Um gene para tudo

Imagem: Flickr/Thierry Ehrmann.

Se você quiser entender por que a humanidade trava guerras, há um gene para isso. Quer entender por que homens estupram mulheres? Há um gene para isso. Quer entender por que o ‘caráter nacional’ do Leste Asiático, do Ocidente e da África são diferentes? Também já encontramos genes para isso. De fato, se acreditarmos na mídia, há um gene para praticamente toda desigualdade e toda injustiça na sociedade moderna.

O determinismo genético e seu primo mais bruto, o Darwinismo social, estão voltando. Armados com grandes bancos de dados genômicos e um arsenal de técnicas estatísticas, um pequeno mas  sonoro grupo de cientistas está determinado a descobrir a base genética de tudo aquilo que somos e tudo que fazemos.

A relação entre genética e determinismo biológico é quase tão antiga quanto o campo em si. Afinal, um dos principais institutos modernos de genética, o Cold Spring Harbor Laboratory [nos Estados Unidos], começou como um instituto de eugenia cujas atividades incluíam “o lobby por legislação eugênica a fim de se restringir a imigração e esterilizar os ‘defeituosos’, educando o público sobre a higiene racial e disseminando ideias de eugenia”.

A última onda do determinismo biológico dá continuidade a essa longa história, mas se diferencia do passado duma forma crucial. Estamos no início de uma era genômica — um era em que avanços em biologia molecular possibilitam a medição precisa de minúsculas diferenças genéticas entre humanos. Combinando-se-la ao fato de que vivemos numa nova Era Dourada [em referência ao período pós-Guerra de Secessão nos Estados Unidos], em que um pequena elite global tem acesso a inauditas quantias de dinheiro — e precisa de uma justificativa para tal —, as condições já estão dadas para uma perigosa ressurgência do determinismo biológico.

Um dos resultados mais impressionantes dos novos estudos de sequenciamento é o quão similares nós, humanos, de fato somos — nós nos diferenciamos uns dos outros em apenas 0.1% do nosso DNA.

Hoje, o sequenciamento dum genoma custa US$5.000 (R$15.690,00), compreendendo a identificação dos 6 bilhões de As, Cs, Ts e Gs que definem o DNA de um indivíduo. Logo custará menos — muito menos. Dizem-nos que se trata dum momento revolucionário. Com acesso a informações genéticas detalhadas, médicos e conselheiros genéticos logo poderão identificar as doenças a que temos predisposição e auxiliar a prevenir ou a minimizar seu impacto através duma ‘medicina personalizada’.

O conhecimento científico extraído desses dados é inestimável. Começamos a entender como evoluem os vírus, as mutações genéticas que provocam câncer e as bases genéticas da identidade celular. A revolução do sequenciamento nos permitiu estudar a base molecular da regulação gênica e identificar incríveis novos agentes como RNAs não-codificantes (ncRNA) e modificações da cromatina. Todas as nossas ideias sobre biologia estão sendo reformadas.

Um dos resultados mais impressionantes dos novos estudos de sequenciamento é o quão similares nós, humanos, de fato somos — nós nos diferenciamos uns dos outros em apenas 0.1% do nosso DNA. Porém, esse 0.1% do genoma gera as variações que percebemos entre as pessoas em traços como cor de pele, altura e propensão para doenças. Um importante objetivo da genética moderna é relacionar uma variação genômica a um traço ou a uma doença específicos. Para isso, os cientistas estão desenvolvendo novas e poderosas ferramentas estatísticas para analizar a riqueza das sequências genéticas de populações de todas as partes do mundo.

A relação entre genes e traços observáveis é indisputável. Pais altos tendem a ter filhos altos. Pais de cabelos escuros têm filhos de cabelos escuros. Que se herdam traços está claro desde que Georg Mendel, geneticista alemão, codificou suas famosas Leis de Herança — também conhecidas como Leis de Mendel —inferidas de observações estatísticas de mais de 29.000 pés de ervilha. Na genética mendeliana clássica, genes isolados que codificam traços isolados são passados independentemente uns dos outros para a prole. Assim, há um nítido mapa entre informação genética (genótipo) e traços observáveis (fenótipo). Um único gene (tecnicamente, um locus ou posição genética) codifica um único traço e não é influenciado por outros traços que uma pessoa tenha. Ademais, fatores ambientais têm pouca influência sobre a maioria dos traços mendelianos. Exemplos conhecidos que caem sob essa estrutura incluem anemia falciforme e fibrose cística, cada qual causada por uma mutação num gene específico.

No entanto, já está agora claro que as simples hipóteses por trás da genética mendeliana não se aplicam à maioria dos traços e das doenças. Quase todos os fenótipos, de altura a cor dos olhos a doenças como diabetes, emergem de interações extremamente complexas entre múltiplos genes (loci) e o ambiente. Em contraste à genética mendeliana, em que se pode facilmente identificar o gene que codifica um traço particular, simplesmente não há um mapeamento simples de genótipo para fenótipo de muitos traços.

O simples volume de dados de sequenciamento de DNA que estão agora disponíveis convenceu os cientistas de que eles podem superar esse desafio. Para isso, estão desenvolvendo novas ferramentas científicas e estatísticas voltadas para a análise e a extração de informação genética de sequências de DNA. O objetivo desses estudos de associação genômica ampla (GWAS na sigla em inglês) é fornecer um guia para a decodificação da informação contida em nosso DNA e identificar as bases genéticas de traços e doenças complexos. Os GWAS são agora a parte mais importante da genética populacional moderna. Isso se reflete no aumento astronômico no número de GWAS publicados na última década: de algumas poucas unidades em 2005 para mais de 1.300 atualmente. Há GWAS para altura do corpo, peso ao nascer, doença inflamatória intestinal, para como as pessoas respondem a drogas ou vacinas específicas, a cânceres, diabetes, doença de Parkinson e muito mais. Há tantos GWAS que quadros especializados foram criados para ajudar os cientistas a melhor visualizar os resultados de todos esses estudos.

O objetivo dos GWAS é relacionar a variação genotípica à variação fenotípica, o que geralmente se expressa num conceito chamado herdabilidade, que tenta desmembrar a variação fenotípica num componente genético e num componente ambiental.

Dada a crescente prevalência dos GWAS, é útil explicar a lógica básica por trás desses estudos. Os conceitos de fenótipo e variação genética têm um papel central nos GWAS. A variação fenotípica é definida como a variação de um traço numa população. Para que se possa definir uma variação fenotípica, é necessário que se especifique uma população, sendo esta uma escolha a priori que deve ser tomada para que se construa o modelo estatístico. A escolha da população é tendenciosa e entram aí suposições sociais ocultas — o que é especialmente impactante para estudos que tentam compreender variações genéticas entre grupos ‘raciais’.

Os GWAS tentam explicar, através da estatística, variações fenotípicas perceptíveis em termos de variações genéticas na mesma população. É aí que a genômica moderna brilha. Se, na era pré-genômica, precisava-se dum grande esforço para se medir a variação genética dum único locus, agora é possível consultar um banco de dados público prontamente disponível em busca de variações genéticas de milhares de indivíduos de todo o genoma. A maioria dos GWAS focam-se sobre os polimorfismos de nucleotídeos único (SNPs): variações de sequências de DNA que ocorrem numa única base no genoma — por exemplo: AAGGCT vs. AAGTCT. Os cientistas já observaram 12 milhões de SNPs em populações humanas. Esse número pode parecer extremamente grande, mas existem seis milhões de bases no DNA humano. Ou seja, apenas 0.2% de todas as bases do DNA exibem alguma variação entre todas as populações humanas de que se têm amostras. Para um traço como a altura, existem cerca de 180 SNPs que sabidamente contribuem para a variação de altura humana.

O objetivo dos GWAS é relacionar a variação genotípica à variação fenotípica, o que geralmente se expressa num conceito chamado herdabilidade, que tenta desmembrar a variação fenotípica num componente genético e num componente ambiental. Em outras palavras, a herdabilidade se define como uma fração da variação fenotípica que pode imputar uma variação genética. Uma herdabilidade de zero significa que toda a variação fenotípica é, na verdade, ambiental enquanto que uma herdabilidade de 1 significa que se trata de algo inteiramente genético.

Por trás do conceito de herdabilidade jaz um mundo inteiro de suposições simplistas sobre como a biologia funciona e como os genes e o ambiente interagem, filtradas por modelos estatísticos cada vez mais complicados e obtusos. A herdabilidade depende das populações escolhidas e do ambiente examinado nos experimentos. A própria distinção cortante entre ambiente e genes é, até certo ponto, artificial. Como sugere Richard Lewontin:

“A própria natureza física do ambiente tal como ela é relevante para os organismos é determinada pelos próprios organismos. Uma bactéria que vive num meio líquido não sente a gravidade por causa do seu diminuto tamanho, mas o seu tamanho é determinado pelos seus genes. Logo, é a variação genética entre nós e as bactérias que determina se a força da gravidade nos é relevante”.

Ou seja, apesar de a herdabilidade ser um conceito útil, trata-se, no entanto, duma abstração — uma que depende inteiramente dos modelos estatísticos (com todos os seus preconceitos e suposições) usados para defini-la.

Mais importante aqui é perceber que, até mesmo para um traço altamente transmissível como a altura, o ambiente muda drasticamente os traços observáveis. Por exemplo, durante a Guerra Civil da Guatemala, os esquadrões da morte e os paramilitares apoiados pelos EUA brutalizaram a população indígena rural do país, resultando em desnutrição generalizada. Muitos refugiados maias fugiram para os Estados Unidos para escapar da violência. Ao se compararem as alturas de crianças maia-guatemaltecas e maia-estadunidenses entre seis e doze anos de idade, os pesquisadores descobriram que as crianças estadunidenses eram 10.24 centímetros mais altas que as guatemaltecas, em grande parte devido à nutrição e ao acesso a serviços de saúde. Em comparação, o gene conhecido que mais influencia a altura, o gene do fator de crescimento GDF5, é associado com mudanças de altura de apenas 0.3 a 0.7 centímetros (e este é um dado exclusivo para participantes com descendência europeia).

Tais dramáticas influências ambientais são comuns. Por exemplo, a herdabilidade da diabetes tipo 2, ajustada por idade e índice de massa corporal (IMC), é de entre 0.5 e 0.75 (um pouco menor do que a herdabilidade da altura, mas, como dito acima, esse número deve ser considerado com certo grau de ceticismo). Atualmente, os GWAS podem explicar somente cerca de 6% dessa herdabilidade, sem que haja nenhum locus (gene) particularmente determinante se um indivíduo vai ou não desenvolver diabetes. Em contraste à genética, um IMC maior — uma simples medida de quão sobrepesada uma pessoa está — aumenta as chances de se desenvolver diabetes em até oito vezes.

A mesma história se repete para o QI (quociente de inteligência) — o aspecto mais importante dos estudos genéticos sobre ‘inteligência’. Desconsiderando-se a validade dos testes de QI por um momento, estudos mostram um aumento contínuo na pontuação de QI através do século XX (o Efeito Flynn), indicando a importância do ambiente em detrimento da genética na determinação do QI.

A esquizofrenia é ainda outro exemplo. Em seu excelente blogue Cross-Check, John Horgan discute sobre CMYA5, apontado, na mídia, como o ‘gene da esquizofrenia’. Ele afirma que, se você portar esse gene, o risco de que você tenha esquizofrenia aumenta entre 0.07% e 1.07%. Por contra, “se você tem um parente em primeiro grau com esquizofrenia, como um irmão, as chances de você se tornar esquizofrênico aumentam em 10%, o que significa 100 vezes mais do que o risco acrescido de se portar um gene CMYA5”. Tais resultados não são incomuns. O campo tem se preocupado bastante com a falta de poder de previsão dos GWAS (geralmente discutida no contexto do problema de ‘herdabilidade ausente’).

Dada a dificuldade de se usarem GWAS para explicar a altura — um traço facilmente quantificável e mensurável —, o absurdo de se propor a identificação da base genética de traços mal definidos, cronologicamente variáveis e difíceis de se calcularem tais como inteligência, agressividade ou preferência política é evidente.

Apesar do êxito limitado dos GWAS, é improvável que as reivindicações genético-deterministas diminuam num futuro próximo em grande parte por causa do volume de novos dados genéticos sendo gerados. Esse dilúvio de dados é o sonho do determinismo biológico. Caso você ache que eu esteja exagerando, eis um trecho dum estudo recente sobre “a arquitetura genética da preferência política e econômica”, publicado em PNAS, um periódico científico de ponta. Sem supresa, os SNPs identificados “explicam somente uma pequena parte da variação total”. Longe de se sentirem desencorajados, os autores concluem o resumo com uma pitada de otimismo:

“Estes resultados carregam uma mensagem de cautela em relação a se, como e quão cedo dados genéticos moleculares poderão contribuir, e potencialmente transformar, a pesquisa nas ciências sociais. Propomos algumas respostas construtivas para os problemas de inferência colocados pelo pequeno poder explanatório de SNPs individuais”.

A pura soberba fala por si. Dada a dificuldade de se usarem GWAS para explicar a altura — um traço facilmente quantificável e mensurável —, o absurdo de se propor a identificação da base genética de traços mal definidos, cronologicamente variáveis e difíceis de se calcularem tais como inteligência, agressividade ou preferência política é evidente.

De qualquer maneira, a cartilha do determinismo genético na era da genômica é clara: colete grandes quantidades de dados de sequenciamento. Encontre um traço mal definido (como preferência política). Encontre um gene que seja estatisticamente super-representado na sub-população que ‘possui’ esse traço. Declare vitória! Ignore o fato de que esses genes não explicam de fato a variação fenotípica do traço. Em vez disso, afirme que, se ao menos houvesse mais dados, as estatísticas funcionaram perfeitamente. Generalize esses resultados ainda mais, transpondo-os a níveis de sociedade e afirme que eles explicam as bases genéticas fundamentais do comportamento humano. Escreva um comunicado de imprensa e espere que a mídia publique entusiasmadas resenhas. Repita o procedimento com outro conjunto de dados e com outro traço.

O determinismo biológico parece plausível justamente porque dá a ilusão de que é fundamentado sobre observação científica. Nenhum cientista descordará de que os blocos de construção básicos dum organismo estão codificados no seu material genético e que a evolução, através duma combinação de deriva genética e seletividade, formou esses genes. No entanto, tentar atribuir um conjunto de genes ao comportamento humano, seja comer um pacote inteiro de batata chips ou travar guerras — é um exercício quixotesco.

Como Nigel Goldenfeld e Leo Kadanoff imploram num brilhante artigo que discute sistemas complexos: “Use o nível adequado de descrição para apreender o fenômeno de interesse. Não modele escavadeiras com partículas quark”. Por mais que seja verdade que todas as propriedades duma escavadeira resultam das partículas que a compõem, como quarks e elétrons, é inútil pensar sobre tais propriedades (sua forma, cor, função) nos termos dessas partículas. A forma e a função duma escavadeira são propriedades emergentes do sistema como um todo. Assim como não se pode reduzir as propriedades duma escavadeira àquelas de partículas quark, não se pode reduzir comportamentos e traços complexos dum organismo a seus genes. Karl Marx afirmou o mesmo quando disse que “mudanças meramente quantitativas, ao chegarem a certo ponto, transformam-se em diferenças qualitativas”.

Se as bases filosóficas e científicas das reivindicações do determinismo genético são tão problemáticas, por que um pensamento tão desleixado ganha matérias de capa em cadernos científicos de jornais como The New York Times? Para respondermos a essa pergunta, precisamos considerar não só a ciência mas também a política.

O atrativo do determinismo biológico é que ele fornece explicações científicas plausíveis para contradições sociais produzidas pelo capitalismo.

Vivemos numa era em que corporações lucram como nunca antes, um elite acumula enormes riquezas e a desigualdade chega a níveis que achávamos ter já ultrapassado. As contradições entre o capitalismo neoliberal e os impulsos democráticos são continuamente expostas. As afirmações de oportunidades iguais que subjazem muito do pensamento liberal tornaram-se farsas. A incongruência entre o que o capitalismo professa ser e a realidade do capitalismo tem se tornado cada vez mais aparente.

O atrativo do determinismo biológico é que ele fornece explicações científicas plausíveis para contradições sociais produzidas pelo capitalismo. Se a diabetes tipo 2 é reduzida a um problema genético (e, até certo ponto, não deixar de sê-lo), então não temos que pensar sobre o aumento da obesidade e as causas por trás disso: o monopólio do agrobusiness, a desigualdade de renda e as disparidades na qualidade dos alimentos de acordo com classe social. Combine-se isso à prevalência de soluções farmacológicas para doenças, empurradas pela indústria farmacêutica, e fica-se com a impressão de que complexos fenômenos sociais são reduzíveis a simples fatos científicos.

O determinismo biológico, para parafrasear o grande crítico literário Roberto Schwarz, é uma ilusão socialmente necessária que está bem fundamentada na aparência. Assim como a arte e a literatura, a ciência “é historicamente formada e registra os processos sociais aos quais deve sua existência”. Os cientistas herdam os preconceitos das sociedades em que vivem e trabalham. Em nenhum outro lugar isso é mais óbvio do que na incarnação moderna do determinismo biológico com suas suposições decididamente neoliberais sobre pessoas e sociedades.

A história da biologia está repleta de horríveis exemplos do mau uso da genética (e das teorias evolucionistas) para justificar poder e desigualdade: justificativas evolucionistas para a escravidão e para o colonialismo, explicações científicas para o estupro e para o patriarcado e explicações genéticas para a superioridade inerente da classe dominante. Precisamos trabalhar incansavelmente para garantir que a história não se repita na era da genômica. 

Um gene para tudo, pelo viés de Pankaj Mehta* e traduzido por Gianlluca Simi

*Mehta é professor de Física na Universidade de Boston, onde pesquisa os cruzamentos entre física e biologia. Este texto foi originalmente publicada na revista Jacobin. A tradução aqui publicada foi autorizada por ambas as partes supracitadas.

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