A Exceção e a Regra II: a ressurreição de Bakunin e Lombroso

Mikhail Bakunin e Cesare Lombroso. Personagens do século XIX resgatados pela polícia e pela mídia. Imagens: arquivo Wikimedia/domínio público
Mikhail Bakunin e Cesare Lombroso. Personagens do século XIX resgatados pela polícia e pela mídia. Imagens: arquivo Wikimedia/domínio público

Dos quase 600 mil indivíduos que se encontram hoje atrás das grades, cerca de 230 mil são pessoas acusadas de terem praticado crimes, mas cujos processos ainda não terminaram. Ou seja, 41% das pessoas presas são ainda consideradas inocentes pelo direito brasileiro, pois sua culpa não foi provada. A regra constitucional determina que todos têm a liberdade de ir e vir e que a prisão somente é admitida em caso de condenação judicial, após um processo onde foi garantido o direito de defesa, em casos de flagrante delito, ou ainda, excepcionalmente, em casos em que a liberdade do processado possa provocar dificuldades ao próprio desenvolvimento do processo.
Contudo, como em tantos outros assuntos, a prisão sem condenação vem se tornando a regra no Brasil. O tema veio à tona quando, em julho deste ano, 23 cidadãos tiveram suas prisões decretadas, investigados pela participação nas manifestações de junho de 2013 no Rio de Janeiro e considerados criminosos pela polícia. A base principal da decisão judicial foi um inquérito policial com depoimentos recheados de intrigas amorosas e delírios típicos da ficção: tornou-se crime qualquer tipo de simpatia ideológica com o anarquismo, o comunismo, ou qualquer discordância da ordem estabelecida. Ressuscitaram o teórico político oitocentista Mikhail Bakunin, que se tornou suspeito de liderar as manifestações no Rio. Ao lado dele, Sininho foi construída pelos jornalões como uma personagem ambivalente, mas julgada claramente como só as mulheres podem ser: pela sua beleza, inteligência e as acusações de ser sedutora e ter relações amorosas com um homem comprometido. Todos os que estavam à sua volta foram construídos como marionetes em suas mãos. O maior ressuscitado foi, realmente, o médico italiano, também oitocentista, Cesare Lombroso, que, entre medições de crânios e análise de narizes e vaginas, afirmou: “nunca vi um anarquista de rosto simétrico”. Ser adepto do anarquismo, portanto, é um sintoma de criminalidade. Em sua obra em co-autoria com Ferrero, La donna delinquente: la prostituta e la donna normale, Lombroso afirma: a criminosa nata é inteligente, ao contrário da maioria das mulheres. É bonita, sedutora, não é religiosa e não gosta dos filhos. Julgamentos morais e sexuais sobre a ação feminina. Quem não é moça recatada é criminosa.
Já no episódio da prisão de dois manifestantes em São Paulo a loucura foi tão grandiosa que até mesmo os explosivos que se declarou estarem na posse deles não eram sequer inflamáveis, da mesma maneira que o vinagre virara produto ilegal durante as manifestações de junho do ano passado. O discurso raivoso dos veículos hegemônicos de comunicação perante os ativistas envolvidos, sobretudo após a revogação das prisões preventivas, mostrou claramente a ampla aceitação da transformação da exceção em regra no Brasil.
A maior parte desses cidadãos provinha da classe média branca, pessoas que não costumam passar pelo arbítrio policial e judicial diariamente. No entanto, este é o cotidiano de grande parte dos processados no Brasil: eles costumam ser pobres, negros ou pardos, homens e muito jovens, como, aliás, se constitui a maior parte da clientela do sistema prisional brasileiro.
“A polícia prende e o Judiciário solta”. Uma das frases mais repetidas quando se fala em prisão sem condenação, mas que contém pelo menos dois erros. O primeiro é jurídico, pois, pela lei, se a polícia prendeu legalmente, é porque um juiz mandou. Mesmo em casos de flagrante, a prisão somente é legal se houver sua homologação por um magistrado. O segundo é de senso comum: a ideia de que há uma dicotomia entre as agências policial e judicial do sistema penal, na qual a primeira aparece como severa com os “bandidos”, e a segunda como leniente. Mas se não há prisão legal sem um mandado judicial, então essa dicotomia não é real: basta ver o número abissal de presos sem condenação no Brasil.
Diante desse viés punitivista, claramente perceptível no aumento dramático no número de presos no Brasil, o tema da influência da mídia nas decisões judiciais se torna quase uma ingenuidade: os juízes são, em grande parte, punitivistas e inquisidores. Quando os meios de comunicação em alguns casos pressionam por penas duras, tratamento gravoso, está se encaixando a uma definição anterior, a uma tendência que encontra ampla expressão na sociedade, na política e no Judiciário, sem, contudo, ser legal e legítima.
A sua ilegitimidade possui muitas proveniências, mas a principal delas é declarar que faz uma coisa e fazer o oposto. O discurso que se pretende legitimar apenas oculta a realidade oposta. Na caça às bruxas de que se reveste o processo penal na atualidade, quanto mais a operacionalidade real do sistema penal inverte as regras postas na Constituição, mais ela é aplaudida. Alguns exemplos se encontram abaixo:
– Legalidade x ilegalidade: descumprimento diário da lei penal e processual penal, nas prisões arbitrárias, ausência de garantias, uso de tortura contra os investigados;
– Igualdade x desigualdade: foco nas condutas de homens, jovens, pobres e negros, deixando na escuridão as condutas das classes médias e altas, bem como dos brancos, independentemente da danosidade de suas condutas criminosas (crimes ambientais, lavagem de dinheiro, corrupção, evasão de divisas, sonegação de imposto de renda etc.); ou naquelas que desafiam politicamente o status quo: atos do MST, greves e manifestações em geral são lidos segundo o código crime-pena.
– Presunção de inocência x presunção de culpa: ao invés de o Ministério Público, órgão acusador no processo penal brasileiro, ser visto como responsável por provar a culpa dos acusados, estes são vistos como responsáveis pela comprovação da própria inocência. Na dúvida, condena-se; na dúvida, prende-se, tudo ao contrário do previsto constitucionalmente aqui e em qualquer Estado que tenha a mínima ilusão de ser democrático.
– Reintegração social x desintegração/violência/morte dos condenados: a prisão não tem a finalidade de reintegrar socialmente, pois, ao romper os laços comunitários e familiares dos condenados, impede que eles tenham para onde voltar quando saírem da prisão. Além disso, com o estado das atuais prisões brasileiras, somente alguns sobreviventes excepcionalmente conseguem sair sem doenças e marcas profundas, se é que não morrem por lá mesmo.
– Combate à criminalidade x preservação das desigualdades sociais: O discurso declarado por aqueles que buscam legitimar o sistema é o de que quanto maiores são as penas e mais ofensivo é o tratamento conferido aos “criminosos”, mais a sociedade estará segura. Porém, desde a década de 1970 a academia vem mostrando que o objetivo real do sistema não é punir igualmente e proporcionalmente as pessoas praticantes de condutas contrárias à lei penal, e com isso prevenir o crime, mas punir seletivamente os pobres visando à manutenção da realidade desigual. Ao contrário de segurança, o sistema punitivo provoca a insegurança entre aqueles mais vulneráveis. Também por isso as contestações à ordem são raivosamente combatidas pelo sistema penal, apoiado pela mídia, que tem todo o interesse na manutenção da realidade social.
Os meios de comunicação de massa auxiliam na propaganda da exceção como regra. Não são eles que criam a inquisição: o nosso Judiciário é inquisidor, a nossa polícia funciona como um órgão de execução da inquisição, as nossas prisões são masmorras medievais. Mas os meios de comunicação não saem limpos desse sistema, eles o reproduzem, o propagam, e assim o fazendo, rompem com suas próprias regras: o código de ética do jornalismo brasileiro, por exemplo, afirma que a divulgação de informações deve obedecer ao interesse público, que o jornalista deve se opor ao arbítrio, ao autoritarismo e à opressão, bem como defender os princípios expressos na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Ao legitimar o sistema penal genocida na difusão dos discursos declarados, nada inocentes, de “repressão à bandidagem”, e ocultação da violência real perpetrada contra os cidadãos, a mídia toma parte nesse genocídio, em mais uma inversão, repercutida em todos os cantos do país. Ocultas por detrás dessas aparentes contradições estão as vítimas. E elas são completamente silenciadas, como foram na ainda recente ditadura militar brasileira: os inquisidores midiáticos são os mesmos que rotularam de terroristas todos os que desafiaram o poder dos generais.
Leia também: A Exceção e a Regra I: Prólogo.
Série Completa A Exceção e a Regra.
A exceção e a regra II: a ressurreição de Bakunin e Lombroso, pelo viés da colaboradora Marília De Nardin Budó*

*Marília é formada nos cursos de Comunicação Social – Jornalismo e Direito na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), com especialização em Pensamento Político Brasileiro na mesma instituição. É Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e Doutora em Direito na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Professora do mestrado em Direito da Faculdade Meridional (IMED) e do curso de Direito no Centro Universitário Franciscano (Unifra). Autora do livro “Mídia e Controle Social: da construção da criminalidade dos movimentos sociais à reprodução da violência estrutural”.

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