CONTOS REUNIDOS

UMA VIDA QUALQUER

 1989. O chão espelha o céu e o sol arde. A janela levemente aberta deixa escapar aos poucos o cheiro suave do café. A menina, despertada há pouco, sai correndo. Os pés velozes se precipitam rapidamente pelo gigante quintal e sua alma pequena se confunde entre a poeira e o sombreado das árvores. Gritos. A vó chama. Ela não liga, não responde. Banhados de sol, seus pensamentos se preocupam apenas em alimentar a legião que se debate no seu interior. Sensação única, essa… A alegria do sol e silêncio.

A infância, no entanto, está agora distante. Uma solitária lágrima rola, enquanto ela contempla essa apagada lembrança da janela do seu quarto. Já não há mais sossego, já não há mais vó. O que existe é só uma mistura esquisita de pó e tempo atrasado. O quanto a menina cresceu não importa. Ela cresceu e é tudo. A dor de agora poderia ser apenas um princípio, mas não é. É só uma ponta.

Eu também tenho chorado. Cada vez que um dia morre no horizonte. É menos um dia meu. E isso me preocupa. Aí reside a razão, e talvez a única, de eu escrever essa história. Minha heroína é um fato comum andante. E certamente poucos se interessarão por ela. A história, entretanto, não é minha, não é sua, não é deles. É de quem a toma para si. E eu estou ciente disso.

Quisera por muito tempo brincar com estas palavras. Escrever coisas sem sentido. Até que o sentido das coisas me pegou de cheio e tenho hoje mais medo do que antigamente. Tenho medo. E o medo é pelo momento meu grande inimigo. Meu e de quem acha que medo se tem. Medo não se tem. Medo se encontra. Medo. Que nome estranho para se dar a um sentimento tão consumidor.

A menina, entretanto, está longe de entender isso. Talvez até se espantasse com algumas palavras. De sua moldura janelal ela me olha muda. Indiferente não só a mim, a quem não pode ver, mas ao mundo todo. Indiferente ao rio que faz divisa no fundo de seu horizonte. Indiferente às sombras de pessoas que sonolentas se arrastam pelas ruas. Indiferente a ele… É, às vezes podemos ser muito indiferentes com aquilo que amamos. E isso é, em parte, um defeito. Calamos e o nosso coração quer gritar. Bem-Aventurados, então sejam, os fortes e não silentes, pois não temem ousar. Infeliz de mim e da menina porque nossa tão típica covardia nos cala e nos agride.

De um estrondo, de repente, se fecha a janela. A menina entra para tomar seu líquido frio e contemplar um osso. Ontem o mundo pegou fogo e ainda existe fumaça no céu. Ela daqui a pouco se juntará à multidão de pessoas feitas de cinzas. E caminhará para sua fornalha de tempo, onde sorrirá por algumas horas. Até ser arrancada de novo para seu mundo de reticências.

Isto, no entanto, são as linhas de um depois. Vou agora tomar um chocolate quente e pegar algumas folhas no armário, as que estavam aqui acabaram e estas são as últimas linhas de minha última folha. Que paragem meu Deus…

UMA VIDA QUALQUER, pelo viés da colaboradora Kerlley Diane Santos.

 

* * * * *

 

A DIARISTA

 O relógio anunciou, às quatro da manhã, que era hora de acordar.

Levantou-se, tomou um banho rápido, calçou uma sandália de salto baixo e foi preparar o café. O gole quentinho para começar bem o dia. Pegou a marmita na geladeira, guardou na bolsa e, sem esquecer-se de colocar os brincos e passar um batom, beijou os filhos ainda adormecidos e saiu.

Duas conduções lotadas até chegar ao primeiro trabalho do dia. Na terça-feira eram salas comerciais pela manhã e um apartamento médio à tarde. Um dia de faxinas leves. Sexta-feira era o dia longo, um apartamento luxuoso com uma patroa exigente. Mas era a semana da Páscoa e na última hora, a família resolvera não viajar e dispensar o seu dia de serviço. Ficou chateada. Nada contra a Sexta-feira Santa, mas um dia de serviço perdido era muita coisa.

Trabalhava de segunda a sexta em cinco locais diferentes. Os sábados eram para colocar a própria casa em dia. Lavar a roupa, checar os cadernos dos filhos, fazer as compras do supermercado e passar na manicure. Domingo era o dia do sagrado almoço em família.

Enquanto o motorista do ônibus gritava para que os passageiros no ponto esperassem o próximo coletivo e tentava, sem sucesso, fechar as portas e seguir viagem, ela se distraia com folheto do supermercado. Como estavam caros os ovos de chocolate. Não dava para comprar os de marcas famosas que as crianças queriam, mas pelas contas, os três filhos mais novos ganhariam ovos de tamanho médio, e a filha adolescente, mais velha e mais compreensiva uma caixa de bombons para que não ficasse triste.

Duas horas depois de sair de casa chegou ao escritório, mas ainda era cedo e não havia ninguém que pudesse abrir a porta. Sentou-se no degrau do estacionamento para esperar. Tinha as chaves de todos os escritórios nos quais trabalhava, mas esse patrão era criterioso, não queria dar a senha do alarme a uma faxineira residente da periferia, mesmo depois de dois anos trabalhando com eles.

Às dez horas ela ligou para casa. Precisava checar se a filha mais velha tinha acordado, preparado o almoço e arrumado os menores para irem à escola. Estava tudo conferido. À noite, quando voltasse para casa, tentaria levar o caderno que a menina havia lhe pedido.

Na faxina da tarde podia escutar o jornal enquanto trabalhava. Falavam das empregadas domésticas, o assunto da semana. O especialista dizia que havia o risco das mudanças trabalhistas provocarem demissões. Os patrões dariam preferência a diaristas para não gerar vínculos empregatícios.

A papelaria estava fechada quando o expediente acabou. Não queria ir ao supermercado do bairro de classe alta onde trabalhava, mas a filha precisava do caderno. Na fila, duas senhoras discutiam as mudanças que suas casas sofreriam com a PEC das domésticas: “Somos pessoas e não empresas, administrar uma casa não é tão simples. Se isso for aprovado as primeiras que vamos demitir são as que tem filhos pequenos. Lógico né? O governo quer jogar para nós, a responsabilidade de cuidar dos filhos deles”, afirmava a senhora, seguida pelos gestos de concordância da amiga.

Pagou o dobro do preço pelo caderno, mesmo assim, aproveitou para comprar uns biscoitos. Seriam mais duas horas e meia até chegar em casa. Ligou novamente para saber como estavam os filhos e avisar que estava a caminho.

A DIARISTA, pelo viés de Bianca Souza.

 

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A MORENA DO CAFÉ

Que trânsito é esse?  Pensei comigo, que quinta-feira insana e desproposital! Vou parar pra tomar um café e atrasar minha chegada em casa, afinal, atrasaria de qualquer forma. Sigo em direção à Lopes Pena, lá tem um café onde costumo ir pra distrair-me nos dias em que o stress me pega de jeito e me corrói a mente.

Todos nós procuramos refúgio em algum lugar da cidade grande, é uma rotina que criamos para fugir da rotina. Diferentemente dos que optam pelos “barzinhos” e seus “chopps”, toda quinta-feira eu fujo pros cafés… às terças, quartas e outras feiras mais. Café é mais quente, aconchegante, silencioso… Sei lá, mas pode ser também porque nos cafés somos mais individuais, solitários e na maioria das vezes ímpares. Sim, já reparou que é difícil encontrar alguém tomando um “chopp” ou cerveja sozinho? Esse pessoal está sempre acompanhado de um grupo, papeando, sorrindo ou disfarçando sua infelicidade.

Mas eu não, vou pro café… Lá é possível encontrar outros “eus”, sozinhos, cabisbaixos sorvendo café vagarosamente, como se aproveitasse ao máximo aqueles instantes de solidão em público. Não vou mentir, eu adoro essa fuga, e ela faz-se necessária quase sempre.

Entro no estabelecimento, procuro com o olhar rapidamente uma mesa isolada, e dirijo-me a ela, nos fundos, tendo no encalço um garçom.

– Um café… puro… – o cara anota algo no papel, deixa o cardápio sobre a mesa e se afasta.

De lá do fundo, solitário em minha mesa, após um dia chuvoso, sorvo vagarosamente o líquido precioso enquanto espero o tempo tornar-se passado. Tem sido assim sempre, um café, uma mesa vazia e o tempo a subir pela fumaça temperando o ambiente que já cheira a café, invariavelmente.

De onde estou tenho uma melhor visão de quem entra e sai do café, ali medito sobre o que sou e o que não sou, bem mais sobre o que não sou, é óbvio, pois o café possibilita esse estranho acalanto de alma que se chama sonho. Renovo-me e não me dito mais nada… me deixo.

Eis que chega uma morena, fugindo da chuva (pelo que parece, ou trazida por ela, sei lá). Reparei na beleza de seu corpo coberto de preto dos pés à cabeça, como se já não bastasse ser bela, ela se apresentava gostosa até na forma de vestir-se. Como notas, o café proporciona visão prazerosa também.

A mulher que frequenta um café é quase sempre mais clássica, e na maioria das vezes está acompanhada e feliz, não necessariamente por estar no café.

Acompanhei-a com o olhar até ela fazer seu pedido. Um café?… pensei comigo, os tempos mudam com a chuva. Retraí minha paixão pela beleza e me contive ali, preso ao sabor do líquido quente, macio e saboroso, tentando voltar a mente para as divagações anteriores… Inclusive anteriores à morena.

Olhei para o relógio, marcava 20:00, eu tinha que voltar pra casa, é o que acontece todos os dias, invariavelmente, mas, por algum motivo, achava-me sentado, despreocupado com a hora, alheio à vida.

A morena desponta lá… Caminha em direção aos fundos, olhando em direção à minha mesa precisamente, ou é delírio meu, reflexo de um fim de dia chuvoso.

– Posso? – pergunta colocando o café sobre a mesa e a bolsa sobre uma cadeira vazia.

Concordei, claro, mas me intrigou o fato de ter outras mesas desocupadas e ela ter vindo até onde eu estava. Tomar café é como um retiro espiritual, requer paz de espírito, e qualquer distração pode ser vista como um tipo de ameaça… ou tentação.

– Não gosto de tomar café sozinha… me entristece. Falou isso enquanto sentava-se na cadeira à minha frente.

Fiz um sinal com a mão e pedi outro café… puro, como sempre, quem sabe eu desperte. Finjo entender, aliás não me preocupei em entender,  sorri  levemente  com o  canto  da  boca, como a zombar das loucuras do acaso. As pessoas passam a temer a tristeza, como se fosse possível evitá-la.

– O café daqui é ótimo, não acha? – comenta a morena.

– É, e melhora a cada dia – respondi, enquanto olhava ela puxar, com as pontas dos dedos, os cabelos que caíam no rosto, levando-os até a orelha, ao mesmo tempo em que olhava pra mim franzindo de leve a testa.

Não falamos muito, apenas o suficiente enquanto sorvíamos o líquido preto.  Estávamos solitários e atrasando a volta para casa, num dia de chuva. A cada gole, uma olhada proposital a conferir o roçar dos lábios na borda da xícara daquela que surgiu do nada. A xícara parecia mais quente do que o normal.

Alguns poucos comentários sobre a chuva que nos prendia ali e então finalizamos o café, fenômeno que une dois estranhos como se fossem conhecidos.  Não havia muito que falar, nossas alianças denunciavam a nossa condição de limitados. Chamei o garçom e pedi a conta.

– Por favor, o café da moça aqui também! O próprio garçom disse que o dela já havia sido pago anteriormente. Ela confirmou com um sorriso de lábios cerrados. Reparei mais uma vez no seu cabelo arredio e preto… como o café, como a noite, o vestido…

Andamos em direção à saída, calados.

Não trocamos nomes, nem telefones, apenas um longo beijo molhado no estacionamento selou nosso tesão por café e opostos.

A MORENA DO CAFÉ, pelo viés de Danton Medrado.

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CONTOS REUNIDOS, pelo viés dos colaboradores Kerlley Diane Santos, Bianca Souza e Danton Medrado

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