CARTAS DA MÃE

Mãe.

Antes de qualquer palavra, vem aqui um pedido de desculpas. Eu sei, faz tempo que abandonei as cartas e não as produzo nem para trocarmos poucas, meras e vagas palavras. Mas hoje, não sei por quê, um surto febril saudosista tomou conta de mim, de uma maneira gostosa e incômoda ao mesmo tempo, que só vi aqui possibilidade de remediar essa coisa que me remoia por dentro igual a cólica que vinha quando eu, ainda criança, exagerava nas delícias que só suas mãos sabem fazer.

Infelizmente, mãe, não venho aqui trazer boas novas. Na verdade, esta carta só vai conter o mais do mesmo, tudo aquilo que já branqueou seus cabelos, a mesma velha história. Espero, sinceramente, não a magoar pelo fato de eu sempre retornar com meus problemas. Eu sei, sou assim desde pequeno e agora não será diferente, mas, toda vez que me flagro sendo egoísta, penso que não existe pessoa no mundo que ame mais o meu egoísmo que a senhora.

Eu ainda não voltei, mãe. Isso é fato, não preciso de quinhentas páginas para explicar justo para a senhora, que, até hoje, espera ansiosa por notícias.  Na contramão, imagino que nem mil e quinhentas páginas seriam suficientes para a senhora descrever o que sente pelo filho que não voltou. Não lhe deram o direito de beijar minha testa uma última vez em um caixão. Direito cruel, mas ainda menos pior que essa espera que a cada dia agrava ainda mais os traços da sua idade já avançada. É engraçado que, sempre que penso nisso, percebo como as coisas se colocaram às avessas em nossa vida. Tem gente que gosta de dizer “o correto na vida é um filho enterrar uma mãe”. Concordo. É assim que as coisas acontecem no meu mundo, aquele pelo qual lutei. As pessoas morrem de velhas e por nenhum outro motivo. Só de velhice e depois de terem vivido muitos anos podendo saborear o que há de bom no mundo. Sem gosto azedo. Aí eu penso que, para nós, a história foi tão ingrata que inverteu tudo e ainda colocou agravantes. Eu sumi, como eles gostam de dizer, e nem lhe deram o direito de beijar minha testa branca e fria.

Mesmo sabendo que é o mais provável, espero não te fazer chorar, mãe. Mas, da mesma forma, espero que a senhora entenda que a vida foi, e segue sendo, tão cruel, que aqui nesta carta não cabem palavras bonitas, paraísos ou coisas do tipo. A vida, definitivamente, não foi justa. Quando me tiraram a vida abaixo de tortura, de humilhação e de crueldade, pensei que não existisse dor comparável a essa. Aí entra governo, sai governo e ninguém faz nada por nós. Quando convém, sempre aparece gente se promovendo às custas de quem morreu. “Eles lutaram para que tivéssemos o direito de estar aqui”. Sim. Mas, então, seria pedir demais que punissem nossos assassinos e nos oferecessem o direito de morrer dignamente? Isso dói muito. Compramos a briga por um Brasil diferente e ninguém comprou a briga por nós. O sopro de esperança que tivemos quando o país elegeu um ex-operário se desfez mais fácil do que esperávamos. Agora, com uma ex-guerrilheira, as coisas para nós, até então, não andaram e, para piorar, assistimos a uma enxurrada de medidas perversas indignas da antiga atuação da presidenta, quando, assim como nós, lutou, foi presa e torturada. Não lutamos por um Brasil privatizado para atender aos desejos de uma copa do mundo, mãe. O que me entristece muito. Sim, é fato que algumas coisas melhoraram. Mas definitivamente não foi por um governo meia-boca, negociador e de alianças vergonhosas que pegamos em armas e nos embrenhamos no mato. Tampouco fizemos isso para que os patrões voltassem a governar este país. Eu não entendo o que acontece, mãe. Muito menos imagino o que podemos fazer para sair dessa situação. Parece que as siglas, que, em nossos tempos, eram muitas e ilegais, não servem mais para nada. Passa governo, entra governo e, quando pensamos que havíamos votado em algo diferente, está lá – a mesma coisa.

Certa vez, referindo-se à Nova República, o jornalista Wilson Figueiredo disse que o Brasil era reconstruído com material histórico das demolições passadas e os mesmos mestres de obra. A senhora, mãe, do alto da sua experiência, sabe que tudo que construímos com coisas antigas e do mesmo jeito está fadado a ruir. Pois é, mãe, as coisas não parecem caminhar bem, pois, como se não bastasse, o povo brasileiro dá uma mãozinha, ficando sentado, entretido e satisfeito. Não podemos negar que existem algumas pequenas fagulhas de mudança, como esses operários do PAC que agora resolveram mostrar sua cara. Lindo de ver, afinal, a cara de um operário é a cara do país. Mesmo assim, são apenas poucas demonstrações, o que nos coloca novamente ao chão. É um individualismo que assusta, mãe. Não podemos pensar em andar a passos de tartaruga quando podemos voar.

Desculpe, mãe. Na correria de minhas amarguras, esqueci de perguntar como a senhora estava. Aliás, tenho que dizer antes que me esqueça: seus cabelos brancos são, para mim, sinônimo de tudo de bom que há no mundo. Eles são lindos, os mais lindos do mundo. E o cansaço? E as pernas? Eu sei que sua idade já não mais permite que faça tudo o que quer. Mesmo assim, peço que a senhora, junto com as outras mães do Brasil, não enfraqueçam a luta por nós. Neste mundo bizarro, muito diferente de tudo pelo qual lutamos e sonhamos, temos que nos agarrar em vocês, nossas mãezinhas, o lugar mais seguro do mundo.  É só o que nos resta: nosso amor e vocês. O que hoje parece não sensibilizar mais ninguém.

Um beijo do seu filho,

Adriano, Aluísio, Ana, André, Antônio, Arildo, Armando, Áurea, Aylton, Bergson, Caiupy, Carlos, Celso, Cilon, Ciro, Custódio, Daniel, Davi, Dênis, Dermeval, Dinaelza, Dinalva, Divino, Durvalino, Edgar, Edmur, Eduardo, Elmo, Elson, Enrique, Ezequias, Félix, Fernando, Francisco, Gilberto, Guilherme, Heleni, Helenira, Hélio, Hiran, Honestino, Idalísio, Ieda, Isis, Issami, Ivan, Jaime, Jana…

CARTAS DA MÃE, pelo Viés de Rafael Balbueno

rafaelbalbueno@revistaovies.com

Texto inspirado na coluna semanal que o cartunista Henfil mantinha durante a ditadura militar brasileira.

Para ler mais crônicas acesse nosso Acervo.

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