O Brasil de janeiro-fevereiro

crédito original: Gabriel Cayres/Flickr
crédito original: Gabriel Cayres/Flickr (CC)

O corpo de Santiago Andrade nem bem chegara ao Instituto Médico Legal e uma primeira bebericada já ascendia o enorme rombo gástrico do jornalista Brasil, que tomava café da manhã. Da cozinha do apartamento, no condomínio América Latina, ele assistia às primeiras notícias da TV. Era terrível o que tinha acontecido com aquele pobre cinegrafista no Rio de Janeiro. Dos vários jornalistas de Porto Alegre que era amigo no facebook, via inflamar um sentimento de comoção, injustiça, revolta e corporativismo. O jornalista Brasil não podia acreditar.
Cansado, com o corpo obsoleto sentado na cadeira de leitura, dentro da sala de ar-condicionado, o opulento Brasil quase medita em um transe com as pessoas que insistem em passar naquela rua. O sol castiga Porto Alegre com um calorão histórico, os rodoviários completam 15 dias de greve e para Brasil tudo está difícil depois daquela carta da filha do cinegrafista. Retumba na sua cabeça. Como ele queria estar na virada do ano novamente, naquela praia uruguaia, mas, mesmo que relute, o ano da Copa do Mundo já começou. Para Brasil, o sobrepeso de 2013 já havia dado amostras demais sobre a sua periculosidade, imagina na Copa! “Quiiiiçá no muundiaaaal”, falara com voz de narrador ao médico que lhe fizera o diagnóstico.
O Brasil não era tão tosco quando entrou na faculdade. Sonhara apresentar o Jornal Nacional quando o Bonner se aposentasse, antes ainda, quando o Chapelin se aposentasse. Mais aí pensara, meditara, quem sabe o Fantástico, passando da apresentação em pé para um bancada, quadrada, convencional, para disfarçar a silhueta Zeca Camargo. O Brasil sabia que a televisão era cheia de frescura, que ia parecer um dinossauro dentro de uma caixa para as pessoas que o vissem de fora e desde cedo se interessou por jornalismo esportivo. Era faceiro e falador, amigo dos amigos e rapidinho ascendeu na vida profissional, tendo conseguido a incrível tarefa de sair da faculdade empregado, antes de todo mundo. Esse Brasilzão era o queridinho da família, o xodó dos avós, parceria certa pras baladas, só não sabia que não ia vingar no jornalismo esportivo, e que quando visse o anúncio que a próxima Copa seria no Brasil iria ter uma síncope. Seria sua quarta Copa do Mundo sem entrevistar sequer o massagista. Ficou paralisado próximo à mesa de clipagens da assessoria em que trabalhava até que foi ao banheiro e deu uma cagada sem dizer uma única palavra. Todos os seus colegas sabiam que ele estava cagando. Na verdade, ele só estava em depressão, avaliando a textura dos azulejos azuizinhos do banheiro, em depressão, no banheiro da firma. Pensava: eu preciso sair daqui, eu preciso mudar minha vida. Mas era impossível, o destino o sentenciara e daquele dia em diante sua vida se acometeu de publicar um post jornalístico revoltado por semana no facebook. Uma tragédia!
O Brasil tinha muitas curtidas e até compartilhadas no facebook. Era um formador de opinião. Quase uma celebridade do sindicato, dava palestras pras faculdades do interior e tinha uma newsletter com seu nome. Embora soubesse: nunca cobriria uma Copa do Mundo. Eram noticiadas as homenagens dos colegas do cinegrafistas Santiago Andrade, no mesmo lugar onde o rojão o lastimara, quando decidiu escrever o texto que desde já sabia que seria o texto da sua vida. Pensou, pensou, pensou, mas era melhor nem pensar e apenas deixar a sangria correr pelos dedos. Atacou o governo, criminalizou os movimentos sociais, clamou por segurança pública, colocou os PTralhas na jogada – mas também bateu na direita tradicional, pois queria parecer imparcial – para finalmente colocar o Lula, a Dilma, o código florestal, o passe livre, os rodoviários e o Bloco de Lutas dentro daquela panela insossa. O texto era como um esquema tático de treinador do interior, nada dialogava com nada mas tudo dialogava com o principal: tipificar quem usa máscara como terrorista, prender os terroristas e ajudar o povo a acordar e lutar contra a ameaça black bloc. E tinha ainda o Marcelo Freixo! Um texto brutal. A parte mais esclarecedora era o link do G1, “Estagiário de advogado diz que ativista afirmou que homem que acendeu o rojão era ligado ao deputado estadual”.  Estava tudo tão claro para Brasil, depois da baderna, viria um governo anarco socialista. Os guerrilheiros barbudos do Mais Médicos já estavam promovendo as revoluções de base e só falta um Fidel, um Miguel, um Samuel, um líder revolucionário.
O sindicato dos jornalistas curtiu, comentou, compartilhou e repercutiu a morte do cinegrafista. Colocou uma foto dele e em cima o slogan daquela campanha “Sem jornalista não tem informação”, na legenda, algum comentário de pesar em nome da categoria e a carta da filha do cinegrafista. O Brasil reconhecia um paradoxo. Corria a boca miúda que o cinegrafista não tinha diploma, não era jornalista, ele não tinha informação, era um operário da firma. Enfim, àquela altura era tudo que ele precisava. Muitos precisavam ter um Santiago Andrade pra mostrar que tudo estava errado. Alguns usaram sua morte a favor da sua causa. Outros aproveitaram a sua morte para condenar outras ideias e movimentos. A Globo foi direta na ligação com o Freixo. A esta altura, a timeline do jornalista Brasil estava como a gastrite dentro do seu estômago. Aquele texto agradou somente um pessoal do sindicato, ele não recebera nenhum convite de nenhum outro lugar para trocar de emprego e o episódio funcionara como um peido em sua existência. A esse Brasil, agora está lá maldizendo as notícias do Jornal Nacional, o mesmo que sonhou em apresentar, está lá, emplastado no sofá, comendo pipocas. Se o coitado se visse de cima, em um plongée, iria saber que nunca ultrapassaria a imensa vala da mediocridade e que era raso demais para ser crítico.
Janeiro/Fevereiro de 2014.
O Brasil de janeiro-fevereiro, pelo viés de Calvin Furtado.
Imagem de capa: Gabriel Cayres/Flickr (CC)
Leia também os demais textos da série clicando aqui.

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