O problema não é a (i)migração mas o (i)migrante

‘(I)migração (não) é um crime’. Foto: Flickr/Smoobs.

Um dos aspectos mais curiosos dos países que foram colonizados é que muitos sentem orgulho das nossas raízes migratórias. Lembro-me muito bem das tantas vezes em que me perguntaram, ouvi perguntar ou em que eu mesmo tenha perguntado ‘mas tu és o quê’? Essa pergunta não era feita na esperança de se desvendar toda a pluralidade do que ser pode significar; referia-se a um cercamento de origens geográficas muito específicas: ‘sou italiano, alemão, austríaco’. Essas e algumas outras origens parecem ainda muito vivas mesmo que os antepassados tenham vindo desses lugares — que, muitas vezes, nem ainda existiam como nós os imaginamos hoje — há gerações, há décadas, há um século ou mais. Não que o tempo, por si só, suprima origens etno-culturais. Não há nada intrínseco à passagem do tempo que possa desvencilhar alguém daquilo que ela interpreta serem suas origens. É uma das características da identidade: ela se reproduz socialmente, pode sofrer sob tentativas de extinção (como, por exemplo, sofrem as culturas de origem africana) e pode manter-se viva através de seus descendentes (como é o caso das culturas de origem europeia). No entanto, é interessante notar que aquela pergunta-lá nunca era respondida com outros termos: as origens europeias são vociferadas orgulhosas e ativas; africanas e indígenas, geralmente respondidas com um feroz ‘eu não sou nada’ — muitas vezes complementado por um ‘eu não sou nada, sou bugre’ [um termo pejorativo usado para se referir a pessoas com alguma descendência indígena]. Isso para se falar só nas origens ‘clássicas’ do Brasil. 

Ou seja, ser alguém implicava ter origens muito bem definidas. Nem todas contam como essência humana, nem todas dão o direito de alguém ser alguma coisa. Essa constatação é, na verdade, uma que vem com muita agressividade. Como é que uma pessoa pode não ser nada? De um lado: eu não sou nada, sou bugre. Iguala-se ‘nada’ a ‘bugre’. Do outro: eu sou descendente de escravos. Isto é, a origem em si já vem duma negatividade. Isso não quer dizer que bugres e descendentes de escravos não possam ter orgulho de suas origens ou que não compreendam a sua diversidade; a questão está exatamente na diferença com que estas origens-cá e outras socialmente minoritárias aparecem quando comparadas às origens europeias.

A representação ainda pende muito para o lado europeu. Enquanto isso, africanos e indígenas são amalgamados nessas grandes categorias: uma que se refere a um continente inteiro, por maior e mais diverso que seja; a outra, a uma categoria criada por europeus que resolveram chamar todo mundo da mesma coisa. Indígenas que, aliás, significa ‘de dentro’ — ou seja, qualquer povo originário de algum lugar lhe será em relação ‘indígeno’ [indo, de dentro, e gens, povo].

O problema não parece ser a migração como deslocamento em si, mas quem se desloca.

Porém, não é sobre isso exatamente que quero escrever. Esse exercício foi só uma ilustração de como ser — para usar um terrível termo muito comum no Rio Grande do Sul — de origem se refere, na verdade, a um grupo de procedências muito pequeno, que, então, são desdobradas e se transformam não só em referências geográficas mas também de comportamento e personalidade: ‘a organização e a eficiência alemãs’ ou ‘um programa de índio’. Da mesma forma que ser ‘de origem’ se refere a algumas delas e não a todas, se pensarmos sobre o atual Brasil, pode-se perceber que o mesmo princípio se aplica a questões de migração. Se, por um lado, o foco da questão das origens é positivo e se refere àquelas europeias, o foco da questão da migração — mais especificamente, da imigração — é negativo e se refere, este também, a um grupo específico de migrantes.

Tudo começou quando li um artigo escrito por Mawuna Remarque Koutonin em que ele indaga ‘por que brancos são expatriados e o resto de nós, imigrantes’, fatalmente concluindo que o peso derrogatório da palavra ‘(i)migrante’ tornou-se indissociável de certos grupos: muçulmanos, africanos, árabes etc. — todos que, de uma forma ou outra, seriam chamados de wogs — um equivalente inglês próximo de ‘bugre’ que, no fim das contas, simplesmente quer dizer ‘não-branco’. Ou seja, o problema não parece ser a migração como deslocamento em si, mas quem se desloca.

Há quatro dias, assisti a um vídeo que mostra as rotas migratórias antigas, em que grupos saíram da África e foram, gradualmente, espalhando-se pelo mundo inteiro. É um tanto irônico, então, que, hoje, perceba-se que uma pessoa seja contra um fenômeno que precede e origina a sua própria existência. Deslocar-se é uma parte intrínseca da humanidade — migrar, em outras palavras, é uma das características que nos une a todos como gente.

Como alguém que se orgulha de suas raízes migratórias pode, então, opor-se à migração?

Só que isso não entra na cabeça de muitas pessoas e o Brasil parece, em geral, estar caminhando na direção da ignorância e da incoerência com relação à sua própria história e à sua própria constituição. O último grande episódio aconteceu quando um gaúcho gravou um vídeo de si ofendendo a um haitiano, empregado de um posto de gasolina em Porto Alegre. O programa de televisão CQC, que, entre derrapadas monumentais, parece estar se reerguendo das cinzas de seu antigo diretor, foi atrás do homem que fez o vídeo. Durante a entrevista, ele declarou veementemente: ‘sou descendente de italianos, portugueses’ e sei lá mais o quê. Num contexto em que ele atacava a entrada de imigrantes no Brasil, tal afirmação soou não só como racista e xenófoba mas também como um atestado de óbito do seu próprio ser no mundo. Como alguém que se orgulha de suas raízes migratórias pode, então, opor-se à migração?

É claro que, em última análise, não se trata de uma oposição à imigração em si. De acordo com dados do Ministério do Trabalho e Emprego, foram concedidos, em 2014, 44.420 autorizações de trabalho temporárias e outras 2.839 autorizações permanentes. Entre ambas categorias de visto de trabalho, os países que figuram no topo das autorizações são: Estados Unidos, Reino Unido, Itália, Espanha, Portugal, França, Alemanha e China. Os dados ainda mostram que, no mesmo ano, foram concedidos vistos permanentes ou residência permanente a 1.891 haitianos. Comparativamente, só de estadunidenses, chegaram 5.841 trabalhadores — três vezes mais do que haitianos. Porém, o problema parecem ser os haitianos que querem sair de um país devastado por conflitos e desastres e não os estadunidenses que, segundo o folclore brasileiro, vivem no paraíso na terra.

Logo chegam os argumentos econômicos: ‘não temos espaço para toda essa gente’. Em primeiro lugar, ‘essa gente’, assim como ‘de origem’, não se refere a todos os imigrantes, mas, em geral, a haitianos, senegaleses, angolanos e muitos outros que — vejam só — não são brancos. Os trabalhadores daqueles oito países do topo da lista vão ao Brasil geralmente através de contratações de grandes empresas ou por projetos de transferência de tecnologia [um termo análogo ao antigo ‘para educar os nativos’]. Já os que fazem parte do grupo que fomenta o terror e o ódio de muita gente são pessoas com poucas qualificações técnicas, que vão desempenhar funções de menor remuneração, funções que, nos jargões dos estudos de migração, os locais não querem desempenhar [quem não conhece um brasileiro que foi lavar pratos no exterior, hein?!].

A resposta é derradeira: não é por preocupação com a economia ou com a cultura nacionais; a preocupação é com as ‘não-origens’ — não querem que o Brasil se ‘denigra’.

Daí vêm duas conclusões. A primeira é que, se formos falar em ameaças à economia e ao mercado de trabalho nacionais, existe uma tendência global, de acordo com a socióloga Saskia Sassen, em que a oferta de empregos geralmente desempenhados por imigrantes é muito menor do que os níveis de desemprego locais sugeriram. Ou seja, se todos os imigrantes fossem substituídos por trabalhadores nacionais, os níveis de desemprego não cairiam significativamente justamente porque a imigração não é um fenômeno puramente econômico ou técnico e, a partir do momento em que imigrantes começam a ocupar certos tipos de empregos, estes-cá se tornam vagas indesejáveis para muita gente. Obviamente, como tanto Sassen quanto muitos outros pesquisadores de migrações constatam, a questão da (i)migração não pode ser resumida a questões absortas de economia e empregabilidade, um argumento que, ademais, no contexto estadunidense, por exemplo, já foi desbancado quando provou-se que cada dez vagas preenchidas por trabalhadores imigrantes geram 12 novos empregos, cuja maioria será preenchida por trabalhadores nacionais. Há ainda, nesse sentido, uma outra triste constatação: outro argumento que se usa muito é o de que os trabalhadores imigrantes (de certas origens) aceitam ganhar menos e puxam os salários para baixo — ou seja, a culpa é do trabalhador que, em busca de emprego, ganha menos e tem menos direitos mas nunca do empregador que preferiu usurpar alguém vulnerável [afinal, business is business, não é mesmo?!].

A segunda conclusão é de que, portanto, o ‘problema’ da imigração tem muito pouco a ver com o argumento explícito da economia e muito mais com um motivo implícito de racismo. Por que nunca se veem vídeos de imigrantes alemães sendo impiedosamente questionados sobre as razões por que estão ali? Como não se fala nas ameaças inevitáveis às culturas locais com a chegada de tantos britânicos? Por que nenhum jornal faz enquetes para saber a ‘opinião pública’ sobre os 5.841 vistos de trabalho que, em total, foram concedidos a cidadãos estadunidenses no ano passado mas se faz um furor sobre os 1.891 haitianos que chegaram ao país no mesmo período? A resposta é derradeira: não é por preocupação com a economia ou com a cultura nacionais; a preocupação é com as ‘não-origens’ — não querem que o Brasil se ‘denigra’.

Enfim, falar de imigração só de um ponto de vista econômico é insuficiente. Nem a economia em si pode ser entendida só de um ponto de vista técnico-matemático. Deslocar-se faz parte da história da humanidade e é uma das características que nos une como espécie tanto por questões biológicas de se poderem identificar traços genéticos comuns entre pessoas que vivem em lugares distantes quanto por questões pragmáticas, isto é, pelo ato de deslocar-se em si por quaisquer razões: emprego, guerras, perseguição ou, simplesmente, um desejo existencial de ir para outro lugar. Opor-se à imigração no contexto específico do Brasil, sendo este um país ainda jovem como tal, é um certificado de ignorância não só pelo fato de desconhecimento mas também pelo fato de justamente negligenciar o passado que, agora, permite que tantos de nós tenhamos certeza ‘das nossas origens’. 

O problema não é a (i)migração mas o (i)migrante, pelo viés de Gianlluca Simi

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