À LIVRARIA DO GLOBO, COM CARINHO

Os verões sempre foram tórridos em Santa Maria. As férias escolares começaram antes de novembro terminar. Sabia que não haveria ônibus, avião, trem, carona.

Consegui emprestado os volumes de O Tempo e O Vento. Fiz da poltrona de braços largos um navio, sempre pronto para zarpar do cais da sala de visitas.

Naqueles dias quentes, com a cabeça escorada num dos braços da poltrona e com as pernas sobre o outro: viajava. Continentes, arquipélagos e retratos.

Quando cansava, olhava o outro mundo pelas escotilhas imaginadas nas duas janelas, que ladeavam a porta para a rua.

A viagem tinha que terminar antes das aulas começarem, na primeira segunda-feira de março. No leme, o velho Veríssimo. Aquele do qual só conhecia o perfil que Jorge de Andrade fizera para a revista Realidade.

Em alto mar, às vezes me aproximava da costa, fui surpreendido pelo amigo suado, ofegante, a cara em brasa. Surgia como um pirata assaltando minha viagem.

Enquanto eu fazia duma poltrona um navio sem limites, o amigo fazia da outra ao lado o seu porto seguro. Sob o braço molhado trazia Hermann Hesse. Nossos mapas de viagem se cruzaram.

Não lembro mais se ele já havia lido Érico Veríssimo. Sem demora, troquei de bússola. Hermann Hesse assumia o comando, com Peter Camenzind no meu leme.

O coração acelerado do amigo em busca da outra poltrona foi porque, passando pela Primeira Quadra, esteve na Livraria do Globo. Naquele tempo a livraria era enorme, pé-direito alto. Havia mezanino de onde os funcionários enviavam, aos clientes, mercadorias numa pequena caixa de madeira amarrada a um cordão. Além das estantes atrás dos balcões, os livros ficavam expostos pelo espaço de circulação da loja. As livrarias ainda trabalhavam com estoques. Seu Milton, para mim, era o gerente. Belvení avisava da chegada dos livros. Eu admirava a solenidade de seu Bráulio desenhando a letra no bloco, para fazer a nota da compra.

Não sei quanto tempo levou a visita do meu amigo à livraria. Chegou lá em casa na corrida para escapar do sol ou, também, de vergonha.

Parecia-me um gigante, como os das minhas primeiras leituras, atravessando a Saldanha Marinho em diagonal, com um pé na esquina do Café Turfista e o outro na esquina do Centro Cultural.

– Na estante ao lado da porta vi o Hesse. Peguei e saí.

– Correndo?

– Comecei a correr depois. Pensei no Demian, mas era difícil.

– Para carregar os dois…?!

Peter Camenzind não era meu, mas não deixaria de lê-lo também naquele verão.

– Eu fico com o livro para ler depois,se não atravesso a praça. Nunca mais poderás passar pela Primeira Quadra.

Tinha que parar no tempo, ler o Hesse e depois continuar no vento.

Ancorei a poltrona na sala. Li a prosa poética de Hermann Hesse, embaixo do caramanchão de maracujá. Deitado na rede, sentindo o cheiro do musgo que desde sempre cobriu aquele muro rente.

Dias mais tarde, meu amigo voltou para buscar o seu Peter Camenzind, jurando que o havia comprado. Voltei ao vento, sem perder tempo. Outra vez na poltrona. O tempo e o vento não cabiam na rede.

Logo depois, a prima, que era professora, autorizou minhas compras na sua conta corrente da Globo. Estabelecemos um trato, que possivelmente eu nem sempre tenha cumprido: para comprar novo livro, só depois do outro pago “a perder de vista”.

(A Livraria do Globo centenária, em Santa Maria, fechou definitivamente suas portas, em maio de 2009 – agora, na 2ª quadra da Dr.Bozano – . No mesmo local, em junho do mesmo ano, abriu uma papelaria da Livraria da Mente.)

À LIVRARIA DO GLOBO, COM CARINHO,  pelo viés de Paulo Roberto Araújo, professor do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Maria.

Para ler mais crônicas acesse nosso Acervo.

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