MOVIMENTO OPERÁRIO NO BRASIL: ELEMENTOS CÍCLICOS E POSSIBILIDADES HISTÓRICAS

Mais um dia do trabalhador é comemorado em nosso país, no entanto, poucos motivos históricos tem a classe para essa comemoração. Uma das formas de manifestar a degeneração do ciclo organizativo que vivemos são os grandes eventos de sorteios realizados por centrais sindicais, que vão desde computadores e carros até casas, entregues aos participantes nesses megaeventos. Para entender o motivo pelo qual as organizações sindicais estão usando esses mecanismos para “mobilizar” seus representados, é preciso aprofundar a análise da conformação da classe e de suas ferramentas de luta no Brasil.

Para esse aprofundamento, precisamos utilizar alguns conceitos que pretendem expressar a realidade contraditória e processual que o capitalismo desenvolveu por essas terras. É necessário compreender a estrutura econômica, a estrutura de classes, a estrutura política, quais as bandeiras de luta e as formas de luta e organização dos trabalhadores.

PRIMÓRDIOS DA LUTA

Num primeiro período, de 1500-1930, ocorrem as lutas dos escravos, colonos e operários contra as expropriações feitas pelo sistema colonial ligado à metrópole portuguesa, numa conformação política imperial e pseudorrepublicana. O estado era completamente rígido, com pouca capacidade de intervir de outra forma que não a força. A utilização do exército em vários conflitos exemplifica isso, seja na questão do Contestado ou na questão de Canudos. A expansão do capitalismo, mesmo que incipiente ou subordinado às empresas internacionais, como no caso da Lumber e Rayway Co, no Paraná e em Santa Catarina, criaram a expropriação dos moradores por décadas nessas regiões.

As formas de luta e de organização dessas populações só podiam ser também incipientes e subordinadas e, no caso de Canudos e Contestado, o elemento da realidade dado era a religiosidade, confluindo para movimentos milenaristas com fortes tendências críticas à república, devido ao contexto onde esta traz relações econômicas e políticas que abalam as estruturas anteriormente existentes. Assim, a contestação ficava presa a uma negatividade pouco estruturada e, por esse elemento, muito violenta. A derrota militar dessas experiências redunda em refluxo e fragmentação dos trabalhadores na região.

Algo parecido ocorreu durante muitos anos com os escravos, que, mesmo trazendo algumas experiências do continente africano, não conseguem opor-se sistemicamente ao sistema de mercado em expansão. Precisando criar redutos de sobrevivência para poderem fugir das fazendas, surgindo, assim, os quilombos.

Nos centros urbanos mais importantes, já com indústrias instalando-se, as organizações anarco-sindicalistas, oriundas de migrantes europeus, conquistam as primeiras vitórias da classe, confrontando-se diretamente contra os patrões e com o Estado. Essas organizações, em principio de autoajuda, transformam-se em escolas, clubes e associações que estruturam a vida de muitos trabalhadores. Sua estratégia baseia-se em realizar greves por categoria que poderiam se tornar uma greve geral revolucionária, superando a exploração por uma sociedade federada em pequenos grupos cooperativos.

Dessas greves, os patrões e os governos cederam conquistas como 13º salário, férias remuneradas e, principalmente, jornada de 8 horas diárias. Uma greve geral em São Paulo no ano de 1917 chegou a erguer em armas a cidade toda durante mais de um mês, resistindo ao ataque das tropas estatais. Mas o inimigo mudou sua técnica, negociou reivindicações e, assim, foi flexível em sua tática e dobrou o movimento. Exaurindo, assim, a estratégia anarquista que pressupunha uma ação unívoca no Estado com uma reação revolucionária dos trabalhadores. Finda-se aqui a hegemonia da linha anarquista no movimento operário. No entanto essas lutas de resistência deixam uma herança política importante para o ciclo que se abre com os anos de 1930.

VARGAS E O POPULISMO

O segundo período, que fica entre 1930 e 1964, é característico da hegemonia do Partido Comunista Brasileiro, criado em 1922. A estrutura econômica desse ciclo é de expansão da indústria com a manutenção do latifúndio em sua estrutura política. Se pensarmos que é Getúlio Vargas quem “dirige” esta transição pós-crise de 1929, numa política de substituição de importações, vemos que a Revolução Burguesa no país é, no mínimo, uma caricatura de revolução, pois um latifundiário, com base populista, cria as condições para o desenvolvimento de uma burguesia no Brasil. Essas características são essenciais para entender a fraqueza de classe da burguesia. E digo fraqueza não no sentido político, pois incrustada no estado consegue orientar as políticas públicas para a tendência geral da sociedade em favorecer o seu interesse de classe no interior da divisão internacional do trabalho.

As bandeiras de luta do período são continuação das lutas por melhorias de condições de trabalho, férias, regulação do trabalho feminino e infantil e extensão dos direitos conquistados para outras categorias. Mas também surge a Aliança Nacional Libertadora (ALN), de Luis Carlos Prestes, que projeta essas reivindicações para um nível político mais elevado, questionando a estrutura mesma da sociedade a afirmando o internacionalismo da organização dos trabalhadores. A tentativa de um levante militar em 1935, conhecida como Intentona Comunista, foi derrotada militarmente e, novamente, temos um aprendizado sobre a materialidade da consciência de classe no Brasil e alguns questionamentos para esse período imediatamente incorporada pelo inimigo. Vargas cria o Ministério do Trabalho, atrela a estrutura sindical e regula as leis trabalhistas com a CLT, manobrando instrumentos concretos para dar consistência ao populismo. Atende necessidades corporativas de trabalhadores, tornando-se referência política dessas massas. Nasce o populismo, trazendo para dentro do Estado a participação e a capacidade de negociar os conflitos entre capital e trabalho. Procedimentos trazidos diretamente do fascismo de Mussolini na Itália.

A saída de Vargas em 45 e seu retorno em 51 nos “braços do povo” demonstram que a política de conciliação era forte e que as organizações de trabalhadores não conseguiam se contrapor a ela. A criação de empresas estatais como PETROBRAS, CSN e a construção de grandes obras eram o prelúdio de desenvolvimento acelerado do grande capital no país e, internamente, a classe dominante iniciava uma disputa pela hegemonia do bloco conservador. Os setores mais direitistas tinham sérias reservas ao populismo, pois trazia as massas ao cenário, mesmo que subordinadas, mas com riscos de perda de controle sobre elas. Isso poderia ser um risco para a estabilidade do sistema. Mas o suicídio de Vargas em 1953 adia as pretensões militaristas desse setor.

Entre 54 e 64 temos um acirramento das lutas de classe no país, com a criação de brechas para uma crítica estrutural aos mecanismos de desenvolvimento econômico. Nesses anos surgem ligas camponesas, grandes greves em centros operários importantes, a organização de trabalhadores rurais em sindicatos, campanhas em defesa da escola pública e uma série de movimentos que mobilizam as massas populares a reivindicarem direitos. O programa de Juscelino de crescimento acelerado, a tentativa de Jânio Quadros de renunciar a volta ao poder e principalmente a de João Goulart de atender as reivindicações das reformas de base, tornaram demasiado arriscado a manutenção do regime “democrático”.

GOLPE MILITAR

Vem, então, o Golpe militar de 1964, que desmonta as possibilidades organizativas criadas nos últimos anos e assassina, prende e tortura as lideranças sindicais e populares, surgidas das lutas pelas reformas de base.  A economia é alavancada pelo investimento externo, instalam-se as grandes montadoras em SP e viabiliza-se a integração do Brasil com grandes obras de infraestrutura e serviços. A classe é obrigada a lutar na clandestinidade ou por dentro dos aparelhos sindicais ligadas ao Estado. Inúmeros sindicatos são alvo de intervenção do Ministério do Trabalho impedindo que se efetivassem reivindicações. As organizações revolucionárias se fragmentam, por motivos de avaliação frente à conjuntura e pela forma de atuação durante a ditadura. Inúmeras dissidências, frações, tendências são criadas e adotam as mais diversas táticas de luta.

No entanto, as próprias contradições do “milagre econômico” levaram ao seu limite político. No final de década de 70, greves importantes no centro de produção de valor mostraram que a ditadura não podia continuar e que os interesses dos trabalhadores passavam pela democratização da sociedade. É nessa formulação democrática que precisamos nos deter. Nos outros períodos apresentados, a superação sistêmica era o objetivo central das organizações operárias, elaborando para esse objetivo uma estratégia que se desdobra em táticas, em compreensão do inimigo e dos aliados da via revolucionária e das estruturas de duplo-poder capazes de viabilizar uma transição para além do capitalismo. Anarquistas e comunistas concordavam com essa tese mínima, mesmo discordando nas formas de se operacionalizar os movimentos.

Durante a ditadura, as organizações necessitaram fazer um balanço das estratégias usadas e de quais seriam possíveis numa ditadura. Algumas chegaram à conclusão que a luta armada era a única saída. Outras optaram pela clandestinidade pacífica e outras ficaram condenadas ao ostracismo.

O novo sindicalismo, as bases críticas da igreja e os intelectuais engajados entenderam que precisavam juntar forças para a democratização da sociedade e, se esse é o objetivo, é preciso formas de operacionalizá-lo, com associações, clubes, sindicatos e partido. Surge daí o germe do Partido dos Trabalhadores e da Central Única dos Trabalhadores. Estão dados os elementos da estratégia do último período que vivemos: ocupar todos os espaços da sociedade civil e lutar pela conquista do Estado, para democratizar uma sociedade desigual.

Vejamos alguns dados para ilustrar o período:

• Em 1960 os 50% mais pobres detém 17% da renda, os 30% intermediário 27,8% e os 20% mais ricos tem 54,8%. Em 1983 os 50% mais pobres detém 12,2% da renda, os intermediários tem 23,2%, e os 20% mais ricos tem 64,6%.

• Em 1980 a agricultura responde por 10% do PIB e a indústria por 40%, as cidades têm 67% da população. A dívida externa passou de três bilhões de dólares em 67 para 100 bilhões em 1984.

• 1983 – 31,5 milhões de empregados (62% PEA), sendo 16,6 com carteira assinada e 14,9 sem. 1,5 milhão de empregadores (3% PEA). E 10,8 milhões de “autônomos” (21% PEA).

• Em 1983, 29 milhões não nasceram onde estão vivendo e trabalhando. 22 milhões recebem menos de um salário mínimo, 17 milhões são desempregados.

Essas são características de uma sociedade extremamente desigual e, ao mesmo tempo, plenamente capitalista. Não há mais dúvidas se temos resquícios de feudalismo, se somos neocoloniais, ou mesmo se estamos atrasados.

Em meados dos anos 80, temos as principais indústrias de meios de produção (máquinas que fazem máquinas) e de subsistência instaladas, temos uma classe trabalhadora nova, urbanizada e uma estrutura política ditatorial. A mudança faltante é um regime democrático como forma política para a dominação burguesa.  Notem que as relações capitalistas em desenvolvimento têm gerado as grandes mudanças no país, criando as possibilidades de uma crítica substancial ao modo de produção, no entanto, insistimos na crítica às consequências do sistema e não na crítica às causas.

O tripé capital nacional + capital internacional + Estado desenvolveu uma economia plenamente capitalista como relação predominante e isso não é mais uma sociedade em transição, mas, sim, uma formação social singular que desenvolve os aspectos universais do modo de produção capitalista. As relações anteriores são superadas na medida em que é incorporada a dialética do desenvolvimento desigual e combinado se ajusta perfeitamente a nossa história. Já somos uma sociedade urbano-industrial, no entanto, o latifúndio é muito importante: continuamos sendo agro-exportador, mas em um patamar diferenciado ao século XIX.

A ditadura não tem mais necessidade histórica e, por isso, pode operar uma transição lenta, gradual e segura, nas palavras de Golbery. No início da década de 80, com as manifestações sociais pelo fim do regime militar e, essencialmente, contra suas consequências econômicas, como demonstram os dados apresentados, é possível uma eleição. Mas ela ocorre no colégio eleitoral e não de forma direta como queriam os trabalhadores.

CONSTITUINTE CIDADÃ

Chegamos ao período que vem de 1989 até hoje. A eleição indireta deixou marcas e o processo constituinte foi um mecanismo para dar vazão às reivindicações populares, tendo como resultado uma das mais avançadas cartas constitucionais do mundo em termos de direitos sociais. No entanto, a regulamentação desses direitos não ocorreu, ficando para os próximos legisladores a executarem. A correlação de forças políticas no final dos anos 80 era desfavorável ao bloco conservador – exemplo disso é a eleição de Collor de Melo apenas no segundo turno em 1989.

As organizações de esquerda têm agora novas ferramentas e uma estratégia, a CUT e o PT mobilizam milhões de trabalhadores para seu projeto histórico, qual seja o de democratizar, republicanizar, distribuir renda, conquistar direitos civis etc. Para isso, é preciso disputar as estruturas de poder e ganhar o governo para, desde lá, executar esse projeto.

A centralidade da CIDADANIA, nessa lógica, é fundamental, só que esse conceito remonta à Revolução Francesa, ou seja, a uma revolução burguesa clássica. O governo dos “trabalhadores” reivindica uma categoria de caráter eminentemente burguês e não proletário no sentido histórico da emancipação de classe. Florestan Fernandes afirma que, na luta de classes, palavras não são simples palavras, mas estão carregadas de conteúdo político.

De 1989 para cá, toda ação da linha hegemônica do movimento dos trabalhadores tinha um foco, a chegada ao governo para realizar o projeto batizado de “DEMOCRÁTICO-POPULAR”. E quando, em 2002, um trabalhador chega ao governo federal, todas as esperanças estão postas na execução de políticas democráticas e de distribuição de renda e direitos.

Percebam que o projeto democrático-popular está alicerçado num processo que nasce na superação da ditadura, mas que, exatamente no momento de sua formulação, já estão dados os elementos de seu desenvolvimento. As formas de luta estão subordinadas ao objetivo e, se este vai se distanciando, é preciso andar em sua direção. Mauro Lasi vai chamar isso de tática-processo, com um horizonte socialista. Mas quem conhece a parábola, sabe que um horizonte é um lugar que nunca chega, assim como as utopias.

COMEÇO E FIM

O ciclo que vivemos hoje não tem como fundamento a superação revolucionária do capitalismo, mas, sim, a melhoria das condições de vida da população dentro do sistema. Políticas de INCLUSÃO SOCIAL. Mas, se o movimento operário, com suas organizações e consciência de sujeito histórico, reivindica o fim da exploração, o fim da propriedade privada dos meios de produção, o fim do Estado como mecanismo de dominação e o fim de todas as classes, é preciso bem mais do que chegar ao governo central.

Vemos agora que as grandes “mobilizações” para sorteios, que mencionamos no início deste artigo, podem fazer sentido dentro de um projeto que sorteia esperança e não apresenta formas concretas de superação da ordem estabelecida. Saber se estamos no final desse ciclo e no início de outro é parte do problema. O que herdamos e o que deixamos para trás, quais as rugas e cicatrizes e, principalmente, qual aprendizado guardamos desse processo: isso pode ter um papel pedagógico fundamental para a CLASSE.

Um balanço crítico aprofundado desse ciclo organizativo é urgente e necessário para os que acreditam que a REVOLUÇÃO é uma saída concreta para o atual momento de desesperança generalizada. Aliar a capacidade de acúmulo das experiências que nossa classe desenvolveu nesses anos e a criatividade necessária para inventar e reinventar as ferramentas de luta é a tarefa dos revolucionários da atualidade. 

 

“Quem não se movimenta não sente as correntes que o prendem.”

(Rosa Luxemburgo)

 
REFERÊNCIAS
IASI, Mauro. As Metamorfoses da Consciência de Classe – o PT Entre a Negação e o Consentimento. São Paulo, Expressão Popular, 2007.
FERNANDES, Florestan. O que é revolução? São Paulo, Editora Brasiliense, 1981.
 
MOVIMENTO OPERÁRIO NO BRASIL: ELEMENTOS CÍCLICOS E POSSIBILIDADES HISTÓRICAS, pelo viés do colaborador Ricardo Scopel Velho*
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*É graduado em Ciências Sociais e mestre em Sociologia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Atualmente, é doutorando em Educação pela mesma instituição e professor do Instituto Federal Catarinense.

3 comentários em “MOVIMENTO OPERÁRIO NO BRASIL: ELEMENTOS CÍCLICOS E POSSIBILIDADES HISTÓRICAS

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