MORMAÇO

Durval Pereira: “Paisagem de Minas Gerais”

Corre mal a semana – tão poucas vendas concretizadas transformam a ameaça do desemprego em uma presença permanente, como se houvesse alguém ocupando o banco do carona.  Mas ainda restam duas cidadezinhas no roteiro e até o final do dia a sorte talvez seja mais simpática com ele.

A paisagem do interior, verde e quieta, não resolve nenhum problema concreto, mas é suficiente para amenizar tudo que desbota o ânimo. Paulo gosta de dirigir, e lhe agrada a vida itinerante, o contato com os donos de bares e pequenos mercadinhos. Gente de quem sorve histórias, com quem divide anedotas e consegue rir como se não tivesse pensamentos escuros. Na estrada, vai ensaiando os argumentos para convencer seus clientes e faz a contagem regressiva da distância a percorrer até o próximo estabelecimento. Mas os tempos andam difíceis e os produtos que representa não são fáceis de vender como os gêneros alimentícios. A bebida sempre tem saída, mas em épocas de crise, especialmente naquelas cidades marcadas por hábitos religiosos mais restritivos, acaba vendendo menos.

Para afugentar a ansiedade e a sonolência ele desiste do ar condicionado e abre a janela, acreditando nos poderes que tem o barulho do vento para dissipar, se preciso, até o medo. Faltam ainda quinze quilômetros.

Quando deixa atrás de si o asfalto para enfrentar os paralelepípedos, vê uma sombra atravessar o caminho que o automóvel percorre cada vez menos rápido, respeitando os buracos e a poeira. O animal veloz estampou-se no vidro durante o breve tempo em que seu voo cruzou com o movimento do carro, deixando uma impressão forte incrustada nos pensamentos afetados pelo calor do meio-dia. Olhou para o céu procurando o animal, mas restava apenas o azul, a mesma tonalidade que o escoltou até o boteco à beira do rio.

Desceu já com o bloco em punho, pronto para registrar os pedidos e não deu chances ao dono da casa para justificar prorrogações. O tempo está bom seu Dante, pode lotar o estoque porque essa semana o senhor vai faturar.

Fosse para livrar-se do excesso de sorriso e conversa ou por acreditar nas boas previsões, o homem assentiu. Mas exigia que ele parasse ali na volta para aproveitar a programação da noite. Vai ter um cantador bom aqui, e não precisa se preocupar porque sua esposa nunca ficará sabendo. O dono do bar seguiu argumentando que naquele fim de mundo as fofocas não chegavam a alcançar a rodovia de acesso. E pode ficar tranquilo, seu Paulo, que temos bom chuveiro para tirar a poeira do corpo, assim o senhor não faz feio e se sente renovado pra noitada. Satisfeito com a venda, agradeceu e fez promessa de se preparar para ficar na próxima visita, fingindo medo de ser descoberto pela mulher.

Saiu dali pensando no pó que levava entranhado nos cabelos e na roupa, já curtida de caminho. O capô do carro quase fervia e o fôlego daquela venda acima das médias anteriores dava-lhe um ímpeto bom para enfrentar a estrada de chão até o último cliente. Quando deu a partida lembrou-se da sombra rápida que desafiou o carro e a sua sonolência. Que tipo de pássaro seria aquele? Paulo não conhecia as aves da região, só tinha tido contato com os canários do seu tio quando criança, e crescido num bairro bem urbanizado, ignorava as variações de tamanho, canto e plumagem. Poderia ser um bom passatempo, pensou.

Paulo não tinha pressa para o jantar que lhe esperava no retorno, mas estava ansioso para dar conta daquele último compromisso, depositando nele a expectativa de afugentar de vez a má fase. Além disso, mesmo sentindo-se confortável na direção, sabia o tanto de chão e asfalto a enfrentar até estar em casa, quando viria ainda a maratona para se mostrar apresentável na casa dos sogros.

Contava como coisa certa que esta era a última vez do faz de conta que tudo corria bem na vida dele e de Alice. Aceitou a chantagem da esposa para não turvar as bodas do casal por quem nutria uma admiração honesta, mas tinha deixado muito claro que ela seria sua ex-mulher até o final do ano.

Voltou a pensar no pássaro como uma distração para vencer a monotonia do trecho final e ficou imaginando como seria falar com o animal. Não havia gente que conversava com plantas? Lembrava de ter lido alguma pesquisa afirmando o benefício do convívio com bichos de estimação para a saúde. Então parecia também legítimo conversar com uma ave, que era uma mancha-movimento na sua rota, como criança que dialoga com seus amigos inventados.

Talvez pudesse receber do pássaro um bom conselho, pensou, e aproveitou para rir de si mesmo – um ótimo remédio, diziam. A janela ainda aberta fez voar os papéis no banco ao seu lado e ele teve trabalho para evitar sua fuga, colocando a pasta de couro falso sobre as folhas soltas. Os solavancos dificultavam sua tentativa de organizar o material e à medida que avançava em direção à cidadezinha, onde sequer o esperavam, os buracos eram cada vez piores.

Quando faltavam ainda uns quarenta minutos para chegar ao destino, outra ave cruzou o céu e repetiu a sombra sobre o pára-brisa. Paulo não sabia do comportamento das espécies para julgar se podia ou não ser o mesmo animal de antes, mas como estava entregue aos próprios devaneios, decidiu que sim e tentou acompanhar seu percurso no intervalo entre uma nuvem e outra. Mas antes de ver a ponta da asa (imóvel porque a ave aproveitava as correntes de ar) alcançar o esbranquiçado que imitava uma copa de árvore, um estrondo desestabilizou o carro. Pensou ter passado por uma irregularidade do terreno, como uma lombada dessas para reduzir a velocidade ou uma pedra muito grande, mas ao parar o carro para verificar se havia algum tipo de avaria, confrontou-se com outra causa.

Estava suja da poeira da estrada, mas não se via mais que isso na sua roupa. Nada de sangue, nenhuma fratura exposta, e nenhum som também. Sem saber se gritava por socorro para si ou para a mulher caída à margem da estrada, cercou-a, tentando reconhecer respiração, gemido ou ao menos um olhar, mas o rosto estava emborcado na grama. Era miúda a moça, cuja idade não afirmaria, mas apertou-lhe a respiração fazer as contas e pensar que caberia como sua filha.

Não pensava mais no pássaro, que já estava longe e olhara rapidamente para a estrada apenas como um traço inútil margeando o rio onde estava a presa à qual já chegavam suas garras precisas.

Telefones não alcançavam aquele final de mundo e pelo que lembrava não havia nenhuma casa até a entrada do povoado. Misturavam-se nele os temores dos quais sempre se esquivava – especialmente o desemprego e as reações de Alice – e ainda esse susto novo. Não conseguia saber se a necessidade mais honesta em suas entranhas era uma ambulância para atender a moça ou um banho para lavar-lhe da vida mal digerida que acumulava.

Desconhecia-se. Sempre se viu como um homem medíocre, mas não inescrupuloso. Agora, agia mecanicamente, como já vira em filmes, verificando a existência de alguma marca do próprio veículo no corpo inerte, turvo de terra. O resultado da inspeção colocou poucas gotas de calma na sua boca sem saliva.

A recepção dos sogros atrasou o suficiente para que ele e Alice chegassem a tempo e ele pudesse fazer o discurso de homenagem. No calor das comemorações, não viu saída para a cobrança sutil e renovou aos velhos zelosos as promessas de cuidar da sua filha mais nova. Gostava deles, por todo o carinho com que o receberam na família, porque eram gente boa, e, afinal, nada tinham a ver com os conflitos do cotidiano com Alice. Enquanto abraçava-os, viu a determinação de separar-se esfarelando dentro dele como acontecia à massa dos pastéis de santa clara ao serem mordidos.

Paulo recusou a refeição, alegando ter comido algo que não lhe fizera bem em suas andanças pelo interior e um parente abastado, comovido com o clima da festa, perguntou se ele não preferia largar aquele trabalho e assumir um cargo administrativo em sua empresa. Não gostava de ver gente da família correndo riscos na estrada.

Tinha dor de cabeça, mas continuou sendo cortês com a família de Alice, embora não tenha trocado mais de três frases educadas com ela durante toda a noite. Quando regressaram para casa, ainda calado, foi para o chuveiro já antecipando o alívio de não percorrer mais ruelas esburacadas ou insistir com comerciantes modestos para vender o tipo de produto que ele não consumiria, mas os flashes do pássaro e do corpo imóvel lhe ardiam nos olhos.

MORMAÇO, pelo viés da colaboradora Maurem Kayana*.

*Maurem tem um site em que publica seus textos. Lançou, recentemente, em formato e-book, seu primeiro livro “Pedaços de Possibilidade”.

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