A BATALHA MIDIÁTICA NA GUERRA DA POLÍTICA VENEZUELANA

11 de abril de 2002. No Palácio Miraflores, sede do governo da Venezuela, o presidente Hugo Chávez é preso por militares. Os meios de comunicação privados anunciam que Chávez renunciou. É a cena final do segundo ato, a tentativa de Golpe de Estado. O ato seguinte é o desmentido sobre a renúncia e a reação da população, que desce os morros para exigir a volta do presidente. Com a pressão popular e o apoio de setores do exército, Chávez volta.

O primeiro ato da peça montada pela direita venezuelana contara com participação ainda mais decisiva dos grandes meios de comunicação. A tomada do poder pelos golpistas, que se mantiveram na presidência por poucas horas, começara com a manipulação de imagens gravadas em protestos simultâneos de chavistas e oposicionistas. Os protestos se cruzaram na Ponte Laguno, nas proximidades do Palácio. As imagens transmitidas pelas maiores emissoras de televisão mostravam os chavistas atirando, de cima da ponte, pretensamente contra os outros manifestantes. Mais tarde, outras imagens, captadas pela comunitária Cátia TV, desvendaram a farsa: os tiros eram dados em direção ao outro lado, onde não havia ninguém sob a ponte. Eram respostas a atiradores plantados em prédios nas redondezas.

Na sede da Cátia TV, painel conta a história da tentativa de Golpe contra Hugo Chávez. Foto: Alexandre Haubrich

2011. Entrevisto Oscar Sotillo, um dos coordenadores do Coletivo La Mancha. Ele conta que, há dez anos, não havia nenhuma emissora comunitária de rádio ou TV legalizada na Venezuela. Hoje são mais de quatrocentas rádios. “Pequenas, com alguns problemas, mas de nenhuma para 400 é um grande salto”, explica Oscar. Emissoras comunitárias de televisão já são mais de cinquenta.

Esse salto duplo não é sem motivo. Com a oposição feroz que sempre sofreu por parte dos meios de comunicação e com a experiência da tentativa de Golpe em 2002, o governo venezuelano percebeu a importância de fortalecer novas formas de mídia, de tornar mais horizontal a comunicação no país. O povo também, garante Oscar: “A partir de 2002, com o golpe de Estado contra o presidente Chávez, em abril, vimos a necessidade absoluta de que o povo teria que estar empoderado da comunicação. A partir dali se desenvolveu todo o sistema nacional de meios públicos e se estimulou muito a participação nos meios alternativos e comunitários”.

Debate sobre mídia alternativa na Feira do Livro de Caracas. Foto: Alexandre Haubrich

O La Mancha, de Oscar Sotillo, é um dos muitos coletivos que se organizaram nos últimos anos por toda a Venezuela. A atuação engloba diversas formas de comunicação: imprimem jornais e revistas, mas também livros sobre política ou poesia, ao mesmo tempo em que promovem saraus e debates e fazem grafites político-culturais nos muros de Caracas. A mídia é a cidade inteira. E, para ocupá-la, os coletivos têm o apoio das emissoras comunitárias de rádio e televisão, e de sites, como o Aporrea.

Zuleika Matamoro é parte da direção nacional da Marea Socialista, uma corrente do PSUV. Como parte de sua militância, Zuleika também é uma das coordenadoras do Aporrea, um site venezuelano que é uma espécie de termômetro da esquerda do país. O surgimento do Aporrea, como explica ela, também não foi por acaso: “No golpe de 2002 toda a mídia manipulou a verdade, invisibilizaram o que estava acontecendo, e o Aporrea surgiu como uma necessidade do movimento popular, de maneira independente e autônoma, de ter uma forma de comunicação para poder ter uma comunicação veraz, oportuna no sentido da luta dos movimentos populares, dos indígenas, dos trabalhadores”.

As críticas ao governo Chávez são constantes, mas o apoio ao processo revolucionário é consenso. O site é mantido por pessoas ligadas a diversas organizações sociais, das mais variadas tendências da esquerda venezuelana: “a equipe do Aporrea somos, na verdade, muito poucos. Não passamos de dez pessoas, mas temos muitos articulistas, muitos colaboradores. A força do Aporrea está precisamente nas pessoas e nas organizações que se sentem representadas no site”, diz Zuleika.

Se o Aporrea tem sua força nas organizações sociais, a Cátia TV, principal emissora comunitária de televisão do país, se fortalece na interação direta com o povo. São os moradores das comunidades que produzem todo o conteúdo veiculado no canal, que é transmitido para boa parte de Caracas em TV aberta. “No vea televisión, hágala” é o slogan da Cátia. 70%¨da programação é feita a partir de oficinas realizadas nas comunidades pelos integrantes do canal. Os outros 30% chegam através de produtores independentes. Como muitas outras emissoras comunitárias, a Cátia TV contou com ajuda governamental para começar a operar, através de um fundo social que subsidiou a implantação desses veículos.

Redação em Português da TeleSur. Foto: Alexandre Haubrich

Mídia estatal forte e governista

Ao mesmo tempo em que investe na mídia comunitária, o governo Chávez tem grande preocupação com o fortalecimento dos veículos estatais. A TeleSur, na verdade uma emissora de televisão multi-estatal – Venezuela, Cuba, Argentina e Uruguai administram e financiam a emissora –, é a menina dos olhos. As transmissões começaram em 2005, integrando conteúdo produzido principalmente a partir dos quatro países. A TeleSur fez coberturas importantes no Golpe de Estado em Honduras, contra Manuel Zelaya, e nas recentes revoltas no Norte da África, coberturas que a consolidaram como canal de excelência em jornalismo internacional. Mas a preocupação com a integração latino-americana e com a qualidade jornalística não servem para impedir um problema enfrentado em todos os veículos estatais venezuelanos: a interferência governamental.

Sem se identificar, alguns jornalistas reclamam da impossibilidade de produção de matérias críticas ao governo venezuelano. Identificando-se, Clarissa Mello, chefe da redação em português da TeleSur, critica. Diz que o jornalismo na Venezuela passa por um momento difícil, em que tornou-se panfletário por conta da polarização política do país: “Acho que as pessoas acabam tomando muita posição contra e a favor e acho que, até mesmo apoiando o governo não precisa ser tão panfletário, tão parcial. Mas é difícil você mudar, porque às vezes é a própria linha do governo. A decisão vem lá de cima”, lamenta.

Inspirada no modelo da TeleSur, nasceu há pouco mais de três anos a Rádio del Sur, apresentando na Venezuela conteúdo produzido por movimentos sociais em diversas partes do mundo. Apenas na América Latina são mais de 90 parcerias com rádios comunitárias ou ligadas a organizações sociais, incluindo o MST no Brasil. Como a TeleSur, a Rádio del Sur sofre com as ingerências de setores da burocracia estatal. Recentemente, no caso da extradição do jornalista colombiano Joaquim Perez Bezerra, criticada pela esquerda venezuelana – critica que contou com apoio de intelectuais de todo o mundo –, uma reunião do Ministério das Comunicações com as direções de todos os veículos estatais serviu para a ordem: não se poderia tocar no assunto. A Rádio del Sur desobedeceu, o que levou à demissão de alguns jornalistas e do então diretor. Nieves Valdez, atual coordenadora da Rádio, defende a opção editorial: “Nesse caso dos extraditados (ela se refere também a Julian Conrado, em vias de ser extraditado) temos que estar conscientes da nossa missão. É uma rádio do Estado venezuelano. E apesar de que se possa estar ou não de acordo com um caso em particular, sempre temos que ter clara a nossa missão, e sempre confiamos em que as decisões do presidente Hugo Chávez são as acertadas. E ele tem uma relação com a Colômbia que nós devemos respeitar”.

TeleSur e Rádio del Sur nasceram para completar o espectro da comunicação estatal, que já contava com a VTV, a ViveTV e a ANTV, e também foi acrescido, há dois anos, com o Ciudad Caracas, que hoje é o jornal de maior circulação na capital venezuelana, com 120 mil exemplares distribuídos gratuitamente todos os dias. Iniciativa da prefeitura de Caracas, o jornal é encontrado em 800 pontos de toda a cidade. Perguntado sobre a “relação com o governo”, Felipe Sandia, assessor editorial do Ciudad Caracas, é taxativo: “Nós somos o governo. Às vezes parece que não, porque somos críticos, criticamos o governo, mas somos o governo”.

Mídia privada golpista e raivosa

A defesa da “crítica construtiva” é também a reclamação sobre a “crítica pela crítica”. É consenso entre os comunicadores da esquerda venezuelana – incluindo aí veículos independentes e estatais – a percepção extremamente negativa em relação à mídia privada. Participantes ativos da tentativa de Golpe de Estado em 2002, os veículos ficaram desfalcados, em 2007, da RCTV, principal emissora de televisão do país, que não teve sua concessão renovada. Mas nem por isso perderam sua força.

Globovisión e Venevisión possuem as maiores audiências do país. A primeira é focada em noticiário, sempre de ataque ao governo e a Hugo Chávez. A segunda, cujo dono é Gustavo Cisneros, um dos maiores empresários da comunicação latino-americana, pouco transmite noticiários. Sua programação é quase totalmente formada por novelas e programas de entretenimento. Além da RCTV, da Globovisión e da Venevisión, a Televen também teve participação ativa na tentativa de golpe de 2002. O quarteto foi chamado por Chávez de “os quatro cavaleiros do apocalipse”.

Nieves Valdez, da Rádio del Sur, concorda com o presidente, e pede mais regulação em torno das ações desses meios: “Há circuitos completos de meios privados em todo o país que têm uma só mensagem, e não é de crítica ao presidente, é de mentiras. Os programas de televisão apenas insultam ao presidente Chávez, coisa que se acontece em outro país… Aqui há libertinagem. Algumas instâncias do Estado que deveriam regular isso não o fazem com a devida força”. Felipe Sandia, do Ciudad Caracas, faz coro: “Você vê televisão e pode ouvir qualquer tipo de barbaridades. E todo mundo fala o que quer e não acontece nada. São críticos irracionais da gestão. Uns de uma maneira, outros de outra maneira, mas todos divulgando um país muito diferente. Buscamos ser críticos, mas de acordo com a realidade”, diz.

Na Venezuela não se fala em “neutralidade” dos veículos. O antichavismo da mídia privada é raivoso e é aberto, enquanto os meios estatais são abertamente pró-governo, ainda que, em medidas diferentes, alguns sejam críticos. A comunicação alternativa de modo geral não é chavista ou anti-chavista, mas essencialmente revolucionária. O enfrentamento entre as forças integradas ao “processo” e contrárias a ele reflete-se diretamente na mídia. O caráter político da comunicação venezuelana é flagrante. O confronto é aberto. Nessa dinâmica de avanços e retrocessos, de ataques e contra-ataques, a mídia é um ator fundamental da Revolução Bolivariana que caminha na Venezuela. A disputa que se dá nesse espaço influencia e influenciará fortemente nos rumos do processo.

A BATALHA MIDIÁTICA NA GUERRA DA POLÍTICA VENEZUELANA, pelo viés do colaborador Alexandre Haubrich*

*Haubrich é jornalista e editor do blogue JornalismoB. Colabora com diversas publicações, entre elas a revista o Viés. Este texto foi escrito desde Caracas, Venezuela. Leia outros textos publicados por Haubrich na revista o Viés aqui

Um comentário sobre “A BATALHA MIDIÁTICA NA GUERRA DA POLÍTICA VENEZUELANA

  1. Muito bom artigo do Alexandre Haubrich, parabéns!
    Com tudo, podemos dizer que a Venezuela esta bem democraticamente em comunicação que muita países rankeados como pioneiros em “liberdade de imprensa”!

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