A PADARIA

Foi então que os quatro padeiros, os cinco atendentes e os dois funcionários da limpeza receberam um cartão que os convidava a obrigatoriamente estar nas dependências da Padaria Oliveira para que discutissem os rumos da empresa. Manoel Oliveira, fundador e antigo dono, criara a padaria no final da década de 1960. Ele costumava dizer: “fazemos pão – e só”!

Seu filho mais novo, Joaquim, mudou-se de volta de São Paulo, onde malsucedeu-se como executivo de multinacional. Formado em Administração, com MBA em Gestão de Pessoas, Joaquim era a exceção perfeita à regra de que cada um é único.

Seu Manoel morrera havia três meses e a Padaria Oliveira tivera as portas fechadas para a abertura da Delicatessen Romana. Nem Seu Manoel nem Joaquim nem ninguém da padaria jamais havia estado em Roma para que chamassem o estabelecimento assim, mas nada que a internet e uma extensa pesquisa de mercado com o público santa-mariense para saber que a parcela mais rica da população regojiza cada vez que vê algo ligado à Europa – por mais falsa e interesseira que for a empreitada.

O domingo seria de discussão, dizia o cartão. Até então tinha sido de audiência. Os padeiros, os atendentes e os funcionários da empresa ouviram as mudanças com atenção.

 – A partir de agora, não somos só uma padaria, somos um centro de referência em qualidade e atendimento ao público de Santa Maria. Somos a Delicatessen Romana. Não fazemos só pão, confeitamos sonhos e desejos. – bradava Joaquim com a genuidade de uma joaninha que se passa por lagartixa.

– O que foi que ele disse? – perguntou Aldemar a Tonho.

– Não sei. Não entendi. Mas deve ter sido coisa importante. – respondeu este.

Joaquim não queria dizer nada – tampouco disse qualquer coisa. Só regurjitou jargões corporativos ao léu na esperança de colher uma imagem de grande empresa entre os funcionários…aliás:

 – Vocês são os colaboradores disto tudo, que não é uma empresa, é um grupo, uma família. Sem vocês, não há Padaria Oliv… – percebeu o erro – Delicatessen Romana. – cacarejou Joaquim novamente como se tentasse ele mesmo acreditar no que dizia.

Ninguém era mais funcionário – eram colaboradores. Aquilo não era mais uma empresa – era uma grupo, uma família. ‘Quanta bobagem prum domingo só’, pensavam os padeiros, os atendentes e os funcionários da limpeza. Joaquim explicou que aquela era uma nova fase para o ‘grupo’, que ele havia detectado essa falha no mercado da cidade e que tinha certeza que, se todos trabalhassem duro e em grupo, a Delicatessen Romana seria, um dia, mais importante que a Confeitaria Copacabana.

Entre as mudanças que Joaquim proporia (lê-se ‘aplicaria’ sem pouco se importar com a opinião alheia) estavam: todos usariam uniformes, especialmente os atendentes, que lidam diretamente com o público; os funcionários da limpeza só começariam seus turnos depois que a padaria fechasse para não atrapalhar os clientes; os padeiros passariam a usar toucas, luvas, aventais e máscaras. Tudo pela higiene! Haveria também um novo sistema de controle do estoque. Cada padeiro seria responsável por um turno e todos os produtos feitos durante esse tempo estariam sob sua responsabilidade. No final do mês, o contador, que nunca conheceu nenhum dos funcionários de nenhuma empresa para qual trabalhava, mas se gabava do seu interesse em Recursos Humanos, calcularia qual padeiro vendeu mais pães e qual teve a menor taxa de rejeição – isto é, em qual deles sobraram menos pães, pois cada padeiro decidiria, num exercício de pró-atividade e iniciativa, quantas fornadas assar.

Joaquim entregou um bloco com mais ou menos cinco folhas para cada colaborador com todas as explicações sobre o novo SPR-CORP (Sistema de Participação nos Recursos Corporativos). Um professor duma dessas universidades que brotam no asfalto com cursos de Direito, Administração e Psicologia o havia desenvolvido junto com os alunos da disciplina de Empreendedorismo – ‘uma maravilha, uma ideia brilhante’, disse Joaquim, que pagou alguns milhares de reais pela ‘ideia brilhante’ que significa responsabilizar o funcionário pela interferência deliberada que o dono tem na parcela dos lucros que caberá ao funcionário de acordo com uma planilha infindável de condições bizarras e predatórias. Em outras palavras, o SPR-CORP é mais do mesmo – tu trabalhas para mim, eu fico com parte do teu dinheiro, mas faço de conta que me importo contigo e digo que tu terás direito a uma parcela do teu próprio trabalho de volta se tu fores uma boa ovelhinha e me ajudares a ganhar mais dinheiro ainda. A situação só piorava se considerássemos que Joaquim não sabe nem começar a massa do pão, nunca aprendeu. É um cavalo com os clientes e um porco com limpeza e organização. Na verdade, nem administrar ele sabe muito bem – mas desde que assinou a revista Management…ah, ele tem lido sobre cada ideia inovadora no mundo da mesma balela.

 – Isso não vai acabar nunca? Hoje é domingo. – disse Rafael, um dos atendentes.

– …e é assim que nós implantaremos um sistema mais justo de divisão dos recursos entre todos os colaboradores que se empenharem com o grupo e souberem trabalhar em parceria para um melhor desenvolvimento dos valores corporativos. – azurrou Joaquim pela última vez naquele domingo.

– Ô, Seu Joaquim – começou Aldemar -, vamos ter passagem de ônibus?

– Bom, Seu Aldemar, dependendo do rendimento do grupo, nós poderemos discutir a inclusão das passagens como benefícios àqueles que, individualmente, destacaram-se por iniciativa, foco no resultado e no cliente, excelência em atendimento, produção sustentável e inovação. – gruniu Joaquim.

– O que foi que ele disse? – perguntou Aldemar a Tonho.

– Que ele não se importa com como tu vais chegar em casa. – respondeu Tonho.

– Vamos, pessoal, agora vamos todos tirar uma foto da nossa família! – findou Joaquim.

 

A PADARIA, pelo viés de Gianlluca Simi

gianllucasimi@revistaovies.com

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