Os monges copistas

Foto: arquivo pessoal

I.
Naquela noite, a cidade estava estranha e os ônibus que voltavam pelas avenidas não encontravam espaço para adentrar o centro. Às margens dos canteiros, longe do destino final de cada linha, os passageiros desciam dos veículos e precisavam terminar o trajeto a pé.
Acontecia naquela hora, diziam os motoristas, um protesto de estudantes nas proximidades do mercado central, e em algum momento – tal como ocorreu em boa parte das passeatas anteriores – a polícia havia confrontado os manifestantes com violência. Perto do parque, as travessas estavam mal iluminadas e era preciso andar beirando as fachadas das lojas e bares ainda abertos para enxergar com nitidez a próxima esquina.
A maior parte dos que deixaram os ônibus e passaram a caminhar se perdeu em poucos minutos pela cidade. Nos próximos dias, ou mesmo semanas e meses, talvez tenham se sentado lado a lado nos mesmos ônibus, mas provavelmente não se reconheceram – os rostos se confundem nos trajetos repetitivos como aquele.
V. caminhou por cinco ou seis quadras (boa parte delas realmente largas, o que demandou um bom tempo de percurso) até entrar em casa, na Cidade Antiga, deixar os livros que levava na mochila em cima da mesa da sala, alimentar os gatos que ainda viviam no quarto dos fundos, deitar-se por cinco minutos, quase que só para descansar as pernas, e voltar a sair pela porta da frente. F., por sua vez, veio de longe e fez o caminho todo em cima de uma bicicleta pública, que alugou na estação próxima a um hospital.
Talvez tenha sido V. o primeiro a chegar, já que a distância que o separava do bar era menor, mas digamos que tenha sido F. e que F. chegou e não tardou muito para levantar a mão direita e pedir ao garçom uma cerveja comum. Era certo que, depois, beberiam vinho em jarra, mas por agora o calor atordoava e a cerveja o refrescaria com mais rapidez do que qualquer outra bebida. Ali, a cerveja custava três moedas a menos do que nos bares da mesma rua.
No bar, naquela hora da noite – digamos que passasse um pouco das nove, não mais do que isso –, apenas quatro ou cinco mesas estavam ocupadas do lado de dentro. As mesas da rua, em função da temperatura, recebiam mais gente, em geral clientes que bebiam pouco e logo davam lugar a outras pessoas. Quando V. entrou no salão, F. já estava às voltas com a metade final da garrafa e ainda sentia resquícios da sede. Cumprimentaram-se sem entusiasmo e escolheram outra mesa, mais próxima da televisão, ainda que dificilmente olhassem para o aparelho.
Não é certo que tenha sido V. o primeiro a comentar a manifestação e o fato dos ônibus terem empacado antes da última curva do arroio, mas é bem provável que tenha sido ele pela importância que costuma dar a esses temas. Disse que, do seu ônibus, muitos dos que desceram caminharam com pressa para o centro interrompido, para se somarem aos que ainda tentavam resistir por lá.
F. estava nitidamente assustado com a violência que a polícia da cidade empregava naquelas situações, e acreditava que em poucas semanas, se as coisas seguissem nesta crescente, algo de mais trágico poderia acontecer na cidade. Não quis que o assunto permanecesse na mesa, já que de pronto folheou o cardápio e sugeriu que pedissem um prato para duas pessoas, com ovos fritos e salada, além da jarra de vinho da casa. Nada diferente do que escolhiam sempre.
 
II.
Falaram sobre futebol, sobre uma pesquisa eleitoral e a exposição de um artista português que apareceria na cidade em poucos dias, até o momento em que chegaram os pratos e a bandeja do garçom. Por tempos, o que mais houve na mesa foi silêncio: fruto da fome que pisa forte nos finais de terça-feira.
Comeram mais do que beberam na primeira meia-hora, de modo que a jarra estava quase intacta quando F. limpou a boca com o guardanapo e disse que estava com medo de esquecer de coisas importantes: não porque estivesse mal da memória, mas porque algumas coisas sempre podem escapar e até parece inevitável que se percam. E então deixou de lado a comida ainda quente e passou a falar por minutos a fio.
F. havia conhecido, disse, a história de um colega de trabalho (F. trabalhava em um banco, ou em um tribunal) que anotava em cadernos de duzentas ou trezentas páginas todas as partidas de futebol que ouvia no rádio, guardando ali as escalações, os gols do jogo, os momentos importantes e o tempo em que cada coisa aconteceu ou assim foi relatada. Fez isso primeiro por tédio e por distração, depois por ritual e inércia e, por fim, por necessidade e angústia. É que a memória começou a falhar e aos sessenta anos ele acreditou que poderia salvar o que houvesse de mais importante naquela coleção de papéis encadernados.
Desde então, F. continuava a contar, o homem destinava para as anotações de monge copista mais e mais prateleiras de suas estantes, e a coleção não parou de aumentar. Não eram só fichas técnicas do futebol em lugares longínquos, mas também os filmes que assistia no cinema e na televisão, as notas que imaginava importantes e que copiava do jornal, os diálogos que havia travado naquela mesma manhã com a mulher e o filho, antes de sair para o trabalho. Não havia anotado sequer uma linha de conteúdo ficcional; para tanto, faltava-lhe criatividade.
Chegara até mesmo a anotar recordações distantes, que surgiam na cabeça sabe-se lá de que maneira, mas como a transcrição destas lembranças começava a lhe parecer constrangedora demais, decidira parar por ali. Anotava, portanto, apenas o que era objetivo e relativamente recente. O passado que não estava nos cadernos poderia ficar para trás – nem para tudo havia espaço na sua jangada de madeira ruim.
E nem bem F. havia terminado o relato do seu colega de trabalho, homem que parecia mesmo admirar pela técnica corajosa e pouco orgulhosa que havia posto em prática, V. perguntou de que maneira F. poderia se utilizar daquilo, já que não tinha, até onde sabia, maior interesse por anotações esportivas, diálogos do cotidiano e recortes dos jornais da província. Antes de responder ao companheiro, F. esvaziou a jarra nos dois copos e acenou para o garçom encher outra vez o recipiente.
 
III.
A resposta de F. iniciou com um ritmo lento, de modo que o pensamento de V. vagou pelo bar e foi parar nas palmeiras da avenida, entre as quais havia enxergado a lua no início daquela noite. Mas logo ouviu da boca de F. uma ou duas palavras interessantes e já estava imerso na conversa. Ouviu com atenção, entre goles vigorosos de vinho tinto seco, e me parece que o que escutou foi o seguinte.
F. não tinha, é verdade, a intenção de acumular papel com informações que não parecessem relevantes. Não importava, por exemplo, se Cristian Riveros havia marcado de cabeça contra o Defensor Sporting aos vinte ou aos trinta e cinco do segundo tempo; aliás, até importava de alguma maneira, mas se o tempo modificasse a recordação não haveria problema. O mesmo valia para fatos políticos (os acontecimentos impactantes permaneceriam, para ele e o mundo, quisesse ou não a ponta da caneta preta) e para suas conversas de cada dia.
Mas o que tinha o poder de amedrontar F., quem sabe a ponto de prejudicar algumas de suas noites de sono, ou mesmo de provocar um punhado de sonhos ruins e de presságios assustadores, era a possibilidade de perder as suas ideias, aquelas que poderiam servir para um conto ou um poema, e que desapareciam da memória em poucas horas, ou no dia seguinte se fossem imaginadas numa madrugada de insônia e tempestade.
E, ante o rosto algo debochado de V., F. esclareceu que não era para se ver nisso qualquer ambição literária ou aspiração profética, que provavelmente não escreveria nada a partir daqueles argumentos curtos, mas o que o angustiava era vê-los se tornar fumaça na memória e quem sabe não os recuperar mais. Ter imaginado e organizado minimamente o pensamento já bastava; escrevê-los sob a forma da ficção era consequência desnecessária. Não fazia, de maneira alguma, parte da mesma aflição.
Desde que havia escutado o relato do colega de trabalho e refletido um pouco sobre o que ouvira, F. tratou de comprar os mesmos cadernos de duzentas ou trezentas páginas e passou a escrever – às vezes na rua, sentado no meio-fio; ou no metrô, entre a estação Plátanos e a Retiro – as ideias que poderiam, um dia, se encontrassem o instrumento e o sujeito competentes, assumir a forma da frase e do verso. Isso aconteceu há poucos dias, e o resultado já era visível no acúmulo de folhas pautadas.
 
IV.
Já havia escrito em três linhas, por exemplo, a sugestão de uma cena em que uma aguardada carreira de cavalos (na São Paulo dos anos 1930, quem sabe) era interrompida por um avião que precisava aterrissar abruptamente no hipódromo, de modo que, a partir deste dia (que havia acabado bem), os precavidos cavalos sempre tentassem olhar para o céu após vencer a primeira curva do percurso.
Escrevera, também, em quatro ou cinco linhas, sobre a forma com que as torcidas do futebol argentino tratavam a finitude, já que a parcialidade de um clube (imaginava que do bairro de Boedo) cantava que acompanharia o clube até mesmo no céu, e a outra (talvez de Núñez, ou de Belgrano) entoava o cântico no qual admitia, resignada, que apenas a morte poderia separá-los. Eis o argumento-chave para um ensaio acadêmico, debochou de si mesmo F.
A isso seguiam, para riso e algum divertimento de V., pequenos apontamentos sobre um hotel em Moscou nos dias revolucionários em que a cidade não havia compreendido bem se estava sob o poder dos bolcheviques ou dos defensores da velha ordem, no qual os hóspedes não duravam ali mais do que duas noites e o público era formado quase que só por espiões, contrabandistas, fugitivos e imigrantes que se viam completamente perdidos no palco da história. E já havia escrito mais, contou a V., mas talvez não fosse o momento de ler em voz alta o caderno inteiro.
Com a leitura, o tempo passou mais depressa no salão e a segunda jarra se esvaziou com a mesma velocidade. Ainda houve tempo e ânimo para tomar uma terceira, que o garçom encheu apenas até a metade, antes de saírem para a calçada. A noite ainda estava abafada como antes, mas os ônibus, ao que parecia, voltaram a percorrer as avenidas como costumavam fazer. A manifestação já havia se dispersado. V. despediu-se sem demora e já sentia os primeiros sinais do sono, mas F., após a apertar a mão do amigo, tratou de se encostar na parede do bar e anotar mais uma frase solta em seu primeiro caderno.
 
Os monges copistas, pelo viés do colunista Iuri Müller.

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