LIBERDADE À HISTÓRIA DE JANGO – PARTE 2

[LEIA AQUI A PARTE 1]

Para corrigir distorções, não se precisaria de um golpe: bastariam os meios legais, jurídicos e legislativos, respeitando a Constituição. Qual era o programa econômico e social do golpe? Não existia. Nem a inflação eles conseguiram conter, pelo contrário, aumentou ainda mais, com a agravante que no regime de opressão as greves estavam proibidas. Portanto, os trabalhadores absorviam as perdas. Não havia como repor o que a inflação engolia dos seus salários. O salário mínimo, maior prova disso, se defasou. Quando comparado com o primeiro, criado na ditadura Vargas, era no mínimo três vezes menor. Para os empresários, com mão de obra barata e trabalhadores sem dispositivos reivindicatórios, o golpe foi um grande negócio. Tanto, que mais tarde, quando eclodiu a luta armada (outra discussão, não cabe aqui), eles financiaram a montagem do aparato repressivo. Ditadura e capital eram almas gêmeas.

Contudo, analisando com isenção, havia abusos nas greves do período Goulart. Lembro-me, por exemplo, dos ferroviários de Santa Maria (RS), onde eu morava, estudava, fazia política estudantil secundarista e iniciava no jornalismo. A comunidade ferroviária era a maior força trabalhadora da região. Santa Maria tinha o principal entroncamento ferroviário da Região Sul do Brasil por sua posição geográfica, bem no centro do Rio Grande do Sul. Toda produção passava ou saia de lá. Era, portanto, um ponto altamente estratégico do ponto de vista também econômico, além do militar. E havia o transporte de passageiros, na época altamente dependente dos trilhos. O complexo ferroviário era notável. Além da estação, existiam as oficinas, que reparavam e até construíam trens modernos, como o famoso Minuano, uma prévia perfeita, em termos aerodinâmicos, do que é o atual TGV (trem de alta velocidade), europeu. A ferrovia mantinha escolas de ensino médio e técnico; tinha cooperativa de consumo; clubes sociais, etc. A Vila Belga, com casinhas para os ferroviários, ainda existe e foi tombada, é ponto turístico. Tive um grande amigo e colega de classe, o Luiz Eurico, que morava lá. Eu costumava visitá-lo. Ele era telegrafista, operava o aparelho escrevendo mensagens com os dedos, pelo Código Morse. Lembrando, parece ficção de um passado muito remoto… Como eu escrevia num jornal de esquerda, certo dia surgiu uma informação de que um grupo de direita planejava me agredir. Contei para esse amigo e ele me disse: “se eles partirem para esse campo, em duas horas junto cem ferroviários e vamos pegar os caras”. Mandei o recado, e nunca me aconteceu nada.

Os ferroviários, como conto em meu livro “O País Transtornado”, formavam um bloco em contraponto à também formidável, em aparato, comunidade militar. E havia ainda a classe estudantil, de vários estratos do mundo rural, mais a Igreja Católica, com grande força e ideologicamente dividida. Mesmo nós, da esquerda, reconhecíamos certos exageros dos sindicatos e associações ferroviárias. Eles entravam em greve com uma freqüência absurda, mesmo quando o assunto não era diretamente com eles. Certo dia, que recordo bem, nossos professores entraram em greve por atrasos nos salários. Entramos juntos, dando força. E não deu outra: a ferrovia parou, em solidariedade. Convenhamos: não era para tanto, pois os prejuízos eram enormes. A ferrovia era estadual e o governador Leonel Brizola, lá no Palácio Piratini, se escabelava nos bastidores, porque publicamente não poderia criticar seus principais aliados.

Uso Santa Maria pelo conforto da memória, pinçando um expressivo exemplo, mas na verdade era assim em todo o Brasil. Volta e meia, Jango tinha que pedir moderação às lideranças sindicais que tentavam ajudar, mas também atrapalhavam o governo, pelos impactos causados na economia. Além, claro, das tensões que esses movimentos acarretam, afetando a estabilidade.

Outro fator importante a considerar foi que Jango governou no auge da Guerra Fria, com as tensões internacionais muito latentes e respingando também por aqui. Basta lembrar que a Revolução Cubana tinha começado em dezembro de 1959, com a vitória de Castro, portanto, nas barbas do governo Jango. Imaginem as pressões que um presidente tinha de enfrentar para manter o país soberano num cenário internacional tão conturbado. Na ONU e na OEA o Brasil reafirmava sua posição a favor da não intervenção de nenhum país nos assuntos internos de outro. Barra pesada, lembrando que os Estados Unidos se constituíam no nosso principal parceiro comercial, juntamente com a Argentina. A política diplomática brasileira foi impecável, até o golpe. Pouco antes nosso país enviou tropas para a Linha de Gaza, em Suez, com os capacetes azuis da ONU, numa tentativa de manter a paz naquele ponto de grande tensão do Oriente Médio. Isso nos orgulhava. E detalhe, só por curiosidade: o famoso capitão Carlos Lamarca serviu nessas tropas.

Uma das primeiras medidas do golpe foi romper relações diplomáticas e comerciais com Cuba. E novamente o Brasil mandou tropas para o exterior, só que agora para intervir numa guerra civil na República Dominicana, impedindo a vitória já certa da esquerda. O comandante foi o general Meira Mattos, da linha dura do golpe.

O rompimento com Cuba não foi um ato banal. Com isso, o Brasil se igualava aos países satélites, no arco dos Estados Unidos, que promoveram um brutal bloqueio econômico à ilha do Caribe. Foi o que jogou Castro no colo do Leste europeu, mas a um custo econômico muito alto. Nenhuma revolução poderia dar certo sem parceiros comerciais em seu próprio continente. Tudo, vindo de muito longe, custava o triplo e tinha que ser subsidiado para o consumo. Não há economia que agüente.

Voltando ao nosso Jango, e haveria ainda muito a comentar sobre ele e seu governo, sob os mais variados prismas, são interessantes algumas observações no campo das suas relações com os militares. Primeiro, lembrando que foi a última vítima de uma articulação golpista que começa em 1954, com a tentativa de deposição de Getúlio Vargas. O suicídio do presidente, surpreendendo e colocando em choque todo o país, abortou o sonho da ditadura. Em 1955, eles tentam novamente, querendo impedir a posse de Juscelino, e são esmagados no dia 11 de novembro pela ação legalista do ministro da Guerra, general Henrique Teixeira Lott, que derruba o presidente interino e também golpista, Carlos Luz. A terceira tentativa de golpe foi em 1961, no episódio da renúncia de Jânio Quadros. Tentaram impedir a posse de Jango, que era vice de Jânio: foram novamente derrotados, agora pelo levante gaúcho, a Legalidade, sob a liderança do governador Leonel Brizola. Finalmente, em 1964, os golpistas tentam, com um início que tinha tudo para ser desastrado, e vencem. A direita civil apoiou, claro, acreditando que tinha chegado a sua vez. Mas foi alijada, inclusive com cassações de direitos políticos, e virou oposição. Isso explica porque determinados jornais, que apoiavam o golpe, principalmente o Estadão, se tornaram críticos do regime e passaram inclusive a sofrer censura. O Estadão era articulado com Carlos Lacerda, governador do extinto Estado da Guanabara. Ele ajudou a derrubar Jango, entrincheirado em seu palácio, e foi cassado por dez anos. Aliou-se depois a Jango na frustrada tentativa da Frente Ampla, rejeitada por Brizola e pela maior parte da esquerda.

As relações de Jango com os militares eram amistosas. Vários comandos importantes estavam nas mãos de oficiais legalistas e da confiança do governo. Era o caso de Amaury Kruel, em São Paulo, que mudou de lado na última hora, sob pressão do seu estado maior. Os fuzileiros navais, 10 mil homens, com forte politização na tropa, ouviam coesos as ordens do almirante Cândido Aragão – de esquerda e muito ligado ao Brizola. A base de Santa Cruz, a mais poderosa da Força Aérea, tinha em seu comando um comunista assumido, o brigadeiro Teixeira, apoiado pelos sargentos. Na Força Aérea havia também um nome de grande prestígio: o brigadeiro Moreira Lima, da esquerda militar e herói do célebre Esquadrão Senta a Pua, que operou com grande eficiência nos céus da Itália durante a Segunda Guerra Mundial. Também muito ligado aos sargentos era o general Oromar Osório, comandante da poderosa Vila Militar, do Exército, no Rio de Janeiro. Oromar, famoso desde a Legalidade, quando foi o primeiro general a apoiar a resistência de Brizola, era um legalista de primeira e de todas as horas. Moraes Âncora, comandante do I Exército (Rio), foi fiel ao presidente até saber que ele buscava o exílio, e, portanto, não haveria resistência. Havia outros, como os corajosos e aguerridos generais Ladário Pereira Telles e Zerbini. Seria longo citar todos. E em todos os escalões havia legalistas democratas, de generais aos mais simples soldados. Mas vale lembrar ainda dos nomes dos generais Osvino Ferreira Alves, que comandou Santa Maria e depois o I Exército, e de Henrique Lott, este último já na reserva, no golpe, mas com grande influência e respeito nas fileiras do Exército, onde construiu sólida biografia. Osvino tinha forte liderança entre os sargentos, a ala militar aliada aos movimentos populares.

A lista de militares cassados pela ditadura teve cerca de dez mil nomes. Lembrando que um grande número escapou, porque permaneceu calado, é fácil concluir que o regime jamais teve, em momento algum, a aprovação da totalidade dos militares. A História, por justiça e homenagem aos militares democratas e legalistas, merece este reparo.

Quero encerrar dizendo que uma grande virtude do governo Jango foi a liberdade. Falava-se e escrevia-se de tudo – até atacando a honra pessoal do presidente, uma vergonha. Não precisavam ter descido a tanto, mas para a direita não havia limites na sua luta para desestabilizar o governo. Com suas virtudes e defeitos, vacilações e virilidade, o governo Jango foi um período inesquecível e marcante nesse aspecto: o Brasil respirava e vivia liberdade, ampla e irrestrita. Não é para menos que a gente lamente tanto a ditadura, que nos roubou por 21 anos um bem tão valioso. 

Cerimônia de chegada a Brasília dos restos mortais do Presidente João Goulart. (Brasília-DF, 14/11/2013) Foto: Roberto Stuckert Filho/PR

¹jornalista recém-formado em início de carreira

LIBERDADE À HISTÓRIA DE JANGO, pelo viés do colaborador Milton Saldanha

Milton Saldanha é jornalista.

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