Folhas do vento norte (V). Carta a V.

Querido,
 
Por aqui, a quinta-feira nasceu fresca, com um sol que acaricia e não nos queima. Vento pela manhã, o céu quieto agora à tarde. Estranho para outubro, mas eu seria incapaz de reclamar. Em poucas semanas o sol será o sol do verão, o sol de dezembro e de janeiro, e então não haverá mais manhãs frescas e tardes amenas. Haverá pouca coisa em movimento e eu te escreverei sem esta calma de hoje. De qualquer modo, é uma bobagem eu me preocupar com o calor que nem chegou antes de te dizer as coisas do dia e o que pensei em colocar no papel para que leias quando isso alcançar, depois de atravessar algumas paragens desabitadas no meio do caminho, a caixa de correspondência do teu prédio.
Há algumas semanas que estamos em uma casa nova, e imagino que tenha te contado da nossa recente mudança. É uma casa desta vez, e não um apartamento que chamamos de casa e que na verdade é qualquer outra coisa, como aconteceu comigo nas últimas três ou quatro vezes. Fica a poucas quadras do Parque, quase numa esquina, e os cômodos são tão espaçosos que mal sabemos aproveitar tanto espaço – é como se a sala fosse um saguão de um teatro de uma cidade de província, um teatro charmoso e antigo, e o quarto uma daquelas habitações de hotéis que podem abrigar três ou quatro camas, sem aperto. Eu estava acostumada com as paredes me apertando, com estantes se multiplicando, e agora podemos acomodar tudo pelo chão, com sobras, e nossos poucos móveis distribuídos deixam espaço para que os gatos corram pela sala, a perseguir raios de sol e borboletas invasoras, os componentes lúdicos que os distraem por horas ou dias inteiros.

Foto: Pedro Pellegrini

Eu imagino que saibas onde fica e que encontrarias a casa sem problemas a partir da Rodoviária; eu nem precisaria te deixar o endereço exato. Há quantos meses que não vens? Eu respondo por ti: três ou quatro, pelo menos. Ainda ontem estava vendo as fotos da última visita tua, e penso que já seria uma boa hora para que passes uns dias por aqui. Quem sabe o fim de semana, o próximo. As situações estão todas mais calmas – quase suspensas de tão paradas, eu poderia dizer. A impressão é que, no momento em que nos mudamos, as questões mal resolvidas ficaram todas ao redor do antigo apartamento, quem sabe assombrando os novos moradores. Não que eu deseje assombrar alguém com os meus problemas. Mas bem sabes que eu precisava me livrar deles com alguma urgência, de modo que não me importo tanto assim que tenham encontrado um alvo novo e inocente por um tempo. Me permita o egoísmo por agora, me sinto leve depois de muito tempo e isso me faz bem.
R. segue morando comigo, mas agora recebemos poucas visitas. As pessoas aparecem aqui e logo saem (eu vou com elas quase sempre) para o Parque, que vem a ser como que o jardim desta casinha com janelões por onde passa toda a luz do dia. As manhãs são plenamente iluminadas. A minha rotina, apesar da mudança de endereço, permanece a mesma: trabalho logo cedo, universidade à tarde três vezes por semana, vinho e alguma insônia durante as noites. Nos últimos meses, viajei pouco. Duas ou três vezes para a casa dos meus pais, como sempre, mas desta vez por menos tempo. Eles adotaram um cachorro novo por lá. É tão manso e carente quanto o vira-latas que chegaste a conhecer, e imagino que vá crescer tanto que um dia se parecerá com uma ovelha. Eles estão bem, se queres saber. Há tempos que não conversamos sobre os temas que sempre terminam em discussão, o que faz com que as visitas sejam quase simples. Eu prefiro assim: é menos sincero, eu sei, mas também é menos dolorido. Esta é a fórmula que magicamente encontrei para começar a acalmar a vida por agora.
 Este não é o primeiro papel que rabisco com a minha caneta preta de ponta fina para te contar novidades daqui. Eu fiz isso várias vezes. Num deles, escrevi sobre os livros que li desde a tua última viagem, e cheguei até a transcrever alguns longos fragmentos. Sempre tive esta vocação de monge copista e acho que poderia ficar a vida inteira copiando (à mão ou mesmo nos computadores) trechos que poderiam servir no futuro para alguém, para mim. Se souberes de alguém que me pagaria por isso, e pode ser o mesmo salário de fome que me pagam na biblioteca, avise-me que me demito deste emprego e aceito o novo com um sorriso adolescente. O papel em que te falo dos livros ficou na minha gaveta, não quero perder as transcrições: podem ser úteis em algum momento. Os outros foram para alguma lixeira ou estão debaixo de algum móvel, já que se transformaram em bolinhas de papel para a brincadeira dos gatos e desde então rolaram por toda a casa e ganharam uma densa camada de pó.
Escrevi os papéis e os perdi por aí por um motivo menos banal do que triste. Me incomoda que o calendário avance tão depressa sem que eu saiba de ti e tu saibas de mim. Já é primavera, o sol nos acaricia sem queimar, e não sei se há um jardim como este perto da tua casa, o que duvido muito. Imagino um constrangedor cenário de concreto, com pessoas solitárias habitando apartamentos minúsculos, enxergo vizinhos que não conversam nem sobre o tempo quando se encontram na ferragem da esquina, quase ouço os ruídos demoníacos das tardes de domingo, quando nada de bom pode acontecer nas ruas do centro de uma grande cidade. E o estranho que é não te imagino em meio a isso tudo, sei que és feito de outra essência, que te incomodam os distanciamentos impostos por uma ordem de cidade que não te diz respeito, e que deve te faltar ar quando, num momento de maior sensibilidade, tu paras e pensas na rotina desta cidade que para mim ainda é tão estrangeira.
 Ainda assim, quero saber: se é verdade que tua quitinete do décimo primeiro andar é invadida pelo barulho dos motores dos ônibus que passam desde as seis horas da manhã na avenida em que tu vives, por exemplo. Que tens visitado lugares tão distantes e exóticos que não consigo localizar num mapa. Que tens defendido ideias que jamais imaginaria vinculadas à tua boca. Porque algumas notícias chegam, se não sabes. Mas não partem de ti. São como papéis clandestinos que intercepto numa estação cercada, e sobre os quais é impossível saber o quanto é verdade e o quanto é invenção. E isso me incomoda, querido: ter de ir tão longe para saber pouco ou nada, e sem ter a certeza de que estas migalhas de informação sobre a tua vida têm qualquer coisa de realidade ou se foram inventadas pelo ócio ou pelo tédio alheio, o que muitas vezes acaba por resultar no mesmo e enfadonho estado de espírito.
Talvez seja por isso que me especializei em amassar estes papéis de carta e em jogá-los num canto situado entre o corredor e a sala. De nada me adiantaria (pelo contrário, me sentiria ridícula ou desesperada) enviando cartas que não retornariam, palavras que seriam respondidas com o teu vazio. Apenas desta vez será diferente. Um pouco diferente, ao menos. Porque aqui fora faz este sol que me dá alguma serenidade, e porque outra vez senti um impulso forte de escrever. Mais do que isso, senti o impulso de escrever, de escrever uma carta até o fim, com direito às palavras que sobram e aos dados burocráticos do envelope, como teu endereço (que espero acertar) e o nome desta cidade que ainda não conheço e que talvez um dia visitarei. E depois disso, o impulso de fechar isso aqui com um selo comprado por menos de um real, de caminhar até um posto dos correios e de pagar pela viagem destas notícias que, imagino, não esperas receber, não agora.
 Veja só, alguns presentes acompanham esta carta. O primeiro é um livro de poemas traduzidos e organizados por Manuel Bandeira, que encontrei num sebo do Centro, quase junto ao Túnel. De Jorge Luis Borges a ingleses que desconheço, mas que me pareceram, como todos os outros da antologia, encantadores. Espero que gostes. O segundo regalo é esta foto que deves ter encontrado imersa nas dobraduras do papel. Eu mesma a tirei, numa tarde preguiçosa em que vi as horas passarem deitada na grama ainda úmida do Parque. Por que te encaminho a fotografia? Não sei ao certo, mas nela há um elemento que julgo interessante. Repare com atenção que os galhos da árvore parecem acompanhar o contorno e o movimento das nuvens, como se fosse possível perceber o efeito do vento naquele instante aprisionado pela câmera.
 Parece absurdo? Se sim, desconsidere, ou lamente pela estranheza do meu senso estético: havia flores mais coloridas para se fotografar, e eu preferi esta árvore num caminho de meio balanço, preenchendo os espaços que o azul do céu cede para as nuvens. É o que eu tenho para te dizer, e que desta vez chegará até ti.
                       
Com carinho e saudade, 
 
Mensalmente, cenas e circunstâncias de Santa Maria – cidade que, apesar do título, também sofre com outros ventos, mais gelados – devem ser narradas neste espaço.
 
Folhas do vento norte (V). Carta a V., pelo viés de Iuri Müller.
 
 

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