LAICIDADE E IMPRENSA

Laicidade e imprensa: revendo pressupostos da cobertura jornalística

Em meados deste ano, uma figura religiosa esteve nas manchetes dos principais jornais brasileiros por ocasião de seu falecimento. Também em 2012, a Empresa Brasileira de Comunicação (EBC) determinou a suspensão dos programas de cunho religioso de sua programação no mês de março.

Estes dois casos permitem-me fazer uma breve discussão sobre o tema da laicidade e sua interseção com a imprensa. Não são os únicos, e trato de outras questões mais adiante para adensar a análise. Se a questão da objetividade ou a da imparcialidade toma conta recorrentemente dos debates deontológicos do exercício do jornalismo, a (necessária) laicidade como um dos princípios da prática jornalística é frequentemente negligenciada. Não sem razão, pois este tema foge mais facilmente às discussões cotidianas de jornalistas sobre suas práticas, uma vez que certos pressupostos dessas próprias práticas não são objeto de questionamento contumaz.

D. Eugenio Sales. Foto: Rafael Andrade/Folhapress

Quando o cardeal Eugenio Sales, arcebispo emérito da Arquidiocese do Rio de Janeiro, faleceu em julho de 2012, algumas manchetes e chamadas aludiram ao cardeal como alguém que “foi uma referência na defesa de perseguidos por regimes militares” (G1) e como religioso que “se destacou pela proteção a refugiados políticos das ditaduras no Cone Sul” (Veja). A reportagem do Jornal do Brasil do dia 10 de julho menciona o combate à ditadura feito pelo cardeal, entre 1976 e 1982, “quando acolheu e protegeu mais de cinco mil refugiados políticos de toda a América Latina” (JB). Trechos e informações semelhantes estão em matérias do G1, Veja, JB e Folha de S. Paulo. Assim, dom Eugenio Sales e a pomba branca que pousara sobre seu caixão no velório passaram às manchetes – e à memória coletiva – nacionais de modo heroico. Foi o pesquisador José Ribamar Bessa Freire quem quebrou este uníssono com o texto “Dom Eugênio Sales era, com todo o respeito, o cardeal da ditadura”, publicado no blog de Altino Machado no Terra Magazine em 15 de julho. Bessa Freire relata o período em que conheceu dom Eugenio Sales e de como suas memórias – e os dados que conhece – contrastam com a cobertura dos grandes veículos da imprensa brasileira.

“Nós, toda a torcida do Flamengo e Deus que estava vendo tudo, sabíamos que dom Eugênio era, com todo o respeito, o cardeal da ditadura. Se não sofro de amnésia – e não sofro de amnésia ou de qualquer doença neurodegenerativa – posso garantir que na época ele nem disfarçava, ao contrário manifestava publicamente orgulho do livre trânsito que tinha entre os militares e os poderosos. “Quem tem dúvidas… basta pesquisar os textos assinados por ele no JB e n’O Globo” – escreve a jornalista Hildegard Angel, que foi colunista dos dois jornais […].”

O professor Bessa Freire, por fim, coloca o dedo direto nas relações entre a imprensa e a Igreja, neste caso representada por dom Eugênio Sales:

“As azeitadas relações com os donos dos jornais e com alguns jornalistas em postos-chave continuaram depois da morte, como é possível constatar com a cobertura do velório. A defesa de dom Eugênio, na realidade, funciona aqui como uma autodefesa da mídia e do poder.”

O caso da EBC é de outra natureza, mas central para esta discussão. Em março de 2011, o Conselho Curador da emissora publicou uma resolução que suspendia os programas de cunho religioso veiculados pelas emissoras da EBC (dois católicos e um evangélico). A resolução foi fruto de discussão em audiência pública, mas tão logo foi divulgada, sofreu ataques rápidos na Justiça e no Congresso Nacional. A Arquidiocese do Rio de Janeiro conseguiu manter a exibição dos programas por meio de uma liminar; já um Projeto de Decreto Legislativo, de iniciativa do Senador Lindbergh Farias (PT/RJ), pretendia sustar os efeitos da resolução.

Imagem: Tumblr Fiscais de Fiofó/Reprodução

De lá para cá, o que ocorreu parece-me um empate-com-indefinições: a pressão e a liminar judicial fizeram com que a EBC publicasse uma nova resolução cancelando o disposto na anterior. E em junho de 2012, outra resolução criou a Faixa da Diversidade Religiosa da EBC, uma atitude que parece ficar a meio termo dos desejos iniciais (da EBC em retirar programas religiosos da grade e das igrejas e de parlamentares de bancadas religiosas em mantê-los como estão). “A resolução traz uma série de novas propostas para a programação, que passará a contar com um programa de uma hora, de cunho jornalístico e de reflexão sobre as crenças, além de um programa de meia hora mais voltado a mensagens dos diferentes grupos e crenças.”, conforme matéria publicada na página do Conselho Curador da emissora. É um empate, mas ainda indefinido porque não se sabe que programas serão estes a irem ao ar.

Os casos que utilizo aqui são de ordens diversas, e é sobre estas duas “dimensões” da questão da laicidade e a imprensa que gostaria de discorrer rapidamente: o caso da cobertura pouco investigativa e uníssona da grande mídia para o falecimento de dom Eugenio Sales (influência religiosa nos veículos e nas práticas jornalísticas) e a presença de programas religiosos em emissoras públicas (influência religiosa na programação televisiva).

A bem da verdade, a fraqueza com que a laicidade é respeitada na televisão brasileira não é um problema só da EBC, uma emissora pública, aberta a questionamentos, com Conselho Curador e processos um pouco mais horizontais do que os das emissoras privadas. Todas as emissoras são concessões públicas de um bem coletivo – o espectro eletromagnético. Assim, programas como “Show da Fé” (Band) e “Fala Que Eu Te Escuto” (Record) ferem não só a laicidade do Estado, sagrada no Art. 19 da Constituição Federal, como também a função primaz dos meios de comunicação (Capítulo V da CF) e o uso adequado de um bem coletivo ao fazer propaganda de uma religião específica – quando não de discursos político-religiosos inflamados, como são os do histriônico pastor Silas Malafaia.

Em entrevista ao jornal a Gazeta, o professor Edgard Rebouças (do Observatório de Mídia), colocou claramente os pontos desta questão:

“Nem partidos políticos, nem igrejas podem ter concessões. Estas são feitas a empresários, que apresentam em seus projetos conteúdos variados, com programas de debate, entrevistas, esportes e música, etc. E eles podem ceder o espaço para uma igreja. Isso ocorre, por exemplo, com a Rede Vida, que tem uma programação diversificada, de acordo com o projeto, mas tudo com caráter religioso. O problema, na verdade, é a venda de horários somente para cultos, forçando o espectador a assistir a eles em uma concessão pública.”

Ao final, o professor relembra uma celeuma já conhecida dos ativistas pela democratização da comunicação no Brasil: a pecha de censura às discussões sobre regulamentação e marco regulatório do setor. “É ilegal lotear uma concessão pública e vendê-la, seja para cultos religiosos, seja para televendas. Porém, sempre que surge qualquer proposta de regulamentação do setor, os concessionários alegam que é censura.”

Ao confrontarmos o atual cenário das emissoras brasileiras que têm concessão vigente, o caso da EBC retorna de modo exemplar: não deveriam todas as emissoras apresentar conteúdo religioso que represente toda a diversidade religiosa e cultural brasileira (os detalhados dados do IBGE existem também para isso)? Ou, então, não colocar no ar nenhum programa religioso, especialmente programas que não são produzidos pela emissora ou sob sua responsabilidade, mas sim colocados na grade por meio do loteamento (lucrativo) de horários? Entendo que a segunda opção é não só a mais adequada como também a única exequível.

Outras searas em que a laicidade do Estado está em questão servem para iluminar esta em que a imprensa está no centro: a frase “Deus seja louvado” nas cédulas da moeda nacional; ou a presença de crucifixos em Tribunais, Assembleias e outras repartições públicas; ou ainda, o ensino religioso flagrantemente confessional nas escolas públicas. Se a alternativa exequível não é grafar nas cédulas “Salve Oxossi”, “Alá seja louvado” e “Deus não existe” junto a “Deus seja louvado” (aplique-se o mesmo raciocínio para o caso dos crucifixos e do ensino religioso), não me parece que a opção pela inserção de dezenas de programas religiosos nas emissoras do país respeite a laicidade e a diversidade religiosa. Inclusive, o cenário atual demonstra o poder econômico de igrejas católicas e evangélicas para produzir programação para radiodifusão (altamente dispendiosa) e comprar horários, ao passo que diversas manifestações religiosas minoritárias não têm nem mesmo tais condições. O Estado arcaria com esta produção? Esta programação atenderia aos interesses econômicos das emissoras? Cumpriria com os preceitos constitucionais para o setor discriminados no Capítulo V da Constituição? Creio que não.

Se esta dimensão da laicidade em relação à imprensa tem caráter mais constitucional e implica mudanças nos processos de concessão/fiscalização, o caso da cobertura da morte do cardeal dom Eugenio Sales é um pouco mais complexo. Quando se observam os trechos das reportagens aludindo à atuação do cardeal contra a ditadura, a fonte é sempre a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) ou o próprio dom Eugenio Sales. As matérias ressaltam que mais de quatro mil (mais de cinco mil segundo o JB) perseguidos políticos foram auxiliados pelo cardeal. Entretanto, o professor Bessa Freire, em seu texto no Terra Magazine, observa o “detalhe” desta cobertura sobre o passado do cardeal:

“Seria possível acreditar nisso, se o jornal tivesse entrevistado um por cento das vítimas. Bastaria 50 perseguidos nos contarem como o cardeal com eles se solidarizou. No entanto, o jornal não dá o nome de uma só – umazinha – dessas cinco mil pessoas. Enquanto isto não acontecer, preferimos ficar com o corajoso depoimento de Hildegard Angel, cujo irmão Stuart, foi torturado e morto pelo Serviço de Inteligência da Aeronáutica. Sua mãe, a estilista Zuzu Angel, procurou o cardeal e bateu com a cara na porta do palácio episcopal.”

Ainda que dom Eugenio Sales tivesse desempenhado “papel duplo” naquele período, não desagradando aos militares para poder ajudar perseguidos políticos, os jornais brasileiros não fizeram o que Bessa Freire apontou. Apenas as declarações do cardeal ou dados da CNBB foram utilizados, sem qualquer corroboração de outras fontes – e foram mais de quatro mil. O que chama a atenção, também, é o uníssono de autoridades, como Eduardo Paes, Sérgio Cabral e Dilma Rousseff, e de alguns jornalistas e veículos em enaltecer esta marca “inequívoca” do cardeal em defesa dos perseguidos políticos.

A questão dos pressupostos da atividade jornalística, entretanto, não me parece plenamente contemplada com este exemplo de dom Eugenio Sales. Por que a cobertura de sua morte foi tão consensual e nenhum veículo tratou de seu passado “duplo” durante a ditadura pode ser fruto tanto de pressupostos dos jornalistas de que nada havia a ser apurado sobre a figura santa ou de ingerências editoriais superiores – abordagem que jornalistas como Alberto Dines e Altamiro Borges tem enfatizado ao tratar, por exemplo, da influência da Opus Dei na imprensa nacional. Assim, pensar a laicidade na imprensa, ou uma imprensa que seja laica por princípio (prescrição), implica observar que pressupostos estão presentes nas tomadas de decisões dos jornalistas ao dar visibilidade a figuras religiosas na imprensa.

Entendo que o pressuposto central das práticas jornalísticas esteja ancorado em noções clássicas, e acertadas, de contraditório e lados envolvidos numa questão. Entretanto, sem um exame crítico de cada questão – a pauta e seu recorte –, seguir cegamente a ideia de que há necessariamente um contraditório ou dois lados envolvidos em toda pauta pode ser perigoso e, no limite, um jornalismo mal feito.

Aqui recorro a artigo feito pelo crítico de cinema Eric Deggans, traduzido por mim em janeiro de 2011. Deggans criticava o espaço que veículos dos EUA davam a ativistas antigays cuja especialidade era, justa e unicamente, combater gays. “Dito de outro modo, quando um veículo da imprensa deve concluir que determinado tipo de oposição é preconceito que eles não deveriam mais apoiar?”, questionava o crítico. Para clarificar cabalmente a critica que fez, Deggans relembrou Luther King Jr.:

“Retornando à época do Dr. King, quando os debates sobre direitos civis eram cobertos pela mídia, ela também “religiosamente” incluía aqueles que eram favoráveis à segregação ou à proibição de voto por parte dos negros ou ao impedimento de casamentos inter-raciais. Contudo, finalmente, os meios de comunicação compreenderam que tais visões eram preconceituosas e pararam de expô-las como opiniões válidas – concluindo que tratar racistas como participantes em pé de igualdade naqueles debates apenas lhes garantia uma autoridade que não deveriam ter.”

Pastor Silas Malafaia declara ao The New York Times: “Sou o inimigo público número 1 do movimento gay no Brasil”. NYT/Reprodução

Não se trata, obviamente, de interditar a presença de líderes religiosos – sejam eles moderados ou não – na imprensa, o que seria descabido. Trata-se, entretanto, de questionar quando e por que motivos certa fonte traz um contraditório que é pertinente à dada cobertura. Por que, por exemplo, a opinião do Presidente da CNBB é pertinente à discussão da aprovação do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo? Ao apenas reiterar pressupostos de ordem cultural como a histórica intromissão de líderes religiosos nos direitos civis de mulheres e homossexuais, coloca-se em pé de igualdade a opinião de um jurista e a de um padre sobre tema que não é religioso. E assim não se fortalece o caráter laico do Estado, nem a sofrida separação entre Igreja e Estado no Brasil republicano.

Quero fechar recordando de outra grande fonte de abordagens que igualam posições francamente distantes em competência, e que também refere ao tema da laicidade. Com muito mais ênfase nos Estados Unidos, as reportagens que igualam a teoria da evolução com formulações sem sustentação em pesquisa como “criacionismo” e “design inteligente” transmitem a impressão de que há um debate aberto na comunidade científica quanto a isso – quando não há. Assim como não há um debate aberto sobre pessoas negras serem iguais em direito ou não a pessoas não negras. Antes do que um interdito, trata-se de questionar: por que os meios de comunicação dão voz a “qualquer lado” só por que historicamente tal lado tem se oposto a determinado ponto de vista? Por que não se faz uma reflexão mais profunda acerca da relevância de certas opiniões para certos temas? A ilusão de que não cabe ao jornalista (e aos demais profissionais do campo) ponderar sobre isso é batalha vencida, como o sabemos todos que estudamos jornalismo.

Talvez, finalmente, jogando luz sobre o processo oposto – do silenciamento de certas vozes, o que desmonta tanto a ideia de imparcialidade quanto a de busca do contraditório – fique visível que o problema está na reflexão crítica e na revisão qualificada dos pressupostos que subjazem as coberturas jornalísticas, e não na busca de “todos os lados” como uma panaceia irrefletida. Uma das conclusões de uma pesquisa do Intervozes (Coletivo de Comunicação) sobre o MST na mídia aponta:

Quanto à sensação de que o MST é criminalizado pela mídia, os números comprovam que o Movimento é mostrado de maneira negativa. Mesmo que nem sempre se refira a crimes de forma direta, a maioria das matérias utiliza termos pejorativos ou cita atos considerados violentos cometidos por integrantes do MST. As bandeiras de luta do MST, em geral, não são mencionadas; quando isso acontece, normalmente são menosprezadas, em afirmações de que a Reforma Agrária já teria sido feita e que o MST não teria mais o que reivindicar.” (Intervozes, 2011, p.57)

Para termos uma imprensa laica, é preciso começar ponderando a qualidade dos pressupostos de nossas coberturas quando tratamos das relações entre o Estado e as igrejas, de grupos religiosos marginalizados (de matriz africana), do poder econômico de igrejas, da ingerência de igrejas na política e nos meios de comunicação e do espaço midiático concedido a líderes religiosos unicamente por suas posições conservadoras em temas morais. O outro passo, enfim, é qualificar os princípios laicos do Estado na estrutura dos meios de comunicação brasileiros, a começar pela programação religiosa em concessões públicas.

LAICIDADE E IMPRENSA, pelo viés do colaborador Luiz Henrique Coletto*

*Luiz Henrique Coletto é mestrando em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É membro do Conselho de Mídia e do Conselho LGBT da Liga Humanista Secular do Brasil (LiHS). Contato: luiz.media@gmail.com.

Fontes:

Terra Magazine – Dom Eugenio Sales era, com todo o respeito, o cardeal da ditadura

G1 – Morre o cardeal dom Eugenio Sales

Jornal do Brasil – Dom Eugenio Sales, um cardeal que se impôs e fez História

Veja – Cardeal Dom Eugênio Sales morre aos 91 anos no Rio

Folha de S. Paulo – Morre dom Eugenio Sales, arcebispo emérito da Arquidiocese do Rio

A Gazeta – Profissão de fé na televisão
EBC – Conselho Curador aprova resolução para nova Faixa da Diversidade Religiosa na programação da EBC
Eric Deggans – Gays na mídia: qual o “outro” lado?

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