Racismo e futebol: até mesmo na “nossa” Copa!

Foto de Nicolas DECOOPMAN  (Junho de 2014) - Creative Commons
Foto de Nicolas DECOOPMAN (Junho de 2014) – Creative Commons

Definir a brasilidade – aquilo que somos e assumimos como marca da nossa sociedade – qualquer que seja a nossa opção política, teórica ou metodológica, passará pela miscigenação e pela questão racial. Há mais de quinhentos anos, no território que hoje é o Brasil, vivemos de chegadas e encontros, contatos e invasões; misturas quase nunca harmoniosas e que marcaram indelevelmente a formação do nosso povo.
A noção de brasilidade enquanto identidade peculiar que caracteriza o povo brasileiro assumiu diferentes significados ao longo do tempo, carregando consigo as marcas políticas e ideológicas do momento em que se expressou. Compreendendo que os termos “brasilidade”, “nação brasileira” ou ainda “Brasil-Nação” foram compostos por diferentes conotações sociais, econômicas, políticas e culturais, esta noção – a de ‘brasilidade’ – é muito mais um discurso ideológico permanente que atua como um estandarte simbólico fundamental para a invenção do passado e, por consequência, para a “organização” do presente, intervindo de modo a evidenciar, distorcer ou esconder questões no presente. Um componente das diferentes noções de brasilidade sempre foi a formação do povo brasileiro e a maneira como se constituiu a miscigenação e a composição étnica que ocupa o extenso território do Brasil.
Desta forma, a questão das relações raciais é central para qualquer tentativa de análise e interpretação da nossa história e dentro dela, o racismo apresenta-se como fundamento da subjugação efetiva da maioria da população brasileira. O racismo tem bases na formação histórica do Brasil mas mantém-se e se reproduz em pleno século XXI de maneiras renovadas e, na maioria das vezes, sutis. Manifesta-se no cotidiano brasileiro, impregnando de sentidos as interações sociais e influenciando nos formatos de sociabilidade e integração dos diferentes grupos raciais.  Somos uma sociedade racializada – o que não representaria problema algum se não fossemos tão racialmente desiguais.
Nos últimos meses, vieram a público uma série de manifestações que recolocaram na pauta a discussão sobre o racismo no Brasil. Dos campos de futebol ou no seu entorno, ofensas racistas contra jogadores ou árbitros reverberaram e confirmaram manifestações doloridamente corriqueiras fora dos estádios.
Jogando pela principal competição de futebol do continente, o atleta  gaúcho Paulo Cézar Tinga foi alvo de ofensas racistas por parte da torcida adversária, em Cuzco, no Peru. O fato ganhou repercussão internacional e, internamente, no Brasil, somou-se a outros casos, antigos e atuais, dentro e fora dos gramados. Em outra partida, esta realizada pelo campeonato gaúcho de futebol, na cidade de Bento Gonçalves, Marcio Chagas, o árbitro da partida, foi ofendido diversas vezes durante e após o término do jogo, chamado de “macaco” dos alambrados, ao final da jornada daquela noite seu carro estava amassado, chutado e com algumas bananas, deixadas de “presente”.
Mesmo no espaço de sociabilidade coletiva privilegiado que é o futebol e com toda a simbologia que carrega de elemento agregador e demarcador da nossa identidade “boleira”, lá também – e muito – habita o racismo.
A segregação racial brasileira também é visível e demonstrável em situações que evidenciam que o racismo não se dá apenas no campos das ideias e da distribuição de bens simbólicos. O estigma também carrega entrecruzados elementos de demarcada e desigualdade no acesso e na fruição de bens materiais. Há uma assimetria racial também na economia das materialidades cotidianas, do acesso a recursos e produtos. Ambas – assimetrias simbólicas e materiais – coincidem fortemente.
Eventos que ganharam notoriedade ao final de 2013 ou nos primeiros meses deste ano nos mostram esta situação muito nitidamente. Os “rolezinhos”, a greve dos garis durante o carnaval do Rio de Janeiro e, de volta ao futebol, a Copa do Mundo, desde de seu jogo de abertura revelaram atitudes e comportamentos que nos impõem a triste e dura certeza de que somos sim uma nação racialmente desigual.
Nos casos citados inicialmente, ocorridos sob todos os holofotes que o futebol recebe da imprensa e da sociedade, o racismo foi julgado, criticado e condenado como um mal que deve ser extirpado da vida social. Alguns clubes de futebol receberam sanções ou multas, com prejuízos financeiros e punições nos certames em que participam, além do relativo repúdio público, no entanto, em nenhum caso houve identificação individual dos praticantes das ofensas. No caso do clube peruano – o Real Garcilarso – sequer houve julgamento ainda.
Mas os outros casos – dos “rolezinhos” e da greve dos garis – revelam algumas sutilezas do racismo brasileiro. A presença de uma juventude predominantemente negra, vinda das periferias e rompendo a linha entre quem pode e quem não pode ocupar espaços específicos de convivência e socialização, no caso os centros de compras das grandes cidades brasileiras, evidenciou um dos aspectos do racismo brasileiro: a delimitação de espaços e papéis a cada um de acordo com atributos físicos e de aparência.
Ainda não profundamente estudado, o fenômeno “rolezinho” tem como um dos seus marcos iniciais a perseguição policial a jovens que estavam em uma festa pública e em local aberto. Para escapar da violência policial, os jovens buscaram refúgio entrando num shopping center. Situações semelhantes já haviam sido relatadas em São Paulo, mas é a partir do incidente em Vitória, na capital do Espírito Santo, que emergem nacionalmente convocatórias para “rolezinhos” que ocuparam os espaços reservados a certo tipo de consumo e deleite. Reagindo contra a repressão ocorrida em Vitória, no dia 30 de novembro de 2013, milhares de pessoas se mobilizaram, especialmente jovens, moradores das periferias e predominantemente situados no que é chamado de classe C ou, mais hodiernamente, de “nova classe média” no Brasil. As imagens que rodaram o país apresentavam com cruel nitidez o contraste entre os jovens impedidos de circular pelos shoppings e quem aplaudia a repressão e a expulsão dos jovens. Esse contraste era racial. Embora essa bifurcação inclua outros fatores como renda, poder aquisitivo e classe econômica, a oposição branco-negro resumia a assimetria das relações raciais no Brasil ali colocadas. O par pobreza-cor, cuja presença visível no caso dos “rolezinhos”, expressa e reforça a interpenetração das variáveis raciais e econômicas na descrição das desigualdades brasileiras e permite, senão exige, um olhar racializado para esta questão. Pois há um elemento racial influindo na determinação do espaço e do papel subsumido para esta juventude.
Estes espaços e papéis são distribuídos e reforçados de maneira gestaltica, naquilo que é visto, mostrado e percebido, conforme Oracy Nogueira descreve no clássico “Tanto preto quanto branco”, ao analisar o racismo no Brasil, mas nesse caso, para além da cor da pele ou de traços físicos, incorre também um apelo visual do consumo e da posse de mercadorias que encerram valores e símbolos de status social. Os jovens que desfilavam paramentos e vestimentas pelos templos modernos do consumo, embora não configurem um movimento no sentido político que se deu ao termo, reivindicavam sua incorporação a um determinado habitus, buscavam o reconhecimento oferecido por marcas e grifes, símbolos de distinção.
Embora as análises apontem para a sinergia de diferentes questões, a raça como elemento identificador presente nos “rolezinhos” indica com nitidez: eram, em grande parte, negros em movimento. E por isso chocaram: pois se movimentavam em um espaço em que não eram esperados.
Assim também foi notório o contraste na greve dos trabalhadores da limpeza urbana na cidade do Rio de Janeiro. Notabilizados pela época em que resolveram cruzar os braços, durante os festejos do carnaval, os garis cariocas, em suas manifestações romperam com a invisibilidade a que, via de regra, estão relegados. E foi mostrada então uma categoria de trabalhadores composta predominantemente por negros e negras. Nas imagens da greve são raros – quase inexistentes – os trabalhadores brancos, demonstrando assim que, em um trabalho que conta com alto grau de desprestígio social e desvalorização salarial, a presença negra é extremamente majoritária.
Estes dois casos, embora exista a tendência de serem analisados apenas pelo viés econômico, apontam para o fator demarcador que são a raça e a cor no Brasil.
Ainda é preciso destacar algo fundamental do modus operandi do racismo cotidiano no Brasil: um racismo que se expressa sem racistas, evidenciando formas difusas de reconhecimento do racismo. Como tal prática é socialmente reprovável e tratada constitucionalmente como crime imprescritível e inafiançável, é comum que as pessoas, individualmente, tentem se eximir e afastar de qualquer possibilidade de exercitar alguma prática, pensamento ou manifestação racista.
O racismo é tratado como um tabu e, em geral, a emulação de uma pretensa democracia racial é tida como peculiaridade que coloca o Brasil como referência para o mundo e em especial para os países e regiões onde eclodem conflitos raciais abertos ou em que vigoram ou vigoraram recentemente, leis ou dispositivos legais de segregação racial.
Entretanto, o racismo, aparente em diversas esferas e comprovável por distintos caminhos de demonstração, mesmo tido como indesejável para uma sociedade que se pretende constituída sob a égide do ideário liberal em que, ao menos formalmente, todos são iguais perante a lei, tem sua existência reconhecida na sociedade brasileira, transformando esse ideário em uma contrafação. É possível perceber o que a população brasileira pensa a respeito do racismo e comprovar a percepção média que a população tem das relações raciais e do que implica ser negro no Brasil. Podemos fazer isso utilizando, entre outros exemplos, o estudo “Violência contra a juventude negra no Brasil – pesquisa de opinião pública nacional”, realizado pelo DATASENADO e apresentado pelo Senado Federal em novembro de 2012. O referido estudo indica que 55,1% dos entrevistados concordava que o homicídio de jovens negros se deve ao racismo e mais da metade também afirmava se chocar menos com o assassinato de um jovem negro do que com o assassinato de um jovem branco. Isto indica, entre outras conclusões possíveis, a existência de um imaginário racista na população brasileira, que se incorpora nas práticas e nas relações sociais entre negros e brancos. Acaso pode ser aceitável o fato de que o assassinato de um jovem negro cause menos espanto e revolta que o assassinato de um jovem branco? Como explicar essa percepção diferenciada em relação a um fato identicamente trágico? Apenas os séculos de subjugação imposta aos negros e negras submetidos a escravidão neste país podem dar entendimento a uma discrepância dessa magnitude? Ou persistem elementos que atribuem sentidos e significações distintas aos grupos racialmente identificados? Como pode ser atribuído valor distinto a duas vidas ceifadas violentamente?
A pesquisa também revelou que 51,8% dos inquiridos considerava que ser negro ou branco no Brasil afeta a vida de uma pessoa. Quer dizer, a existência do racismo como fator que incide na trajetória de vida de um indivíduo é percebida e indicada por parcela considerável da população e, além disso, percebida com importante grau de influência – dentre estes 51,7%, quase 70% consideravam que ser negro ou branco afeta muito a vida de alguém.
Isso tudo só é compreensível se entendemos o racismo como fenômeno estruturalmente constituído e ideologicamente utilizado para sacralizar privilégios para alguns em detrimento da dignidade de outros. O racismo e todo o enunciado racista coloca, na relação entre os diferentes, uma escala hierárquica. É, então, para isso que serve o racismo. Funciona e opera como garantidor e mantenedor de relações desigualmente constituídas para que o benefício de algum grupo seja justificado por diferenças pejorativas arbitrariamente impostas a outrem. Funcionou em outros momentos e ainda hoje atualiza-se a cada novo quadro de relações políticas, sociais e econômicas. Estabelece lugares e formatos de sociabilidade e convivência e mostra sua ironia, por exemplo, nas Arenas da FIFA nas quais as arquibancadas só são ocupadas expressivamente por negros quando estão em campo seleções africanas. Na abertura do Mundial, no jogo entre Brasil e Croácia, um olhar para as arquibancadas poderia nos induzir ao engano de acreditar que a composição racial dos dois países seja parecida dada a ausência de negros – croatas ou brasileiros –  na asséptica torcida padrão FIFA que lá estava.
Para finalizar, lembrando da partida inaugural desta Copa, o primeiro gol foi marcado pelo lateral brasileiro Marcelo, após lambança geral da defesa brasileira. Um gol contra! As manifestações que viralizaram nas redes sociais resumem o sentimento e as relações raciais dominates no Brasil: “Tinha que ser preto!” e “Não se pode confiar em gente de cabelo ruim!”. São expressões doloridíssimas para o povo preto que se afirma e luta a vida toda frente a isso. Além de muito racismo e preconceito, as expressões também revelam o olhar estreito e de mau gosto, afinal, o cabelo do anti-goleador daquela tarde, muito longe de ser ruim, é um cabelo lindo! 
 
Racismo e futebol: até mesmo na “nossa” Copa !, pelo viés de Alcir Martins

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