ESPELHO OXIDADO

Obra “Mãos” (1932), de Cândido Portinari.

Despertou tarde, muito tarde esta manhã e viu que as margaridas do  vaso  sobre  o  criado-mudo  já estavam  todas murchas. Ganhou o ramo quando mesmo? Talvez  num  dia de desculpas esfarrapadas de primavera soturna. Aliás, o inverno é que parece ser  soturno, mas os dias  sempre parecem  soturnos  quando  trazemos o coração neste estado. Fim  de  outubro, fim de mês qualquer. Não  começa e nem termina o ano. Não marca  passagem  de nada  a ninguém. Margaridas  já fétidas sobre o criado-mudo. Ela não quer memórias, cartas, flores ou versos.  Presentes inúteis  em  fim  de  tarde depois de um longo dia chato de escritório. Depois  de  um  longo dia  chato  amarelado  com  cheiro de  incenso  barato  da  companheira de sala.

Quando  recebeu  as margaridas,  teve  vontade  de  se  transformar  em  pá  e  cavar  o  buraco da  própria  sorte,  infestada  de vergonha  e  rigidez  de  sentimentos.  Jurou  na  frente  do  espelho oxidado  do  banheiro  que  nunca iria  abrir  a  porta  do miocárdio para mais ninguém. Fechada, dali em  diante,  oxidada  junto  com espelho barato  e  intoxicada  com incenso  de  canela  nas  narinas. Sonhava  com margaridas,  príncipes  sem  cabeça  ou  sapos  com dentes. Mastigar  a  própria  sorte e  cuspi-la  no  bueiro mais  próximo não era tarefa fácil.

Empacotaria  os  sentimentos todos chegados em uma caixa de tamanho médio  e  despacharia para distante. Mas usar e descartar,  essa  poderia  ser  uma  lógica procriadora dos bons frutos. Isso ela  não  jurara  defronte  do espelho  oxidado. Passar  a  língua sem  compro  misso.   Usar  de artifícios…

Ela  salta  da  cama  e  joga  as margaridas pútridas na  lixeira do banheiro  de  espelho  oxidado. Está  horrível  no  reflexo. Apareceram  rugas  novas. Não  vale  a pena  pensar  em  príncipes  sem cabeça  ou  sapos  banguelas. Precisa  tingir  o  branco  teimoso do  cabelo. Precisa parar de pensar  na  porta  do miocárdio,  com tranca ou sem tranca.

Toma  café  amargoso  e pensa em  trocar o  espelho oxidado do banheiro.  Vê  o  telefone  bege amarelado sobre a mesa e pensa na conversa com a amiga do  incenso de  canela.  Se  ela  recebesse margaridas no  trabalho, dissera,
morreria de  emoção, ou vaidade, ou surpresa, ou imodés  tia, ou sei lá o que mais que ela  falou. Mas ela, ela não  se derrete. Não  se  rende. Não se vende. Mas pensando bem, usar  e des  cartar  é uma boa ideia. Ela prefere  as  hortênsias, mais raras  e  caras. Ainda  se  lembra da voz melada da  companheira. Tomara que ela não tenha o hábito de acender  incenso  de  canela  no quarto enquanto copula.

ESPELHO OXIDADO, pelo viés da colaboradora Munique Duarte*

*Munique é jornalista e escritora.

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