São Thomé das Letras em dois atos: (I) O Horizonte do Monte Imantado

Foto: Gregório Mascarenhas

É noite escura quando Julio os ouve ao longe. Os Recém-Chegados contam a sua história aos De Sempre. Estes, como sempre fazem, ouvem com atenção e contam também a sua própria história. Advertem:
– Vocês não vão embora amanhã.
Afirmam com a segurança de quem já o repetiu cem vezes. Aos Recém-Chegados, parece brincadeira. São três, bem como os De Sempre. Os primeiros, guris do sul, carregam seus instrumentos e dizem não saber como chegaram à cidade. Os outros há algum tempo bebem, à companhia das duas capixabas donas do bar, e tampouco compreendem o que os levou até aí. Aos rapazes, parecem tipos raros. Antônio é moço jovem de Uruguaiana, toma água e deseja alegria aos Recém-Chegados, e a qualquer novo conhecido. De roupas limpas e bem passadas, está embriagado de São Thomé das Letras. É bêbado de primeira viagem – e esses são os mais propensos a jamais sanarem. Reza a lenda: quem não deixa a cidade em uma semana nunca a deixará. Pretende tomar o rumo amanhã.  Só Para Loucos é rapaz mais vivido. Catarina de Joaçaba, já viajou pela América do Sul. Diz ter morado em Salta (que chama Sarta), se aventurado pelas cordilheiras e perdido um amigo que resolvera se arriscar sozinho pelas trilhas das montanhas. Tem cabelos lisos e compridos, bigode e barbicha, usa jaqueta, calças jeans manchadas e botas; é fã de Pink Floyd. Algumas vezes, ressalta os olhos claros com delineador negro. Já está preso há dois meses na cidade. O último é Atilio. Sempre calmo e sereno, surge tão de repente quanto desaparece. Veste o que acha necessário e porque é necessário vestir-se. A pele é escura, os olhos são celestes e o sotaque abre as vogais. Tem cabelos espantados e grisalhos, dois dreads longos às costas e barba. Quando está no bar, fuma, não larga o copo da cerveja que não altera seu juízo, e, entre as coxas cruzadas, dá colo à Chiqui, a cadelinha que o segue aonde for. Tem jeito de andino, mas diz ser italiano. Faz três anos que São Thomé das Letras não o deixa sair.
Os guris pedem cachaça e começam a tocar. Cantam, revezam, atraem gente e tornam-se banda de folclore alheio. Entre os curiosos, dois homens se aproximam cautelosos. Dizem reconhecer nos músicos o espírito esquecido do lugar.
– Vamos ajudar vocês. Vocês precisam alugar uma casa, ou vão gastar muito. Eu posso apresentar uma moça que vai pra roça no final de semana. Não garanto nada, mas seria a melhor opção pra vocês e pra ela.
Os guris recém-chegados aceitam. Ouvem as histórias dos dois homens. Fernandão já andou de trem pelo Rio Grande. Foi de Porto Alegre a Uruguaiana. E bota longe Uruguaiana. Pede para que toquem Almôndegas porque se lembra daquele tempo. Numa das viagens, conheceu uma alemã de Frederico Westphalen, com quem passou boa parte do trajeto fumando e transando no banheiro. Foi a mulher mais linda que já viu. Durante algum tempo a visitou e a levou para trás da igreja. Não tem notícias dela há mais de trinta anos, quando quis conhecer São Thomé das Letras e nunca mais pôde sair. Passaria poucos dias na cidade, mas fez amizade com o prefeito e ficou dezesseis anos como secretário de turismo. Cansou e se tornou gerente de uma pousada.
Julio é guia de turismo e conhece cada canto de São Thomé das Letras. Está na cidade há vinte anos e diz não ter saída após uma semana completa. Aliás, há uma: um túnel até Machu Picchu. É usado desde que não se registra a história, mas não se sabe de ninguém que tenha ido e voltado pelo caminho. Diz para os guris não subestimarem a cidade. São três, e três é o número divino. Antes de chegar a São Thomé das Letras, já viu o diabo. Amanhecia o dia mais frio que já sentira. Jogou com a mãe que estava tão frio que daria café ao diabo se aparecesse. Foi imediatamente reprimido. O frio aumentou. Ouviram-se, então, três palmas no pátio de casa. Foram ver de que se tratava e era ele vestido de preto. A velha logo correu a rezar. Nunca havia visto névoa tão densa. Por detrás do portão, só podia identificar o senhor todo de preto, com um chapéu e olhos inimaginavelmente vermelhos.
– Eu gostaria de uma xícara de café.
Prontamente, foi à cozinha.
– O que você vai fazer? – perguntou a mãe aterrorizada.
– Vou servir café ao diabo.
– Você tá louco?
– Eu prometi, tenho que cumprir.
Quando voltou, o diabo ainda o esperava. Foi até o portão e entregou-lhe a xícara.
– O senhor não está com fome? Quer entrar e comer algo?
– Não, obrigado. Era só de uma xícara de café que eu precisava. Agora tenho de seguir meu rumo. – Devolveu a xícara, deu meia volta e desapareceu na neblina.
Em São Thomé, no entanto, não ousa aparecer. Já viu extraterrestres, duendes, gente que conversava com animais, mas o diabo não bota os pés na cidade. É um dos sete pontos sagrados da Terra.
Acordam cedo e alugam a casa. Querem ficar para o festival do final de semana. Já é tradicional, com músicos de todos os lados. Segunda, antes de completar a semana, escapariam. O ponto de encontro é a esquina do bar das meninas, onde os três De Sempre sempre estão. Antônio falhou na tentativa de fuga. Os guris movimentam aquele canto. As pessoas querem vê-los e ouvi-los. Entre uma canção e outra, Julio conta as suas histórias.
A maldição de São Thomé das Letras na verdade foi uma bendição. No século XVIII, João Antão foi um escravo muito maltratado por seus senhores. Apaixonou-se pela filha do patrão, o Capitão Junqueira, e fugiu para não ser morto. Refugiou-se numa gruta, onde sobreviveu como pôde durante uma semana. No último dia, acordou com uma luz muito forte, de onde surgiu um velho de cabelos e barba grisalhos, todo de branco, que quis ouvir a história do escravo. Assim que João Antão a contou, recebeu uma carta. O velho pediu ao escravo que a levasse até seu senhor, pois receberia a liberdade. Ao ler a carta, Capitão Junqueira concedeu imediatamente a alforria ao escravo. Impressionou-se com a caligrafia e qualidade do papel e organizou uma visita à gruta, na esperança de encontrar o velho. Ao chegar, entretanto, foi encontrada apenas uma estátua de São Thomé. A gruta fica, hoje, no centro da cidade. Em troca da liberdade do escravo que passou uma semana lá, quem permanecer por mais de sete dias em São Thomé das Letras está fadado a passar o resto da vida no lugar.
Foto: Gregório Mascarenhas

Enquanto Julio conta, alguns dos curiosos cochicham e apontam para os três jovens. Há gente de todos os tipos, desde prostitutas até malucos de BR. Todos, entretanto, parecem conhecer os guris. Puxam conversa, filmam, tiram fotos, pedem músicas.
Há anos os moradores deixaram de fazer música pelas esquinas da cidade nos dias comuns. Certa vez, alguns viajantes chegaram e ficaram mais do que deviam. Em uma esquina como esta, eles tocavam músicas de todos os lados, aprendidas durante o tempo em que passaram viajando antes de serem condenados à estada eterna em São Thomé das Letras. Só os mais velhos lembram. Mas ninguém sabe o que aconteceu com eles. Alguns dizem que conseguiram fugir pelo túnel. Outros acreditam que nunca existiram, que eram alucinação dos velhos aborrecidos com a própria pena. E, ainda, tem a lenda de que, apavorados com a possibilidade de nunca mais saírem da cidade, tentaram furar o campo magnético e, não só ficaram presos, como mudaram a lógica do tempo.
Sem perspectivas na montanha isolada, muitos se viciam em ilusões. Em São Thomé das Letras, a liberdade é sólida e vendida em pedaços. Como única opção, alguns compram a passagem momentânea, com o dinheiro juntando aqui e ali, partindo pedra após pedra na prisão perpétua. Um deles, já débil, pergunta surpreso:
– São vocês? São vocês os músicos viajantes?
Os guris não sabem se o rapaz se refere aos viajantes da lenda ou a eles mesmos. De qualquer maneira, respondem:
– Sim, somos nós.
– Um prazer encontrar vocês, ouvi muito a sua história. Eu poderia fazer um pedido, um pedido só? Vocês tocam algo do Bob Marley, qualquer uma, por favor, só uma.
Após a insistência do rapaz, os guris atendem ao pedido. Todos no bar ouvem atentos as canções de liberdade dos cantantes. Enquanto tocam, não há nenhum murmúrio.  Aos poucos, as pessoas deixam o bar. Os últimos a sair são os três De Sempre e os guris.
Como se tudo fosse premeditado, é quarta-feira e Julio os apresenta a Rodrigo Pessoa – um músico de fim trágico. Andava pelo Brasil com um triciclo e o violão nas costas. Realizou a proeza de percorrer milhares de quilômetros desde o Chuí até Salvador, quando decidiu cruzar por São Thomé das Letras. Tinha tudo para passar dois ou três dias e continuar seu trajeto, mas o triciclo quebrou e ele não tinha dinheiro para o conserto. Há oito meses, padece em uma garagem, a cela que lhe foi reservada. O veículo já não tem serventia. Está ciente que jamais sairá daí, mas não culpa a cidade, senão o destino.
Ainda conserva, contudo, a fé na música. É a sua maneira de seguir viagem. Há alguns dias, recebeu um convite irrecusável, mas a banda o abandonou. Com medo de ter o mesmo fim de Pessoa, decidiram nem sequer pisar na cidade imantada. Mas Julio sabia. Toda a cidade sabia, menos os três guris. Desde que chegaram a São Thomé das Letras, não dão um passo fora da própria sina, de tal maneira que, quando Rodrigo Pessoa os convida, não há outra resposta que os três possam dar.
– Eu não quero iludir vocês. Infelizmente, não tenho nada para oferecer, não vou ganhar cachê, mas eu preciso muito que vocês me ajudem. Faz alguns dias, eu fui convidado para tocar no festival. Eu vou abrir o show do Milton Nascimento e quero que vocês sejam a minha banda.
Entram eufóricos no bar das meninas após o primeiro ensaio e contam a novidade aos De Sempre, que reiteram o que já lhes haviam dito. São Thomé está reservando algo para os três guris. Pela primeira vez, percebem que há a possibilidade de nunca mais deixarem o lugar. Brincam com o fato, mas sabem que não devem. Apesar de a apresentação ser no sábado, tantas coisas têm ocorrido para que eles fiquem na cidade que não lhes surpreenderá o surgimento de um novo empecilho antes da partida na segunda.
Fazem o último concerto exclusivo aos condenados a São Thomé das Letras. Em meio aos acordes alegres, uma loira dança e atrai alguns olhares. Vai até a mesa dos De Sempre, comenta algo com eles e sai. Logo aparece uma segunda moça dentro de uma camionete. A loira entra e chama:
– Atilio! Vem!
A cadelinha Chiqui o segue porta afora. Não retorna, mas nada há de acontecer com o italiano.
Entre as canções, um rapaz aborda os guris. É BR, um artesão peregrino que precisa de uns trocados para a noite. Já não tem artesanatos, mas fabrica um colar imaginário em poucos instantes, que é comprado por dois reais. Terminam a noite e BR os acompanha até parte do trajeto. Para em um posto de gasolina e pede dois reais de álcool, que diz ser necessário para cozinhar.
É quinta-feira e começam a aparecer os turistas. Alguns nunca mais voltarão a seus lares. É gente de todos os lados, de todas as crenças e de nenhuma. Muitos se negam a crer na magia da montanha ilhada, a desafiam e perdem a batalha. Com o tempo, acostumam-se aos delírios da rotina da cidade e acabam por crer nos duendes que vez ou outra passeiam pelos blocos de pedra fria das ruas de São Thomé das Letras. É algo que sempre ocorrerá, fruto da ignorância da mente humana, incapaz de perceber o maravilhoso por mais nítido que seja. A estes, o que nos primeiros dias era novidade vai se tornando cada vez mais banal.
Certa vez, contam os habitantes, um andarilho chegou a São Thomé das Letras e se recusava a acreditar no magnetismo da cidade.
– A estrada está aí! Como podem vocês não enxergarem isso? Se por ela eu cheguei até aqui, é por ela que eu saio quando eu bem entender.
Falava isso ao morador que fosse e esbravejava quando tentavam convencê-lo do contrário. Todas as tardinhas da primeira semana, subiu a pirâmide como qualquer forasteiro. Lá de cima, via o horizonte de serras e liberdades e lhe parecia cada vez mais inconcebível a ideia da estranha magia magnética da qual falavam os loucos daquela cidade. Durante os sete ocasos, aplaudiu o último raio de sol. No oitavo dia, não saiu de casa e assim seguiu durante meses. A última vez que o viram, estava fora de si, carregava uma pequena lanterna e tinha planos insanos de tentar a sorte no túnel para Machu Picchu.
Após o ensaio, os músicos chegam ao bar lotado de gente estranha. Encontrar uma mesa parece difícil, mas, logo que toda a gente os vê entrar com os instrumentos, cedem-se lugares. Entretanto, negam as gentilezas, ao notarem os três De Sempre ofuscados pela multidão. Ouvem sussurros vindos das outras mesas e olhares enviesados para onde estão.
– São eles!
– Será? Acho que não, deve ser gente que chegou pro festival.
– Mas ouve eles. Ouve o sotaque.
– Com licença. São vocês os três viajantes? Os três músicos do sul?
Sem entender direito como essas pessoas poderiam conhecê-los, respondem positivamente.
– Vocês podem tocar algo para ouvirmos? Pode ser qualquer coisa.
Armam uma festa naquela esquina. Tocam candombe uruguaio, carnavalito humahuaqueño, samba brasileiro e zamba argentina. Já bêbado, um dos turistas quer contratá-los. Outros pagam cervejas e os chamam para fora do ambiente. Novos visitantes chegam e logo querem conhecê-los. Conversam, riem, ouvem histórias e voltam aos instrumentos. Só deixam o bar quando já não restam forças às meninas.
Sexta-feira, primeiro dia de festival. A cidade está irreconhecível. Há pessoas por onde quer se olhe. Almoçar pelo centro da cidade é praticamente impossível aos atrasados. Por sorte, são quem são e para eles sempre há um lugar. Conhecem um andarilho argentino que se sente honrado ao ser convidado para o mate. Também carrega um charango, embora novo e completo, mas sabe que a história do instrumento já acabado dos guris é inestimável.
Na tardinha, precisam ensaiar. Pelas ruas, são parados. As pessoas querem ouvi-los. Enquanto executam quaisquer acordes no tão apreciado instrumento boliviano, são fotografados, filmados, aplaudidos. Não entendem a fama repentina, mas a cidade parece tão mágica que, a esta altura, a tentativa de compreensão é absurda.
Na praça, são convidados a unirem-se a uma roda de música. Enquanto alguns buscam cerveja, a canção é interrompida.
– Continuem, tava bonito.
– Que é isso, toquem vocês profissionais.
– Profissionais… – repetem em tom debochado, mas acabam cedendo.
De repente, surge Rodrigo Pessoa. Quase esquecem o ensaio. Despedem-se e seguem o músico ladeira acima. Da garagem, podem ver a pirâmide tomada por turistas que aplaudem o pôr do sol.
– Pobres… – lamenta Pessoa – tão cedo deslumbrados com o horizonte inalcançável.
Ajustam pela última vez o repertório e se despedem. O show é amanhã, e Pessoa pede para que não forcem a voz nesta noite.
Faz frio em São Thomé das Letras. São comuns na cidade os trajes andinos – cultura que provavelmente tenha resistido aos quilômetros subterrâneos. Os visitantes vestem seus casacos, suas tocas e seus ponchos coloridos e dirigem-se para os palcos cercados do festival. Ali dentro, só há turistas. Os moradores, prisioneiros, estão em suas casas, nos bares, nas suas lojas ou tentando desesperançosamente fugir na carona de algum viajante que oferece ajuda. Os poucos que querem ver as apresentações o fazem no alto das pedreiras calmas. É essa a alternativa dos três guris, frente aos preços abusivos dos ingressos cobrados.
Do alto, o vinho serve de resistência ao vento gelado. Na penumbra da névoa da noite, são quase invisíveis. Ficam até a movimentação nas ruas cessar. Aproveitam a breve trégua, retornam e descansam para amanhã.
É cevado o mate na tarde. Já são quase três e às cinco precisam encontrar Rodrigo Pessoa. Para almoçar saem sem os instrumentos, como desculpa para não serem parados na rua. Não entram no bar das meninas, voltam direto para casa e vão à garagem de Rodrigo. Entre as palmas do ocaso, pegam os instrumentos e descem pelas rochas da cidade. Tomam umas doses de cachaça no caminho. As meninas e os De Sempre desejam boa sorte na esquina do bar. Seguem sozinhos sem atenção aos paparicos dos turistas. Chegam ao palco para passar o som. É para ser às sete, mas a outra banda está atrasando, há algum problema no baixo. A demora se estende e os guris compram uma canha de um real para esquentar a voz na tardinha que já é fria. Assistem à preparação dos músicos de Milton e não compreendem como podem eles, três enganadores, compartilhar a noite de festival com aquela gente de soar tão refinado.  Quando sobem ao palco para a equalização o violão de Rodrigo Pessoa estraga e precisa pedir outro emprestado à outra banda, que imediatamente cede o instrumento ao saber que o músico acompanhava os três guris viajantes.
O público começa a entrar. Umas duzentas pessoas ouvem o primeiro acorde; mais de mil, o último. Saem para jantar entre elogios e aplausos. Em meio à refeição, escutam a voz de Milton, que pode estar dizendo qualquer outra coisa, não se pode definir ao longe, mas parece comentar sobre a honra de fechar o show anterior. Acham que é bobagem de suas cabeças e voltam a passos largos para o festival.
É domingo e já não há compromissos. Com os instrumentos vão ao bar das meninas. Os três De Sempre já estão lá. São quatro da tarde e começam a beber. Os turistas os enxergam e entram. A esquina logo enche e se torna uma roda de samba. Alguns começam a dançar. Sabem que amanhã tentarão ir e querem aproveitar ao máximo. O boiadeiro Billy pede uma moda de viola. Os três tocam e o homem manda a mulher buscar a gaita no carro.
– Qual delas?
– A nova, que tá no banco.
O boiadeiro os faz esperar pela gaita, porque não pode esquecer a música que quer tocar. Após minutos a mulher chega.
– Cê trouxe a gaita errada! Mas tudo bem, me acompanhem mesmo assim, é em Mi.
A gaita não afina com os instrumentos dos três guris e Billy se frustra. Pede desculpas, paga cervejas, conta que tem um programa de rádio, fala de gado, argumenta sobre os porquês de os gaúchos serem os supostos preferidos das mulheres e defende que o problema da violência não são os negros, como diz que todos acreditam, mas os pardos, porque a mistura de raças não faz bem, é só ver os números dos presídios. Os guris ouvem atentos e fingem concordar. Por certo não nota o bronze da própria pele.
A noite avança e a bebida não cessa. Entre danças e músicas, se ouve da janela:
– Vocês não vão embora amanhã!
É a previsão de Julio, que passa e os vê pelo lado de fora do bar.
– Nem brinca. Dessa vez temos que ir.
Foto: Gregório Mascarenhas

É o sétimo dia e os guris têm até as primeiras horas da noite para sair de São Thomé das Letras. Não percebem, mas o magnetismo já começa a fazer efeito. Despertam mais tarde do que deviam e voltam ao bar das meninas, ao avesso de qualquer lucidez. Restam poucos turistas e ninguém os para neste dia. Não se sabe o motivo, mas parecem não notar o próprio drama. Ignoram o fato de talvez nunca mais deixarem a cidade e bebem com os De Sempre, que tampouco os advertem.
– Precisamos ir!
– O quê?
– Precisamos ir! Vocês não tão ouvindo? Sério, vamos agora!
– Tá louco? Tu quer ir pra onde?
– Embora! Vocês não escutam as palmas?
Um cintilar de clareza. Não fossem as palmas do pôr do sol. As distantes palmas do alto da pirâmide. Como um despertador, as palmas os fazem notar o atraso. Sem tempo para despedidas particulares, fazem um cumprimento geral com promessas de um futuro retorno.
A luz do dia, já crepúsculo, torna-se aos poucos anoitecer. Sobre as rochas amarelas das ruas de São Thomé das Letras, os três guris correm. Acendem-se as luzes e as estrelas brilham mais e mais. Chegam em casa, pegam as roupas e as jogam de qualquer jeito nas malas. Entram no carro. Espanta a possibilidade de terem o túnel como a única saída. Em meio à aflição, não sabem aonde ir. Tomam a primeira estrada que surge, aonde quer os leve. Lembram-se de Julio e suas histórias. Há uma semana para sair. Certa vez, alguns viajantes músicos ficaram mais do que deviam. Na ladeira do Amendoim, não sabe se sobem ou descem. No retrovisor, São Thomé das Letras vai ficando cada vez mais para trás. Quanto mais distante a cidade, mais distantes as lembranças do lugar. Por fim, um instante de nada.
Só os mais velhos lembram a primeira vez em que os músicos viajantes chegaram a São Thomé das Letras. Talvez, há quinze, talvez há vinte anos. Não importa. Para eles, é sempre uma semana, sem saída e sem lembranças. Pobres amaldiçoados. Eternos recém-chegados.
É noite escura quando Julio os ouve ao longe. Os Recém-Chegados contam a sua história aos De Sempre. Estes, como sempre fazem, ouvem com atenção e contam também a sua própria história. Advertem:
– Vocês não vão embora amanhã.  
 
São Thomé das Letras em dois atos (I): O Horizonte do Monte Imantado, pelo viés de Gabriel Eduardo Bortulini*
Leia também: São Thomé das Letras em dois atos (II) (em breve)
 
*Gabriel  é um jornalista com talento para a ficção. Em “São Thomé das Letras em dois atos”, Gabriel Eduardo conta a mesma história através de distintas ferramentas. É uma experimentação literária que trabalha com dois gêneros que, a princípio, não se tocam: a reportagem e o conto.

2 comentários em “São Thomé das Letras em dois atos: (I) O Horizonte do Monte Imantado

  1. Parabéns pelo texto brilhante, não sou “expert” no assunto, mas adoro leitura e você sabe prender o leitor, excelente esta inovação literária. A propósito conheço um pouco da história, sou tia de um dos Recém-Chegados. Abraço com o desejo de ver essa obra publicada em um livro.

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