Quilombo, um outro nome para resistência

 

Crédito das imagens: Pedro Krum.

A primeira vez em que pisei no chão de um quilombo eu era muito ignorante para saber onde estava pisando. Deve ter acontecido quando eu tinha pouco menos ou mais de dez anos, num passeio em que meu avô me levou para rever as fundações da antiga casa onde viveu no campo, à sombra dos eucaliptos. Fomos na velha fubica do pai, um decavê fabricado no início dos 60 e que mais parecia um cascudo tastaveando na estrada poeirenta. Que eu me lembre a viagem durou horas; mas esta impressão eu atribuo ao costume da memória de falsear as coisas. Entre o centro de Cachoeira do Sul, lugar onde minha família ainda vive, e o distrito da Cordilheira, no sul do município, não creio que um carro demoraria mais de uma hora. Mesmo levando em conta o temperamento instável do decavê.

Quando voltávamos pela mesma estrada, comendo a mesma poeira que a janela enguiçada do carro não podia evitar, meu avô apontou para uma tapera e disse um nome que, talvez absorto pela visão daquela aldeia improvável, não guardei. Meu pai parou o carro, o vô apeou e bateu palmas. Sem demora um senhor que aparentava a mesma idade dele despontou na porta da casa. Forçou a vista primeiro, depois sorriu e veio andando na direção do decavê. Logo apareceu mais gente atrás do velho: primeiro uma senhora, em seguida umas moças e moços, enfim as crianças. A primeira coisa que notei foi que eram todos pretos; quando baixei os olhos, vi também que todos traziam os pés descalços. Permaneceram ao fundo, enquanto os dois velhos se aproximavam para a prosa. Durante a breve conversa que travaram, de caráter memorioso, falaram em causos de gente que já havia morrido, das lidas no campo e de um ou outro episódio sobrenatural que ouvi meu avô evocar ao longo dos anos.

Apesar da risada farta do velho senhor negro, minha imaturidade não me impediu de perceber que entre as duas pobrezas, a do meu avô branco e a daquele preto velho, havia diferenças. Diferenças que não estavam só na cor da pele; estavam muito mais na ausência de calçados e na casa quase em ruínas que o outro compartilhava com sua geração. Eu que sempre ouvi minha família contar que abandonou o campo para fugir da pobreza, não sabia que a fuga não era uma alternativa para tantos outros.

Pouco tempo depois, meu avô já não estava vivo para ouvir minhas indagações sobre a palavra nova que aprendi na escola. Tampouco acredito que ele saberia associá-la ao velho conhecido que deixou pra trás quando rompeu os laços com a estância onde trabalhou metade da vida. Apontando para a ilustração que representava um homem negro sendo açoitado a golpes de chicote por um homem branco, minha professora de História, não por acaso branca, soletrou ligeiramente a palavra quilombo para falar na rebelião dos negros. Para falar que Zumbi viveu num quilombo, o mais famoso, o que lhe rendeu a glória exclusiva de figurar nos livros didáticos. Mas os livros mal falavam do passado dessa gente; e nada falavam do presente dos que sobreviveram ao açoite. Assim que segui sendo um ignorante do significado de quilombo, para mim então um vocábulo extravagante que precisava ser guardado em caso de constar na sabatina. E viramos a página para decorar as contribuições africanas para a cultura brasileira: o samba, a capoeira, um ou outro prato da culinária baiana. Acabava de súbito a participação do negro na História do Brasil, e partíamos para o estudo dos grandes vultos da guerra e do progresso.

Foi só depois do fim da adolescência que veio a revelação tardia. Estava na faculdade, cursando justamente a História que uns anos antes me deixara ignorante sobre quilombos, quando um colega, não por acaso negro, comentou em aula que no estado do Rio Grande do Sul ainda havia muitos quilombos. De pronto, a figura de Zumbi, as costas sangrentas do escravo castigado e uma vaga impressão de familiaridade com aquela informação me tomaram de assalto. Quis saber mais sobre aquilo: os quilombos não tinham desaparecido afinal, submetidos pelas sucessivas expedições dos mercenários da Coroa? Não, não tinham. Quilombo é palavra-presente, um outro nome para resistência, me contou o colega. As comunidades que sobreviveram à escravidão, à negligência e à criminalização estão lutando agora pelo reconhecimento do seu passado em comum, do seu terrítório, da sua cultura. Lutando para que nos livros didáticos o capítulo sobre a presença negra no Brasil não seja um mero apêndice exótico; para que a História reconheça a contribuição negra na formação do Brasil em cada parágrafo de cada capítulo.

Ano passado, do modo mais inusitado, pude pisar no chão de vários quilombos – desta vez sabendo muito bem onde pisava -, todos cravados no extremo sul e na fronteira oeste do Rio Grande do Sul. Desta vez, não foi por acidente que me deparei com as comunidades quilombolas. Por excêntrico que possa parecer, foi a convite de um palhaço e seu circo: foi como convidado do Teatro VagaMundo que pude visitar as casas, conversar com as pessoas, ouvir as histórias antigas contadas pelos quilombolas mais velhos aos mais novos; e também a História sendo reinventada pelos mais novos, que por sua vez a contam para os pais e avós.

Fomos ao Passo do Lourenço, ao Rincão Faxina, ao Ibicuí da Armada, ao Torrão, ao Rincão Quilombo, à Vila Progresso, ao Rincão das Almas, ao Rincão do Couro. Em todos estes lugares, vi homens e mulheres que sabem de onde vem e por que estão ali – e principalmente sabem por que querem continuar vivendo onde estão. Sabem dos seus direitos, mesmo tendo crescido ouvindo que não tinham direito nenhum.

Nos quilombos ouvi sobre as benzedeiras que, num passado recente, amenizavam com seu conhecimento das ervas curativas a ausência de postos de saúde e atendimento médico; sobre o sacrifício dos soldados negros na Revolução Farroupilha, ignorados nas fábulas de exaltação narradas pela mitologia gauchesca; sobre as receitas improvisadas com farinha que garantiram a sobrevivência em tempos de carestia; e sobre as práticas mais abjetas de que um homem pode se valer para tomar a terra de outro, sob pretexto de que o branco pode tudo, o negro não pode nada. Para os negros, só os frutos caídos do pé ao acaso; para os brancos, a propriedade das árvores, como relembrou com crueza um senhor quilombola.

Vi as cabeças erguidas mesmo onde os pés ainda estavam descalços; e vi as mulheres negras se organizando, erguendo a voz, dizendo um rotundo não às práticas de silenciamento que querem eternizar senzalas e quartos de empregada. São professoras, líderes comunitárias, estudantes. São empregadas domésticas também, mas estão conscientes de onde termina o emprego e começa a servidão. As mais velhas falavam abertamente sobre as circunstâncias mais ingratas em que se pode viver numa sociedade racista e conservadora: ser mulher, negra e pobre. E ainda assim arranjar um jeito de ensinar os filhos e filhas que ninguém é menos que ninguém.

Demorei para entender, mesmo depois de tudo que vi e ouvi, que o processo de reconhecimento territorial, inegavelmente legítimo e necessário, chega com atraso irrecuperável para gerações e gerações. Demorei para lembrar que eu mesmo vi quando menino um quilombo, sem nome nem perspectiva de reconhecimento ou amparo, povoado por gente ainda mais pobre que os pobres do campo, cuja miséria foi determinada pela ideia dominante do que significava ser branco e ser negro. Nunca li na escola livro algum que dissesse que os bandeirantes fracassaram, que Zumbi era muitos e muitas, que Palmares é irredutível. Mas agora eu sei, porque os quilombolas me ensinaram, que a História do povo negro no Brasil  ainda está recém começando a ser reescrita.


Quilombo, um outro nome para resistência, pelo viés de Atílio Alencar.

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