Folhas do vento norte (II). Depois do sonho

Foto: Pedro Pellegrini

Não foi a primeira vez que acordou durante aquela madrugada, mas sim a interrupção definitiva do sonho. Antes, uma moto de motor barulhento demorou para deixar a esquina do prédio onde morava, ao lado da Ponte Velha. Mas ao fim acelerou e saiu, e assim ela pôde voltar a dormir. Mais tarde (não sabe o quanto), foi a vez de despertar com passos pesados que subiam as escadarias do edifício, talvez no segundo andar. Alguém que voltava tarde demais de uma festa e deixava para trás os filtros do silêncio e da vizinhança. Reacomodou os travesseiros e os lençóis – era verão, fazia um leve calor na rua – e outra vez retomou o sono. Desistiu quase uma hora depois, quando um grupo de pessoas se sentou no meio-fio que fica vinte metros abaixo da sua janela e iniciou uma conversa em voz alta, alegre, como quem acaba a noite e percebe que há o que se festejar. Foi quando resignou-se a acordar e passou a escutar os diálogos que se confundiam com os apitos que o vento trazia de longe.
Com um lamento, sentou-se na cama, ainda emaranhada nas cobertas. A combinação de ressaca e sono fazia com que o despertar, abrupto e levado a cabo ainda antes do amanhecer, fosse confuso, de poucas percepções dentro do quarto. Logo os primeiros rasgos de luz entrariam pela janela, os últimos habitantes da noite (provavelmente aqueles que ocupavam o meio-fio) iriam embora atrás de camas próprias e alheias e os sons então se modificariam. Seriam agora os ruídos de uma cidade que acorda num sábado preguiçoso, e não a que resiste em dormir, e esperneia como pode para persistir na madrugada que cai, numa tentativa que leva inevitavelmente ao fracasso e ao sol. E foi quando os insones deixaram enfim as cercanias do prédio que ela ouviu com maior nitidez os apitos que soavam ao longe: algum trem adentrava a cidade, vazio com os seus vagões, isto é, apenas com o maquinista e um ou dois auxiliares e a carga que transportavam, e não com os tantos passageiros que estariam ali se estivéssemos em outro tempo, mais remoto.
O apito saía dos entornos da Estação, ganhava força no ar ao atravessar os descampados que ainda têm lugar na região, perdia parte do ímpeto ao se lançar contra os prédios da Avenida e recobrava a força quando descia na direção do Parque. Eram sete da manhã quando voltou a escutá-lo e então levantou as persianas da janela, cansada de rolar no colchão que não a deixaria mais adormecer naquele dia. A cabeça, ainda tomada pelas nuvens do álcool, se mostrava um pouco mais lúcida – e ao sentir o primeiro copo d’água descer pelo corpo pensou que estava em jejum há cinquenta horas, pois pode perceber o trajeto inteiro dos goles dentro de si. A poucos quilômetros dali, o armazém de paredes laranjas abria as portas na mesma hora em que ela jogava água no rosto e se preparava para que o dia começasse de alguma maneira. O armazém abre tão cedo porque o dono, refém de outras épocas, ainda espera que os clientes tenham pressa para comprar os jornais que lhe contariam, por linhas tortas, o que aconteceu ontem em Porto Alegre, em Roma, quem sabe até em Gaza.
 

***

 

Foto: Pedro Pellegrini

Deixou a casa no início da tarde, depois de almoçar o que encontrou no caminho que vai da geladeira ao armário. Logo estava no Parque – área iluminada pelo sol grande daquela hora, ainda vazio, à espera dos caminhantes e das bicicletas, das bolas de futebol e dos cigarros de maconha. Dois funcionários da limpeza resgatavam da grama algumas latas de cerveja e uma garrafa de plástico que, doze horas antes, havia abrigado dois litros de vinho colonial. Percebeu que o sol refletido no rosto revigorava mais do que qualquer remédio para a ressaca. Perto da escadaria que leva ao Hotel, um homem lhe entregou uma folhinha e pediu um punhado de moedas. “Pode ler, moça, é poesia e eu que fiz”. Mais adiante, quase nas quadras de futebol, a sombra dos abacateiros aliviou o calor e a visão. Dali se ergue um alto barranco, verde e embarrado mesmo quando não chove, que termina numa outra avenida. No seu topo, é protegido por uma consistente fileira de plátanos. Trata-se de uma cena que a acompanha através dos anos e que depende sempre do ângulo e da estação: no outono e vista de cima do barranco, a paisagem mostra troncos que mal lembram os plátanos que tinham sido, dilapidados pelo frio e sem as suas folhas; na primavera, visto de baixo, o cenário formado por árvores exuberantes quase que esconde a cidade que cresce ao fundo (e só há espaço para aquelas folhas, maiores do que a palma das suas mãos).
Parada em frente à elevação, contemplou as árvores por vários segundos. E tão logo abdicou de mirar os plátanos, viu que poucos metros à frente andavam duas das presenças da noite anterior. Como ela, pareciam sem rumo. A diferença é que buscaram companhia, e não a solidão, e falavam tão alto e sem constrangimento que escutava uma e outra palavra de onde estava. Preferiu esperar um pouco mais, deixar que se fossem: haviam participado da madrugada e já parecia muito para os personagens em questão. O estranho é que, horas atrás, eles mais pareciam dois seres irreais na neblina, gente que ao atravessar o Túnel a pé, por exemplo, sairia do campo de visão e também do pensamento, para desaparecer por uns tempos e sair sem rastros ou memórias recentes. Entre as árvores, os cachorros e a roda de violão, no entanto, haviam recobrado realidade e por isso a incomodavam tanto. Esperou que tomassem uma trilha distinta e voltou a andar no seu ritmo.
Deixou para trás uma pracinha com brinquedos, um chalé abandonado, dois ou três pequenos grupos de estudantes que tomavam mate, atalhos construídos com britas, um prédio alto que contrastava de imediato com a planura e só então viu o ambiente se transformar, perder traços de centro e ganhar forma de arrabalde. A vegetação, já alta, crescia sem qualquer cuidado e cães soltos perseguiam com grande alarido um Fiat 147 branco que cruzava uma ruela improvisada no espaço baldio. Quero-queros sobrevoavam a área e um dos pássaros pousou em cima de uma placa desgastada pelo tempo e na qual se podia ler: MANUTENÇÃO E CARGA DOS VAGÕES À DIREITA. Quase sem perceber, havia caminhado até a Estação Ferroviária. Viu ao seu lado o prédio central do lugar, como que paralisado pela luz da tarde de sábado, e aparentemente para sempre acorrentado a um tempo morto. Encontrou um degrau e sentou-se no largo que se abre aos fundos da plataforma.
 

***

Foto: Pedro Pellegrini

Os barulhos ali eram todos difusos: animais correndo no descampado em frente, poucos funcionários nos galpões de trabalho, andarilhos que passavam com rostos curiosos e seguiam sempre em frente; naquela hora, nenhum trem partia ou chegava na cidade. Ela aproveitou o quase-silêncio para olhar em volta e para dentro, e não estranhou que chegassem umas quantas vozes repetidas, de situações que havia lido e histórias que um dia escutou. “Por Santa Maria passavam trens de todos os lugares, trens que atravessavam noites e países, a estação aqui estava sempre cheia”. “E quando alguém chegava de fora, mesmo que fosse de uma cidade relativamente próxima, como Porto Alegre ou Uruguaiana, sempre se depararia com carros na estação à espera dos forasteiros, carros enviados pelos hotéis da Avenida ou por alguma firma”. “Não era preciso viajar para vir até aqui. Tinha quem viesse pelos jornais de fora, pelos restaurantes que funcionavam mesmo durante as madrugadas, pelo café passado que não se encontrava em nenhum outro canto desta cidade… ou para se despedir, nem que fosse de gente estranha, de alguém que nunca tinha visto antes, mas que pôde conhecer ao menos os olhos”.
E então imaginou-se sentada não no degrau disfarçado de mureta, mas num dos bares da estação, quem sabe o que existiria à esquerda de onde estava sentada agora. Via-se num ponto impreciso da noite, com um copo de café em cima da mesa. O salão estaria esvaziado, com uns poucos resistentes sentados e à espera de quem chega de longe. Duas lâmpadas fracas iluminariam apenas o centro do ambiente. O relógio caminharia devagar e quase nada interromperia o marasmo daquele refúgio até que o trem fosse percebido pela primeira vez. Ainda longe, costeando os morros da entrada da cidade, perto das quintas e das modestas plantações. E, rangendo nos trilhos e lançando o apito no ar, cada vez mais próximo, faria com que as criaturas do bar despertassem num mesmo rompante e rumassem para a plataforma. A plataforma que ainda existe, e que agora serve de abrigo para os moradores de rua escaparem da chuva e do vento frio.
Enquanto pensava, o escuro começou a recuperar pedaços do céu com pouca paciência. Ela se levanta e começa a caminhar de volta para casa. Não foi vista por ninguém, nem ao chegar nem ao abandonar o lugar. Poderia até mesmo correr pelo largo, bater nas janelas rachadas ou gritar na plataforma como uma louca, mas ninguém a veria. Se ainda havia alguém no local, estava num ponto distante ou escondido pelos cantos. Não muito longe, em cima de uma ponte que se ergue sobre vagões abandonados, alguém (uma sombra, não mais que uma silhueta) observa os trilhos que se bifurcam ao longe e espera por algum apito que anuncie o fim da tarde ou a chegada de uma serpente cansada num bairro quase esquecido da cidade.
 
Quinzenalmente, cenas e circunstâncias de Santa Maria – cidade que, apesar do título, também sofre com outros ventos, mais gelados – devem ser narradas neste espaço. 
 
Folhas do vento norte. (II) Depois do sonho, pelo viés de Iuri Müller

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