Folhas do vento norte (III). Nuvens no fundo do mar

Foto: Pedro Pellegrini

Olha como estão estranhas as nuvens, ouviu. E concordou que aquele era mesmo um dia incomum, ao menos no que diz respeito ao céu. O amanhecer molhado logo deu lugar a uma tarde fechada que, pouco a pouco, cedeu os espaços para a neblina. Com o crepúsculo, as luzes amarelas da cidade mostravam que as nuvens estavam a ponto de tocar o chão. Fragmentos da neblina sobrevoavam as ruas, roçavam nas árvores mais baixas, escondiam o teto dos postos de gasolina e adentravam os lugares menos imaginados. Em pouco tempo, naquela hora em que a tarde se retira para que a noite assuma os trabalhos, a cerração havia tomado as esquinas e os montes, descera para a cidade como se ali resolvesse ficar por alguns anos. Não se tratava de consistência física, mas de uma forte impressão de permanência.
No Centro, os caminhantes que quase sempre estavam alheios a tudo, e não seria diferente com a posição das nuvens num céu tão repetitivo, desta vez pareciam espantados: andavam devagar porque a atenção estava nos olhos, intrigados com aquelas nuvens de voo baixo, como pássaros recém-saídos de gaiolas. Alguns homens retiravam câmeras do bolso para fotografar, ainda que o fenômeno fosse delicado demais para a maioria das lentes. Houve também quem caminhasse depressa, um tanto por susto. Pensavam apenas em chegar logo em casa, para então fechar as portas, as janelas, tapar as saídas da lareira, se fosse o caso de ter uma no cômodo mais central. Assim impediriam que as nuvens também tomassem conta da sala, da banheira, da louça ainda por lavar que esperava na pia da cozinha. Que ocultassem os papéis da escrivaninha, escondessem o carro na garagem estreita e assim seguissem adiante.
O temor de ser tragada pela fumaça que descia não a atingia. Mais do que isso, o que gerava era curiosidade. Saiu a caminhar para tentar descobrir do que aquilo era feito. No Calçadão, percebeu que elas flutuavam com alguma velocidade, que não se contentavam em baixar e então ficarem quietas. Foi quando deteve os olhos no termômetro: enxergava a temperatura – digamos que naquele princípio de noite o aparelho apontava para dezoito graus – e logo em seguida um floco de nuvem se deslocava para o lado e tornava mais difícil a leitura, como se padecesse de uma súbita e assustadora miopia. Mas, segundos depois, este fragmento de névoa rumava para outro lado, quem sabe para a Praça, ou mesmo tomasse as ladeiras que acabam por desaguar no Parque, e então aqueles números se tornavam legíveis outra vez. Não pôde evitar um sorriso, e naquela hora viu que o lugar estava quase vazio. Há quanto tempo estava atrás dos rastros e da composição da neblina?
Metros adiante, viu-o, tal como uma aparição que só aparece mesmo em noites de cerrado nevoeiro, fantasma que não poderia tolerar a luz do sol no rosto. Parecia tão instigado quanto ela, e espiava para dentro de uma galeria para comprovar se as nuvens também haviam entrado naquele túnel por entre dois prédios comerciais. É possível que a tenha visto no mesmo momento, ela que deixava o termômetro para trás. Aproximaram-se, riram do acaso e da estranheza do que ocorria ali, agora sem outros espectadores. Ele disse que estava surpreso, que os jornais anunciaram que seria uma noite de lua grande, e não de uma tempestade de neblina como a que estavam vendo. Caminharam juntos, talvez esquecendo que o gesto pertencesse a outra época. E só detiveram o passo quando, na frente de uma entrada iluminada por duas lâmpadas brancas, um cartaz anunciava que a última sessão do Cinema começaria em poucos minutos. Era um filme sobre o fundo do mar, ao que parecia pelo título e a fotografia da chamada.
***
Foto: Pedro Pellegrini

Pagaram menos de duas notas pelos ingressos e se apressaram para entrar na sala, deixando para trás as pipocas e os adereços. O ambiente estava quase vazio; nas fileiras do fundo havia alguns casais em silêncio e, um pouco mais à frente, alguns senhores idosos que esperavam com a coluna reta o início da sessão. Escolheram dois lugares no canto esquerdo, distante dos demais. As luzes se apagaram rápido, mas a tela se mantinha desligada. Algum problema técnico, talvez. Uma mulher jovem virou-se para a cabine do projecionista para saber o que acontecia ali, mas nada pôde descobrir. Sobravam alguns ruídos dispersos de conversação em voz muito baixa e o barulho de uma porta que batia ao longe. Por um momento, entre o susto e a graça, ela pensou que não poderiam mesmo enxergar nada ali dentro, pois a neblina teria se apoderado também daquele lugar. E nem bem terminou o fantasioso raciocínio quando a função começou e surgiram os primeiros créditos do filme em letra branca, numa filmagem que já parecia mostrar um cenário marítimo. Com o lanterninha, três rapazes atrasados procuravam uma poltrona qualquer nas primeiras filas, constrangidos pela situação.
Descobriram com rapidez algo que nem o cartaz e tampouco os créditos diziam: que a película era toda feita de imagens e sons, sem a presença de narração ou qualquer palavra escrita. Nem por isso deixava de ser conduzida por alguma espécie de enredo, é certo, mas se tratava de uma linha distinta e sutil. Por uma hora e meia, assistiram, em meio a um intenso silêncio, a peixes que nadavam nas cavernas mais fundas do Pacífico, espantaram-se com golfinhos que precisavam desviar de cargueiros em meio a uma longa travessia pelos mares, contemplaram plantas que se fixavam em rochas subaquáticas, algas, cores, fluxos d’água sem interpretação aparente para o espectador que sempre se manteve longe dos oceanos. Mais de uma vez, ela pensou em interromper o silêncio e conversar com ele num balbucio curto, quase indiscernível, para tentar saber qualquer coisa sobre o que havia feito dos últimos dias, mas viu que o companheiro de sessão estava mesmo atrelado ao destino dos seres do mundo abissal. Era preciso esperar que aquilo terminasse, embora fosse complicado saber em que ponto estavam – saíra sem relógio e o filme certamente se encerraria de modo abrupto, sem grandes anúncios de despedida.
Algumas cenas depois, a câmera deixou o fundo do mar e alcançou as águas desde o alto, numa tomada que indicava o fim da história. Os créditos finais apareceram na tela e as luzes dos corredores enfim se acenderam. Os senhores aplaudiram com surpreendente aprovação o que tinham acabado de ver. Aos poucos, todos já estavam no saguão do Cinema, que por sua vez está a poucos passos da rua. Boa parte da noite se passara ali dentro, no fundo do mar. E se antes a cidade já estava quase vazia (e os seus habitantes empenhados em escapar da neblina), por estas horas os caminhos estariam ainda mais desertos. Decidiram sair para a rua outra vez, deixar o Centro e encontrar algum espaço para conversar. Mais do que isso, queriam ver se as nuvens ainda sobrevoavam a cidade com o mesmo afã de antes da sessão.
***
S Foto: Pedro Pellegrini

Bastou colocar o pé esquerdo na rua para ter de fechar os olhos. Um vento forte e quente esparramava folhas pelo Calçadão, desarrumava cabelos e roupas, fazia-os recuar. Balançava placas e enlouquecia os cães, e teve força suficiente para afastar a névoa dali – ao longe, ainda se via seu rastro, para além dos montes. Demorou um par de instantes até que pudessem reabrir os olhos, mirar em volta. No céu, a prometida lua grande chegara, e iluminava tudo: podia mais que a luz artificial das luminárias públicas, que os letreiros envelhecidos das lojas de rua. Como que saída do fim do oceano, a lua grande os convidava a caminhar. E então rumaram ao Parque, num caminho quase automático, sem reparar em quase nada do trajeto.
Aquele não era um vento novo, desembarcava na cidade a cada agosto e voltava com certa frequência em outubro e em dezembro. Era raro de ser encontrado nos primeiros meses do ano e permanecia em algum esconderijo da Serra no início do inverno. E quando chegava, demorava para ir embora. Vento de carregar pétalas de flor e pequenas porções de terra, parecia fechado para estudos e naturalizações, porque surpreendia sempre. Mesmo os que viviam na cidade há décadas se mostravam despreparados para a sua chegada; na varanda de uma casa no norte, restava lamentar quando ele chegava espalhando as folhas dos jornais, mudando o humor mesmo das mulheres mais estáveis do lugar. E, tal como a neblina que aparecera horas antes, o vento também tinha o estranho poder de entrar pelas frestas, de não esperar convites. Alguns diziam que desde o seu primeiro sopro a regra do mundo mudava e tudo passava a ser uma questão de casualidade.
Quando chegaram, o Parque já estava com o céu limpo. Num espaço plano de grama, adolescentes tomavam vinho em garrafas de plástico e formavam um círculo. Eram os únicos seres acordados naquela hora; as cigarras já haviam desistido de cantar. Eles se aproximaram em silêncio, sentaram a uma distância em que escutariam as conversas com alguma clareza. No círculo, falavam da névoa de pouco antes, assunto que talvez estivesse em outras rodas, em outras regiões da cidade. Um deles começou a ler um poema improvisado, e antes de recitar os versos esclareceu que havia escrito naquela mesma tarde, enquanto via a Avenida abdicar da cúpula dos seus prédios para o controle das nuvens: ‘estão nublados / os dias os livros o céu / nublado o meu passo / nublada a minha cor / as minhas noites cheias de nuvem / que escondem luzes e catedrais (…)’. Ao lado do Poeta, uma menina disse, olhando diretamente para os dois forasteiros, que em tempos estranhos assim, de cerração e ventania, mesmo os poemas só poderiam seguir as regras do acaso e dos encontros fortuitos.
 
Quinzenalmente, cenas e circunstâncias de Santa Maria – cidade que, apesar do título, também sofre com outros ventos, mais gelados – devem ser narradas neste espaço.
 
Folhas do vento norte. (III) Nuvens no fundo do mar, pelo viés de Iuri Müller
 
 

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