CRÍTICA DA LITERATURA UMBIGUISTA

Existe uma certa literatura, muito em voga hoje em dia, feita para ser como um chinelo velho que a pessoa calça em casa quando chega do trabalho. É a literatura poltrona-bem-estofada, literatura sujeito-de-bem: respeitosa, ordeira, bem comportada. Não se trata, do seu ponto de vista, de exprimir um tormento total, uma angústia lancinante, uma raiva dilacerante, um desconforto brutal. Não se trata de expressar um abalo sísmico nas entranhas, uma infâmia que acaso se tenha cometido, por desajuste qualquer, em um momento de melancolia ou fraqueza, ou coisa do gênero. É a literatura que quer chegar em casa e ligar a TV, depois “fazer amor”, dormir tranquila na sequência – de “conchinha”, é claro -, acordar cedo no outro dia, ir para o trabalho, produzir bastante, vender bastante.

É a literatura final-feliz, novela das 8, comentário de Jornal do Almoço, bancada de Jornal Nacional. É a literatura entrevista-de-Jô-Soares, extrovertida, exótica, excêntrica. Que cuida dos negócios, que compra, vende e recebe créditos, que paga prestações e cobra dividendos, que calcula a data da aposentadoria, que sonha com heranças e que compete, a fim de possuir mais e de ganhar mais. Sempre mais e mais.

Se acaso confessa que alguma vez foi vil, não há que se iludir com isso. Trata-se apenas de uma aparência. O canalha quer no fundo ser bom-moço. Trata-se de mera malandragem, astuto artifício de quem constrói fantasias a fim de satisfazer seus baixos instintos. Como uma peça publicitária que busca explorar a imagem de desajuste para fazê-la passar por uma representação “cool”, ou, pior, “Cult”. Se é rebelde, ou se apresenta-se momentaneamente como tal, é porque a imagem da rebeldia deu para vender bem. Como naquelas propagandas em que os anunciantes, para passarem à frente suas mercadorias, se aproveitam de símbolos associados à transformação do status quo: uma estrela coruscante, uma barba desgrenhada, um olhar firme e fixo no horizonte.

Por isso, essa literatura tem tamanha semelhança com os comerciais de TV, com os reclames de jornal, com o plim-plim dos filmes da Sessão da Tarde. É a literatura com cara de outdoor.

É a literatura que vai da casa para o trabalho e do trabalho para a casa. Que, estando aqui ou lá, mantém sempre uma etiqueta de acordo com o comportamento padrão. Não raro, confunde esses dois ambientes, reclamando para um a forma de ação imperante no outro. O lar, enfim, também é um expediente. O expediente é um lar. O amor é hora-extra. O serviço é gozo. É a literatura guaraná cerebral, que visa deixar o sujeito alerta e atento para, quando chegar em casa, suportar a dupla jornada. Amar, viver, produzir, escrever, tudo são profissões. É a literatura profissional da escrita, que está, de fato, sempre pensando no final de semana e na melhor viagem a se fazer nas férias. Londres? Paris? Disneylândia? Berlim? Quem sabe Miami. Talvez Bali.

É a literatura bem maquiada, que quer adaptar a pessoa à ordem. Literatura-cidadã, boa-moça, moça de família, moral e bons costumes. Literatura pra casar, sabe? Politicamente correta, numa palavra. Inclusiva, que nunca se apavora, que nunca suspira em desgraça, em desafogo por causa dessa condição maldita de ter que viver num mundo estranho, alienado, explorado, violento, e ter de produzir mais e mais. É a literatura equilibrada, ponderada, que sempre sabe o que fazer, que sempre sabe o caminho certo. Por isso, ela tem tamanha cara de auto-ajuda, de “comece o dia sorrindo”, de Minutos de Sabedoria.

A literatura perde, assim, o seu caráter de tormento dos déspotas. Não se trata mais de recusar a tudo, de negar radicalmente os padrões e as padronizações estúpidas de uma sociedade estupidificada. Não se trata de virar as costas para a moral vigente, para a estética dominante, para a verdade hegemônica, para a podridão reinante. Não se trata de ser descabido ou desbocado.

Afirma-se a literatura de holofotes, a literatura mela-cueca, ordeira, pagadora de tributos, prendada, bem limpinha. Que senta com as perninhas fechadas, que não arrota nem peida. É a literatura que guarda suas contradições em casa, como um bichinho de estimação. Se possível, bem polidas e acomodadas à estante, como um adorno exposto às visitas. Talvez se possa chamá-la de literatura-bibelô.

Em última instância, é a literatura que joga para a torcida, requintada, dribladora, serelepe, fazedora de fintas e firulas. É bem escrita, de fato, há que se reconhecer. Tem boa técnica, conhece o ofício, domina a arte dos floreios. Mas é a literatura que toda hora se atira descaradamente perto da grande área para que o juiz apite: falta!

Xô, literatura cai-cai! Xô, literatura craque-do-campeonato-brasileiro! Xô, literatura calça colada, cores berrantes, sobremesa-de-banquete! Xô, literatura franjinha! Xô, literatura topete, literatura boa-moça e bem comportada, literatura que agrada a sogra, engraxada, engravatada, genro dos meus sonhos! Xô, literatura capa de revista, coisificante, musculosa, sarada, bombadinha de praia! Xô, literatura siliconada de boutique, bonequinha de porcelana, cultuadora do plástico! Xô, literatura serva da aparência, devota da maquiagem, crente das passarelas de Nova York e Milão! Xô, literatura de boa imagem, cativa e cativante de ilusões, escrava dos segundos e dos centímetros, refém dos números e dos quilos.

Xô, hipnotizadora de incautos! Xô, excrescência cosmética! Xô, literatura personalidade-pública, literatura happy family, exibicionista, nariz arrebitado, glúteos de borracha! Xô, literatura vagina-esteticamente-corrigida-de-acordo-com-o-padrão-estético-vaginal-da-hora. Vade retro!

Vá para o diabo sem mim.
CRÍTICA DA LITERATURA UMBIGUISTA, pelo viés do colaborador Julio Herrera y Mordaz*
*Mordaz é poeta e realista fantástico

3 comentários em “CRÍTICA DA LITERATURA UMBIGUISTA

  1. Achei muito interessante a crítica, bom texto. Concordo em quase tudo, pois, ao meu ver, faltou finalizar com uma crítica a também literatura hermética, que, contrariando a literatura de bibelô, porém, afastando-se totalmente do público, o autor se fecha em seu mundinho, acabando-se em um mesmo sentido desta outra literatura, não expondo a tormenta e não criticando essa vidinha casa-trabalho-casa, é a literatura do pseudointelectual.

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