Para uma breve anatomia da afetação

Créditos: Flickr/Susan Barrett Prince

Um problema característico das relações humanas de nosso tempo, presente em todos os grupos, classes e segmentos sociais, de forma indistinta, é o problema da afetação. Na medida em que se trata de um fenômeno que ameaça realizar grandes estragos e quiçá comprometer a perspectiva de um futuro feliz para a humanidade, urge que cientistas, filósofos, críticos da cultura, especialistas em análise comportamental, intelectuais e intelectualoides de todas as estirpes se empenhem em decifrá-lo. Nesta condição, é o que tentaremos, agora, com nossa breve e despretensiosa argumentação.
A característica ineliminável de toda a afetação é que a pessoa imbuída desse traço peculiar de comportamento tem a sua própria pessoa em altíssima conta. A imagem que faz de suas qualidades é, sempre, perversamente exagerada. Contradição é, para esse indivíduo, como o mau hálito: só o outro tem. É por partir dessa premissa, de modo inexorável, que tal sujeito soluciona imaginariamente seus paradoxos, de modo a poder cometer na prática as pequenas violências que tanto lhe dão prazer.
A pessoa afetada pensa-se elevadamente justa e boa, ultra-competente e sábia. Exige, por meio de sinais multifacetados e gestos espúrios, que os demais a tratem conforme sua neurótica fantasia anseia. É como se estivesse, psicologicamente, sobre um pedestal. Usa, para satisfazer suas necessidades baixas e secretas, de retórica capciosa. Tudo acerca de si, suas ações e feitos aparecem como tendo tremenda importância. Sente-se indignada quando não se convencem disso. No ápice dos seus delírios de afetação, considera quem dela discorde ou antipatize como alguém que precisa ser imediatamente enquadrado ou devidamente doutrinado. Os surtos de afetação, aqui, não são raros. Chorar, esbravejar e espernear são gestos recorrentes.
Essa é a razão pela qual a pessoa afetada está sempre armada para o ataque, para o veredicto, para a sumária execução. Vociferar, condenar, exigir “respeito”, etc., são parte de seu repertório clássico. E não é outro o motivo pelo qual, de forma rasa e caracteristicamente maniqueísta, se afixa tanto à ideia de poder. A relação de poder que projeta em todas as direções visa impor um necessário distanciamento com o outro, assim como uma relação hierárquica que não deve jamais ser quebrada, e na qual ela precisa estar sempre, fantasiosamente, “por cima”.
Por isso, insiste em ver poder em todos os cantos, em todos os refúgios, em todo e qualquer relacionamento pessoal. E se indigna se, dentro dessa sua visão caricata e quimérica das coisas, se sente subalternizada, isto é, como alguém “menos” que o interlocutor que se encontra em polo oposto. A sua pretensa autoridade (ou melhor, a sua sensação e desejo de possuir alguma autoridade) não deve ser posta em questão. Porque, no fundo, a pessoa afetada gosta mesmo é de mandar nos outros.
É a pessoa fresca, sobretudo (frescura é outro nome, popular, para a afetação). Uma vez insatisfeita em seu ímpeto de se colocar acima dos demais, a pessoa afetada, fresca, perde as estribeiras, desce do salto, chuta o pau da barraca. “Sabe com quem está falando?” é uma das suas expressões típicas, que gosta de manifestar junto com uma desconcertante carga de teatralidade – geralmente, com o dedo em riste, ou com as mãos na cintura. O sujeito afetado, em verdade, parece querer que o outro saiba ler pensamentos. E por este não conseguir fazê-lo, torna-se objeto de sua ira e afetação. Nesse contexto, as “injustiças” que crê praticarem contra si são apenas as imagens ilusórias criadas pelo ímpeto inconfessável de agressividade e de crueldade que intenta cometer com o outro.
“Não quero que me chamem de Fulano, mas de Doutor Fulano”. O afetado sente-se sempre vilipendiado. Onipresentemente perseguido, unilateralmente visado. Ele é o centro das atenções. Quereria, por certo, ser o centro do universo. Certamente, se acha um modelo a ser seguido, o herdeiro e sucessor de alguma grande figura que admire, oriunda de nobilíssima estirpe. E ai de quem machuca a sua vaidade e a sua suscetível sensibilidade. (E tudo pode feri-lo: a postura corporal de quem está ao lado, o assunto discutido à mesa de um boteco – se por acaso não se situa entre os temas que porventura ache justo -, a preferência afetiva, sexual, estética de terceiros, etc.).
É deveras difícil travar com o afetado qualquer tipo de diálogo, uma conversação franca, um debate sério de ideias. É um paranoico, sobretudo, e um criador de caso contumaz. Quando acaso a afetação se multiplica e contagia um grande grupo, fazendo com que seu ódio e animosidade se concentrem em um ponto específico, grandes tragédias podem acontecer: imolações, apedrejamentos, linchamentos, ou coisas do gênero. Se possível, recomenda-se evitar o contato com indivíduos assim. Eles engendram um discurso que descamba para ataques pessoais. Sorrateiramente, a pessoa do outro torna-se o pressuposto a ser combatido.
A sensibilidade afetada presume-se sempre maior do que é, e não aceita, de jeito algum, que alguém lhe trate como “menor” do que aquilo que acredita ser. O afetado, sim, pode julgar, avaliar, considerar e até mesmo carimbar o outro com o rótulo de reles e ridículo, mas a recíproca não deve nunca acontecer. É frequente, aliás, que a pessoa afetada se coloque na posição de juiz supremo de tudo e de todos. Sua visão, supõe, é ampla e oniabrangente. É compreensível que, diante dessas circunstâncias, prefira as companhias nas quais sua argumentação ardilosa suscite a admiração que lhe acaricia o ego.
O sujeito afetado constitui-se, assim, um praticante sistemático das pequenas opressões: xingar, rotular, injuriar, difamar, fofocar, propagar boatos infames contra terceiros, etc. A condenação moral está entre as suas armas prediletas. Usa-a para enovelar seus adversários em uma teia psicológica nauseabunda. É aqui que se revela toda a sua patológica astúcia. Como ser débil que é, encontra um meio fantástico de aumentar seu poder, através de idéias e ideais que procura incutir na cabeça dos demais. Ao realizar tal objetivo, submete o sujeito que se lhe confronta a partir de dentro, isto é, de sua subjetividade. Inocula remorso, arrependimento, vergonha, culpa, como poderosos venenos a exterminar no outro as mais vigorosas e vitais energias psíquicas. “Reconheça-me assim ou assado”: é a secreta exigência por trás dessas atitudes, que buscam inequivocamente controlar o comportamento alheio.
O exagero é uma das grandes especialidades da pessoa afetada. É assim que maquia, sobretudo, a sua desagradável pobreza de espírito. Da parte do outro, um toque pode representar um tapa; um simples gesto, uma agressão; uma discordância, uma ofensa. Por isso, o indivíduo afetado se magoa facilmente. Por isso, se sente ultrajado com qualquer banalidade. Está em maus lençóis, por certo, aquele que expressar uma opinião diversa daquilo que considera correta a pessoa fresca e afetada.
Não há aparência, forma física ou traço exterior que porventura a distinga. Um rostinho bonito, um corpinho de acordo com os padrões da moda, podem esconder a síntese suprema da mais funesta escrotidão.
A afetação é, em suma, o vício com que a pessoa mascara a sua completa insignificância. É o fetiche que se teme ser compartilhado. É o ídolo das subjetividades asquerosas. E em tempos de violência desmedida, de escrachos grandiloquentes, de justiça feita com as próprias mãos, pode-se considerar a afetação como sintoma, carapaça e pavio da mais estúpida boçalidade e da mais criminosa barbárie.
Para uma breve anatomia da afetação, pelo viés da colaboradora Clara do Rêgo Rosa (“De te fabula narratur”), filósofa e militante virtual.

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