Democracia, uma miragem?

Numa entrevista ao site de jornalismo político Talking Points Memo, em abril deste ano, o cientista político Martin Gilens afirmou o seguinte:

“Eu diria, ao contrário do que décadas de pesquisa em ciência política possam ter levado você a acreditar, que os cidadãos comuns têm virtualmente nenhuma influência sobre o que seu governo faz nos Estados Unidos. E que as elites econômicas e os grupos de interesse, especialmente aqueles representando empresas, têm um grau substancial de influência. A elaboração de políticas do governo ao longo das últimas décadas reflete as preferências destes grupos – das elites econômicas e dos grupos de interesse organizados.”

Gilens é pesquisador da Universidade de Princeton, e sua afirmação é oriunda da análise que ele e seu colega Benjamin I. Page (da Universidade de Northwestern) fizeram num estudo sobre a política nos Estados Unidos. Esta conclusão que Gilens expressa – e que rendeu ao estudo uma ampla cobertura na imprensa – faz parte de uma análise que os dois pesquisadores fizeram de quase 1.800 políticas adotadas pelo governo federal dos Estados Unidos ao longo de 23 anos (1981 a 2002).
A conclusão da pesquisa é assustadora (embora não seja, no todo, surpreendente) porque explicita a falência da representação majoritária, ideal que está no cerne das democracias contemporâneas – pelo menos, na teoria delas.
Os resultados do estudo aplicariam-se ao Brasil igualmente? Não arrisco uma resposta taxativa. Com um pouco de análise mais demorada, é razoável supor que a democracia brasileira também seja fortemente influenciada pelas elites econômicas e por certos grupos de interesse. Uma pesquisa similar à conduzida por Gilens e Page é muito bem-vinda à realidade brasileira. Uma vez que já tivemos governos comandados por diferentes partidos ao longo dos últimos 24 anos, isso permitiria uma análise das políticas governamentais em diversos setores e sob diferentes comandos (no Executivo) e maiorias (no Legislativo) partidárias.
Com a proximidade das eleições presidenciais de 2014, é interesse observar a realidade deste pleito no Brasil à luz do que esta pesquisa de Gilens e Page demonstrou. Assim como nos Estados Unidos, as campanhas à Presidência no Brasil têm sido cada vez mais caras. A projeção de gastos para este ano, somadas as 11 candidaturas registradas junto ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), é de quase 1 bilhão de reais. A da atual presidenta, Dilma Rousseff (PT), e a do opositor Aécio Neves (PSDB) têm custo projetado de quase 300 milhões cada.
O valor das campanhas não é fator único ou determinante para se concluir pelo sequestro, da parte dos interesses econômicos de alguns, do princípio da vontade majoritária. Entretanto, é indício da centralidade do poder econômico para as eleições, sobretudo quando se analisam os principais financiadores destas campanhas. Segundo dados do Transparência Brasil, o maior montante dos valores declarados pelos três candidatos mais bem classificadas em 2010 (Dilma, Serra, do PSDB, e Marina Silva, então do PV) era oriundo de pessoas jurídicas. Deste valor, a maior parte foi destinada por meio do fundo partidário, e a outra por doações diretas das empresas aos partidos. Enquanto pessoas físicas doaram menos de 400 mil reais para a campanha de Dilma (para Serra, quase 80 mil, e para Marina, quase 28 mil), o repasse de empresas foi de quase 12 milhões de reais (4 milhões para Serra e 1 milhão para Marina).
Um trecho do estudo de Gilens e Page que discorre sobre as conclusões da pesquisa, tomando como referência grandes teorias políticas, ressalta: “a análise multivariada indica que elites econômicas e grupos organizados representando interesses econômicos têm substanciais impactos independentes sobre as políticas de governo dos EUA, enquanto os cidadãos comuns e grupos de interesse representando grandes populações têm pouca ou nenhuma influência. Os resultados fornecem considerável apoio para as teorias de Dominação por Elites Econômicas e para teorias de Pluralidade Tendenciosa, mas não para as teorias de Democracia Eleitoral Majoritária ou Pluralismo Majoritário.”
Em outras palavras, grandes corporações (que são as maiores doadoras em campanhas) e indivíduos economicamente mais afluentes influenciam nas decisões das políticas governamentais, e os grupos organizados, como sindicatos, coletivos e ONGs, têm pequena ou nenhuma influência. Os autores do estudo não o disseram explicitamente, mas o que comentadores da área e a imprensa traduziram das conclusões é bastante preciso: não haveria mais democracia, mas sim uma plutocracia ou aristocracia no país mais rico do mundo.

(Créditos: Bhaskar Peddhapati Photography)
(Créditos: Bhaskar Peddhapati Photography)

Novamente ao Brasil: sem pretender análises densas e históricas, é possível identificar indícios de uma realidade similar, na sociedade brasileira, àquela apontada no estudo de Gilens e Page. Movimentos organizados representando uma série de setores como trabalhadores sem-terra, povos indígenas, feministas, minorias sexuais (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais), comunidades atingidas por megaeventos e empreendimentos – barragens e estádios -, além dos tradicionais sindicatos, têm sofrido com o pouco espaço de interlocução junto ao governo federal. Mais que isso, quase nenhuma das agendas e demandas dos grupos organizados destes setores obteve avanços nos últimos anos.
Não só organizações (grupos de interesse), mas a própria maioria de cidadãos não teria influência nos processos decisórios. Segundo outro trecho do estudo sobre os EUA, “quando uma maioria de cidadãos discorda de elites econômicas e/ou de grupos de interesse organizados, ela geralmente perde”. Isso nem sempre é verdade, é claro, e não ocorre de modo explícito ou destensionado.
Um exemplo interessante é a Lei Complementar nº 135, de 2010, conhecida como Lei Ficha Limpa. Ela é fruto de iniciativa popular, por meio de grupos de interesse (como o MCCE, Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral), e foi aprovada no Congresso Nacional brasileiro sob forte mobilização de inúmeros grupos sociais, da imprensa e de setores do Judiciário. Ao aumentar os critérios de inelegibilidade de pessoas condenadas pela Justiça, a lei atendeu aos interesses de uma parcela da população via grupos organizados.
Este exemplo demonstra um caso específico de “vitória” da vontade de grupos organizados não orientados por interesses econômicos, sobretudo quanto ao processo Legislativo. Entretanto, não nos diz muito sobre a capacidade das maiorias em influenciar as decisões políticas do Executivo Federal. Apenas uma análise extensa de políticas adotadas nas últimas duas décadas, em diversos setores, poderia fornecer um diagnóstico acurado da capacidade das maiorias democráticas em influenciar o governo.
O que tanto os protestos de junho de 2013 no Brasil quanto as próprias eleições periódicas nos colocam, como desafios, é a necessidade de refletir sobre a democracia representativa e os limites da própria representação. Se resultados similares ao do estudo de Gilens e Page fossem encontrados quanto à democracia no Brasil, como creio que seriam, restaria claro o quanto o poder econômico é pernicioso a um sistema político que se pretende plural.
Mais do que apenas centrar nossos esforços em avanços progressistas nos debates e campanhas eleitorais, como estratégia de tensionamento necessária, é preciso reiterar em todos os espaços sociais possíveis a desigualdade de poder (de influência e decisório) que nosso sistema político alimenta. É na esfera da cultura, dos meios de comunicação e da educação, portanto, que precisamos empreender mais esforços. Só a própria maioria, consciente da sua capacidade minoritária de influenciar os rumos do país no sistema atual, pode modificar isso. 
 
1. Para ler o sumário executivo da pesquisa, acesse o site de Martin Gilens.
2. Para ler a entrevista de Gilens ao Talking Points Memo, acesse aqui.
 
Democracia, uma miragem?, pelo viés de Luiz Henrique Coletto

2 comentários em “Democracia, uma miragem?

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