Quem marchou dia 15?

Foto: Marcelo De Franceschi

As marchas que tomaram as ruas de várias cidades do Brasil – e em alguns lugares do mundo – no domingo 15 de março foram, sim, vultuosas e expressivas. Mas o que realmente expressam? E quem foi às ruas no domingo? Por quê?

Estas questões, que podem parecer simples a um primeiro olhar, exigem respostas complexas.

Uma primeira resposta, dentre as mais simplistas, poderia ser a oferecida pelXs própriXs caminhantes do dia 15. Se tomamos algumas manifestações, ao vivo ou por imagens e textos em diversas plataformas e formatos, temos que aquelXs que estiveram nas ruas no dia 15/03 se definem como indignados combatentes da corrupção instalada no meio político – aquele espaço satisfatoriamente distante de nós para que estejamos isentos de seus vícios, mas próximo o bastante para nos atingir e exigir reações enérgicas para ‘melhorá-lo’ (sic). Também se autoproclamam detentorXs de uma moralidade exclusiva, proprietários de uma simbologia e de uma identidade nacional imaginada e construída de forma a cristalizar uma fraternidade que une concidadãos sem nunca colocar a solidariedade verdadeiramente na pauta. ApresentadXs por si mesmXs, quem se manifestou no dia 15 é o “futuro”, a “mudança”, o “fim da roubalheira”, a “virtude”, o “patriotismo contra _ _ _ _ _ _ _ _ _” (preencha o espaço pontilhado com comunismo, petismo, esquerdismo, bolivarianismo, socialismo ou algum outro sinônimo que, para diferentes visões de esquerda indiquem alguma modalidade de superação ou questionamento da ordem capitalista).

Vistos pelos olhos do mundo, tomando aqui as manifestações da imprensa de diversos países, em diversos veículos – que mesmo de longe não são isentos – as manifestações reuniram um “festival de ódio” (Forbes), os “contrários ao PT” (La Repubblica), “arautos da crise” (Clarín) ou “multidões dissidentes” (NY Times). No entanto, dentre as diferentes descrições, positivas ou pejorativas, a que me soou mais ilustrativa foi a enunciada pelo jornalão britânico The Guardian. Comparando com as jornadas de junho de 2013, os ingleses resumiram: os protestos de domingo reuniram pessoas “mais velhas, mais ricas e mais brancas” que as manifestações de dois anos atrás.

Essa clivagem muito visível nas imagens das ruas sintetiza a movimentação de classes no Brasil atual: há uma elite contrariada em suas expectativas de manutenção de conforto, status e distanciamento das camadas populares que busca camuflar-se de opinião pública nacional, enfurecida – seletivamente – com as notícias recorrentes de escândalos que cada vez mostram mais e mais políticos e partidos implicados em acusações, investigações, prisões ou condenações por envolvimento em negociatas, desvios, propinas, etc. Mesmo que, contraditoriamente, o status e os privilégios de classe no Brasil não tenham sido questionados ao longo da vigência do pacto social do projeto lulopetista, os percussionistas de teflon acumularam e estão demonstrando todo o alcance do seu ódio de classe transfigurado em clamor pelo combate à corrupção e por  (mais?) moralidade. Logicamente, para eles, “moralizar” o Brasil é recusar e combater qualquer ação, atitude ou pensamento que comungue de algum grau de sensibilidade às questões sociais ou que transcenda à caridade dos clubes de serviço. Passou disso, é imoral ou bolivariano. Ou ambos.

Mas este brado de moralidade é seletivo e, por mais enérgico que possa parecer, é limitado na sua capacidade de propor alternativa superadora para o atual quadro de crise.

É seletivo porque vocifera contra “Petrolões” e silencia sobre “Suiçalões”. Cobra o ataque aos direitos e reclama da aplicação ou eminência de medidas de austeridade e de arrocho do Governo Federal, sem incluir na sua indignação os gritantes ajustes postos em curso pelo tucanato de São Paulo ou tampouco levar para a rua alguma cobrança ou menção aos estelionatários-eleitorais Beto Richa (PSDB-PR) ou Ivo Sartori (PMDB-RS), que apresentam pacotes duríssimos de arrocho incluindo cortes e atrasos de salários de servidorXs públicos em seus estados. Enfim, razões para bradar por moralidade (sic) na política abundariam pois várias são as trampas que se apresentam dia após dia, em diferentes partidos e fora deles. Essa semana mesmo, o chefe de governo do RS anunciava a possibilidade do governo Sartori parcelar salários dos professores, brigadianos e demais servidores. O mesmo chefe que havia feito manobra audaciosa para abocanhar salários e vantagens como deputado sem perder a vaga no governo do Rio Grande do Sul, mostrando que, mesmo de acordo com a lei, um comportamento pode ser reprovável. Pelo menos para alguns e algumas. Sobre isso nenhum cartaz, nem mesmo os de gosto político ou ortográfico questionáveis.

Lógico que esta caracterização da seletividade política e partidária que fica evidente quando olhamos para as pautas(?) ou pelo menos para as faixas, cartazes e postagens – sim, postagens – do dia 15 de março não significa desconhecer que mesmo entre as camadas populares existe descontentamento, frustração e rejeição ao Governo Dilma. A acelerada curva descendente em que se encontra a popularidade da Presidenta só se constituiu num surpreendente índice percentual (mais de 60% de desaprovação segundo Datafolha) porque setores da classe trabalhadora, das camadas populares, das juventudes espremidas pela precarização no mundo do trabalho e pelo confisco de seus sonhos abandonaram esperanças e simpatias que ainda nutriam com a possibilidade de o PT oferecer experiências de governo progressistas ou, pelo menos, ‘menos piores’ que o neoliberalismo cru oferecido por Aécio e pelo PSDB.

No entanto, tal rejeição parece limitar-se aquilo que Carlos Nelson Coutinho, saudoso intelectual e militante socialista brasileiro chamava de hegemonia da pequena política. Por pequena política, nos seus Cadernos do Cárcere, Antonio Gramsci indicava as questões pequenas, parciais, cotidianas e triviais do jogo político. Contingências que se desenrolam dentro de um sistema ou estrutura já demarcada pela grande política. Esta última englobaria questões macro-estruturais, como a fundação e o funcionamento de Estados e sistemas políticos e econômicos. Esta segunda política, a grande, está alijada da cena e dos debates que passam pelo 15 de março. E isso não é ocasional, retomando Coutinho, esse esmaecimento ou ocultamento dos temas da grande política faz parte necessariamente da consolidação da hegemonia neoliberal, obstruindo qualquer discussão em torno de projeto de sociedade que supere ou transforme o status quo. Esta hegemonia reduz a política à “simples administração do existente”, eximindo-se do questionamento – e dos rugidos – que alcancem além da superfície. (Como o próprio Coutinho explica, reduzir tudo à pequena política é também uma grande política, pois encerra, em si, um projeto político e a adoção de um modus operandi peculiar).

Temos então, de certa forma, uma chave explicativa para o fato de que as saídas apontadas no dia 15 não representem de fato mudança qualitativa para a política brasileira. A proposição de impeachment, embora prevista legal e constitucionalmente, flerta com o golpismo e não permite nenhuma renovação tão profunda que viesse a garantir novas rotinas e metodologias para a gestão do país – ou da política em qualquer esfera, escala ou nível. Os assustadores clamores por intervenções militares, solicitadas em boa e bela Língua Portuguesa, ou pela turma poliglota, nos cartazes em línguas estrangeiras, além de nada terem de constitucionalidade são de um contrassenso abissal. A lógica do “acabamos com a democracia por alguns meses para depurá-la e fortalecê-la” é, no mínimo absurda ou ingênua. Isso sem contar que o passado da mais recente experiência brasileira de ditadura civil-militar nos aponta para saldos negativos tanto no campo das liberdades políticas, da garantia das liberdades individuais e coletivas, quanto no que tange à moralidade e à pureza incorruptível que alguns parecem imputar às fardas e condecorações militares. Pelo contrário, foi durante os longos 21 anos de chumbo, de 1964 a 1985, que as maiores empresas brasileiras – hoje implicadas ao máximo na“Lava-Jato”, como grandes corruptoras de várias Casas (legislativas, executivas e judiciárias) – deram início ao seu crescimento, fortalecidas pelo enraizamento e promiscuidade na relação com o poder público, então sob controle dos generais. Esquecem-se de que, no tempo dos generais-presidentes criaram-se malufes e ace-emes e os oligopólios da mídia que contam e recontam a história, moldando versões confortáveis para quem as emite e para quem as recebe passivamente.

Mas e essa massa de gente que foi à rua e que não corresponde exatamente aos grandes proprietários de terras, industriais, tubarões do mercado financeiro, das telecomunicações, enfim, não são a ‘fina flor do rentismo’? Por que saem as ruas com tanto ímpeto e tanta força? Por que atacam elementos simbólicos e políticos aos quais supostamente atribuem algum tipo de benefício, ajuda ou assistência às camadas mais pobres da sociedade? Muitas das manifestações que anunciam a chegada do golpe comunista no Brasil para os próximos dias ou a qualquer momento, no fundo, parecem manifestações esquizofrênicas diante de moinhos de vento (perdão Cervantes! Sei que Dom Quijote carrega muito mais nobreza e pureza do que cabia naquelas ruas de domingo). Para entendê-las, proponho um resgate, sem apelar a dogmatismos ou leitura a-históricas, de um trecho escrito por Trotsky, em 1934, analisando a conjuntura francesa em que o fascismo vicejava. Ao buscar explicar o que fazia a pequena burguesia e as classes médias lançarem-se violentamente contra o socialismo e contra a esquerda, sem enxergar o estrangulamento econômico e social que o capitalismo lhes reservava, Trotsky indicou que

“O fascismo recruta seu material humano sobretudo no seio da pequena burguesia. Esta termina sendo arruinada pelo grande capital, e não existe saída para ela na presente estrutura social: porém não conhece outra. Seu descontentamento, revolta e desespero são desviados do grande capital, pelos fascistas, e dirigidos contra os operários. Pode-se dizer do fascismo que é uma operação de “deslocamento” dos cérebros da pequena burguesia no interesse de seus piores inimigos. Assim, o grande capital arruína inicialmente as classes médias e, em seguida, com a ajuda de seus agentes mercenários – os demagogos fascistas -, dirige a pequena burguesia submersa no desespero contra o proletariado.” (Trotsky. León. Para onde vai a França?)

É provável que o nível de deterioração das condições de vida das classes médias francesas dos anos 30, num outro contexto de crise capitalista mundial, seja mais agudo do que a vivida no Brasil de hoje, também em meio aos efeito de outra crise de proporções mundiais e que só afetou com menor intensidade nosso país por termos nos mantidos como o celeiro à reboque da industrialização chinesa nos últimos anos.

A aproximação de setores populares ao campo mais raivoso e orgânico da direita não pode ser entendida na rebaixada resposta apresentada pelo Planalto que, ao oferecer um novo pacote anti-corrupção, caracterizou as manifestações multitudinárias do domingo  como consolidação da democracia brasileira (aí tentando acumular bônus e méritos passados e presentes nesta questão, mas acabando por cair no jogo tétrico de “espetacularizar” a “festa” da democracia”) ou, pejorativamente, caracterizou como a exposição de quem votou no PSDB em outubro passado. Ambas reduções que não dão conta de toda a amplitude do momento.

No programa do Viés na Supernova, em que debatemos sobre a conjuntura e as mobilizações de rua recentes, Gabriel Vaccari indicou que há uma diferença entre PSDB e PT e suas respectivas bases sociais. Uma seria muito menos polida que suas  civilizadas lideranças partidárias. Outra, seria mais a esquerda e popular do que seu partido, no governo, conseguiu ser. Esta constatação nos aponta para uma esperança e para um temor.

A esperança (nossa esperança) é que a base social do PT ainda poderá se mover em direção a uma saída de esquerda para a crise e ir além do que o PT foi capaz de ir. O desafio da vez, ou pelo menos um deles, é a construção de um programa de unidade entre as forças populares, democráticas e socialistas que esteja disposta a enfrentar tanto as saídas golpistas e reacionárias quanto as chantagens governistas e os achaques realizados em nome da boa gestão para o mercado. Dessa forma, mesmo despido de sectarismos, ainda é difícil acreditar na participação sincera dos setores do governismo acrítico e do próprio PT na construção de um projeto à esquerda do seu governo atual.

Por outro lado, o temor está no descolamento da extrema-direita dos setores moderados que compõem a direita eleitoral. A direita radical, que carrega consigo tudo que há de pior dentro e fora do Congresso, e quem mais vai no seu arrasto fascistizante colocam em risco não só um governo ou o tal jogo democrático, mas a capacidade de vivermos em sociedade e com respeito à vida, à diversidade e à diferença. Sem o filtro civilizatório que o regime democrático impõe aos extremismos, toda a sociedade corre riscos enormes, entretanto é preciso que se diga que o combate à onda fascista – nas eleições e nas ruas – não se dá só com palavras ou empunhando bandeiras, é preciso a construção política e econômica de uma alternativa de esquerda.

Contra a ascenção fascista no Brasil, devemos unir forças não só na defensiva, mas também no sentido de criar mudanças reais e efetivas ao que está posto! E, como dizia Pulpul, Joxemi e companhia na música que encerrou o Ruído do dia 19 de março: iA la mierda, reaccionarios! 

 

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Alcir Martins – optou pelo voto cínico crítico em Dilma no pleito de outubro passado e hoje oscila entre “Arrependimento” e “EU JÁ SABIA!”.

 

Quem marchou dia 15?, pelo viés do colunista Alcir Martins*

 

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