conduta extremamente complexa.

 

Foto: Marcelo de Franceschi.

A relação polícia-mídia

Apesar da complexidade atinente ao tema, duas grandes operações foram deflagradas com o intuito de coibir a ação dos pixadores em Santa Maria sem maiores problematizações prévias. As operações deflagradas, a forma como foram realizadas e o fato de uma lei ter sido sancionada para legitimar a segunda investida estatal contra a pixação na cidade denotam a maneira áspera a qual a questão foi tratada na cidade. Isso é motivo para preocupação – e reflexão – quando a cidade parece se preparar para uma nova investida.

A mídia deveria ser uma ferramenta informativa e fomentadora de debates, construção de senso crítico e jornalismo comprometido com a realidade em seus diversos enfoques. O que se evidencia, ao invés, é que a mídia tradicional prolifera discursos de ódio e reproduz expressões conservadoras. Refere-se à ação dos pixadores como vandalismo, depredação de patrimônio público e privado, expressões recorrentes em razão das diversas manifestações populares e sócio-políticas (como a ocupação da Câmara dos Vereadores e os atos contra o aumento da tarifa do transporte público) que ocorreram durante o período compreendido entre as operações.

A utilização de fontes primárias – sobremodo a polícia – na elaboração das primeiras notícias sobre o tema estabeleceu a definição primária e o enfoque com que a pixção seria tratada na cidade pelos jornais. Os pixadores são tratados enquanto sujeitos passivos, ao passo que a polícia é tratada enquanto sujeito ativo da relação, o enfoque selecionado pela mídia é o da polícia contra os pixadores, a construção de uma relação dicotômica. Nesse contexto, a população tende a ficar do lado da polícia – uma vez que representa a segurança institucionalizada – e, por conseguinte, contra os pixadores. Mesmo que tal relação não represente a realidade.

A maioria das informações buscadas pelos jornalistas de Santa Maria têm como fonte principal os agentes do sistema penal, tais como policiais e agentes judiciais. Sempre que a mídia se utiliza da fonte jornalística oriunda de instituições privilegiadas (como a polícia), acaba por reproduzir a estrutura de poder, mesmo que involuntariamente. Dessa forma, há uma reprodução de discurso não comprometida com a realidade, mas sim com manutenção e justificação da estrutura de poder vigente.

A polícia, em conjunto com a Guarda Municipal, além de órgão estatal direcionado a manter a ordem, passa a ser também fonte jornalística. Em diversas reportagens veiculadas nos últimos anos, observa-se dados muito pontuais – relativos a informações oriundas de delegados de polícia ou de inquéritos policiais – vinculadas às matérias dos jornais locais. A polícia, enquanto fonte jornalística, acaba cumprindo uma função primordial no sentido de legitimar a garantia da ordem estabelecida. Por outro lado, no que se refere aos pixadores, o que se percebe é um silenciamento perturbador: não há espaço para suas falas nas mídias tradicionais.

 

Foto: Guilherme Pittaluga Hoffmeister.

O grito mudo dos invisíveis

A análise do cenário urbano internacional demonstra que a pixação cresce e tende a seguir crescendo em todo o mundo. A guerra travada contra a pixação em Santa Maria vai na contramão do que se espera das políticas públicas de um município que evoca para si o título de Cidade Cultura. Enquanto o grito das tintas nas paredes seguir abafado pelo preto do papel-jornal será impossível ter uma conversa franca sobre pixação.

Cabe(ria) às mídias, sobremodo às jornalísticas, a incumbência de informar qualitativamente os interlocutores, problematizando o tema e possibilitando a construção do senso crítico e de uma reflexão emancipatória, algo que os veículos tradicionais de comunicação da cidade não têm feito. A cidade carece de informação qualificada e imparcial.

Com ou sem matérias jornalísticas tendenciosas, com ou sem operações, com ou sem repressão. O fenômeno da pixação seguirá crescendo em Santa Maria e no resto do mundo. Doa a quem doer. A grande questão que carece de uma resposta definitiva diz respeito à forma a qual as mídias tradicionais e o poder público responderão à realidade consolidada: se com mais repressão ou se com a abertura responsável de um diálogo necessário.

 

A guerra à pixação na “Cidade Cultura”, pelo viés do colaborador Guilherme Pittaluga Hoffmeister*.

*Guilherme é estudante de Direito e Relações Internacionais.

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