Folhas do vento norte. (I) Ônibus noturno

A Avenida está quase vazia. É sábado, dia de aulas esparsas e pouca gente na Universidade e nos arredores. Passou a tarde em meio a reuniões estranhas, mas agora só quer saber de voltar para casa. O companheiro a acompanha por um trecho de concreto e algum tempo, só que também ele precisa retornar, ainda que seja para a direção oposta. E então se fez noite, e onde estava seria tomada pelo breu. Os postes de rua não alcançavam aquele ponto de espera, se esgotavam com a sua luz fraca ao longe. Vai até a pista, mira os dois caminhos, as faixas: nem sinal de qualquer ônibus nesta direção.

Foto: Pedro Pellegrini

O frio aperta, a noite aumenta. Decide caminhar até a próxima parada, mais longe do campus, mas na qual enxerga alguma presença. Três homens esperam ao lado de um casal que se abraça. Um deles parece inquieto, cheio de pressa para voltar ao Centro de uma vez. Alguma festa para começar dentro de poucas horas, quem sabe. Ele sugere, barulhento, que adentrem o bairro e encontrem algum táxi. Em três ou quatro, disse, a corrida vai sair por pouco dinheiro. Talvez o aspecto e a ânsia dos gestos tenham assustado os demais. Ninguém aceitou a proposta, e tampouco deram espaço para mais conversa. Logo o homem ansioso estava caminhando pela Avenida, com o passo contrariado e se escondendo do frio entre os casacos.
A espera, é certo, gera as suas desistências: o casal, depois de consultar o relógio repetidamente, cansa de esperar o ônibus amarelo que em algum momento vai irromper no escuro e segue em direção à Casa do Estudante. Agora são poucos os que permanecem ali.
 

***

 
Ela caminha evitando as poças que surgiram com a chuva daquela manhã. Ao seu lado, percebeu quase sem querer alguém parecido com quem era há quatro ou cinco anos. O cenário, afinal, também era o mesmo. Na medida em que deixavam a Avenida quase deserta, viam aparecer, mal iluminadas, as pequenas pontes que vencem o córrego e o barranco, e ligam aquela via às ruelas do bairro. Nas manhãs dos dias de semana, por ali passam estudantes com mochilas nas costas, com sono no rosto e alguma ideia imprecisa de como será o dia. Essas pontezinhas deságuam por vezes em pensões – casas de dois pisos e vários quartos, que abrigam gente de tão distintos lados debaixo do mesmo teto.

Foto: Pedro Pellegrini

Não lamenta mais a demora, ao menos encontrou companhia. Passam por uma, duas quadras, e se colocam em frente a mais uma parada: agora estão no caminho de outras linhas, em algum instante o ônibus há de aparecer. Não é tarde, passa pouco das nove. Nos apartamentos do Centro, a função recém deve estar por começar. Em pé num terraço da Rua Dr. Bozano, um rapaz toma vinho e, sozinho, mira o céu: mais um pouco e pensa que a chuva deve voltar. Pouco vê da cidade ao seu redor, os prédios de cor cinza se perdem todos no crepúsculo.
Longe dali, os que caminham trocam perguntas, mas não saem do superficial. Ela descobre que o que anda ao seu lado na noite sem lua está sozinho, a família ficou no interior (aqui também estão no interior, mas falamos assim sobre os que vêm do fundo), os amigos ainda estão por vir. Estava, pouco antes, com dois colegas no campus, mas não vive por lá: divide um apartamento, “antigo, espaçoso, mas com o piso a ponto de afundar”, na Rua General Neto. Nas manhãs livres, caminha a esmo, às vezes por horas, e sempre acaba o percurso numa das galerias do Centro, aquelas onde os velhos tomam café sem se sentar.

***

 
À noite, os trajetos repetidos de sempre parecem outros. É como se os lugares fossem diferentes, e esta uma nova cidade. Agora, onde havia trânsito e espera há um ônibus que corre e passa pelos terrenos baldios. Eles estavam sentados nos últimos lugares, em que os bancos são mais altos, e a janela escancarava um vento frio. Vento de limpar o rosto e sacudir um pouco a vida. Viam poucas mesas na calçada, um supermercado às escuras, televisões ligadas em cômodos enegrecidos, gente que caminhava por ruas secundárias que, ao longe, se continuassem uma caminhada improvável, encontrariam o pé dos morros.
O ônibus mal precisava frear, seguia sem paradas até se aproximar do Centro. Separados por poucos bancos, estavam homens mais velhos que retornavam de uma demorada jornada de trabalho, mulheres com crianças de colo, gente à espera de um trago e três ou quatro pessoas que pouco sabiam sobre os motivos que as levaram a esperar tanto tempo por aquele ônibus, a pagar uma passagem cara e fazer este trajeto de vinte e poucos minutos até a Rua Riachuelo. Sequer sabiam para onde dar o primeiro passo depois que descessem dali, mas a questão é que tinha se tornado impossível continuar onde estavam.
Já na rua, o vento parece ganhar força com a descida do asfalto e espalha um frio intenso. Dentro do ônibus estava um pouco melhor. Ela avisa que a sua casa fica a alguns minutos dali, pouco depois de passar a Rio Branco. Mas que pode caminhar por mais tempo, não tem compromisso algum e a semana, afinal, já havia acabado. Ele comenta que há tempos vê as semanas passarem sem maiores acontecimentos, e que caminhar pela cidade, apesar do vento, pode ser bom para a cabeça. ‘Eu preciso estar na rua para que algo me aconteça’, imagino que tenha tido vontade de dizer.
 
* Todos os meses, cenas e circunstâncias de Santa Maria – cidade que, apesar do título, também sofre com outros ventos, mais gelados – devem ser narradas neste espaço.
Folhas do vento norte. (I) Ônibus noturno, pelo viés de Iuri Müller

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