Apresentando um brasileiro

Monumento em homenagem a Paulo Freire (Esplanada dos Ministérios, Brasília). Foto de Ricardo Romanoff

Era uma segunda-feira como outras tantas ao longo dos últimos noventa e três anos. No entardecer nordestino da bela e eterna Recife, no dia 19 de setembro de 1921, nascia PAULO REGLUS NEVES FREIRE. Criança exigente e observadora. Deu seus primeiros passos apenas quando tinha firmeza para uma boa corrida.
Aprendeu a ser curioso enquanto lia seu mundo infantil. Aprendeu o diálogo e a tolerância crescendo com o amor de sua mãe católica, D. Edeltrudes, e com o afeto de seu pai espírita, S. Joaquim. O prazer de ler e escrever, experimentou antes de ir à escola; à sombra das mangueiras, no quintal de sua casa, riscando o chão com palavras do seu cotidiano.
Aos 6 anos, na aula de sua primeira professora – Eunice -, Paulo estabelece uma grande parceria pedagógica. Menino curioso, adorava formar sentenças, onde usava as palavras que já conhecia para chegar a novas variantes e combinações lingüísticas. Anos depois, já exilado pelos militares, ainda se corresponderia com sua primeira professora.
Em 1929, sua sina nordestina seria marcada pela grave crise econômica. Em um Brasil de base econômica essencialmente agro-exportadora os efeitos da crise mundial foram bruscos e intensos. Paulo, aos 8 anos, experimenta a fome e o empobrecimento de sua família. Os FREIRE mudam-se para Jaboatão, cidadezinha nas vizinhanças da capital pernambucana. Lá, Paulo conhece a dor da perda do pai aos 13 anos e a angústia das privações materiais.
Mas é também lá que Paulo sente a alegria de jogar futebol, nadar no Rio Jaboatão, conhecer as gentes de sua terra, entender-lhes a vida e a cultura. É lá que apaixona-se pelo estudo da sintaxe popular e erudita da Língua Portuguesa. Jaboatão foi um espaço-tempo de aprendizagens, do equilíbrio entre o ter e o não-ter, o ser e o não-ser, o poder e o não-poder, o querer e o não-querer. Assim forjou-se Freire na disciplina da esperança.
O jovem Paulo, rapaz magro e anguloso, ingressa ao 16 anos no Colégio Oswaldo Cruz para cursar o ginásio. Nesta idade os meninos que tinham dinheiro já iam para a universidade. Paulo teve sua vida escolar marcada pelas dores da fome e da pobreza e só continuou estudando devido à generosidade do diretor do colégio que concedeu-lhe uma bolsa integral.
Aos 22 anos de idade ingressa na secular Faculdade de Direito do Recife, único curso na área de ciências humanas existente à época em Pernambuco. Em 1944, casa-se com Elza, educadora primária, com quem teve cinco filhos: Mª Madalena, Mª Cristina, Mª de Fátima, Joaquim e Lutgardes.
Torna-se professor de Língua Portuguesa na escola que o acolheu na adolescência. Abandona a advocacia quando precisa executar a dívida de um jovem dentista que só poderia pagá-lo entregando seu material de trabalho, única fonte de sustento. Neste momento Paulo confirma sua grande vocação para a coerência entre seu pensamento e sua vida.
Convidado para dirigir o Setor de Educação e Cultura do SESI em 1947, aprofunda sua reflexão sobre a sociedade brasileira e sua crítica ao modelo educativo tradicional, mais tarde chamado de “bancário” em função de sua relação estanque e não-dialógica com o conhecimento. Com a experiência dos Círculos de Cultura no SESI, Paulo sistematiza o que sua experiência vivida já lhe mostrara: a escola tradicional não respeita as classes populares.

Em 1959, já Doutor em Filosofia e História da Educação, é admitido como professor da Universidade do Recife, onde passa a viver alguns conflitos com a rigidez dogmática do espaço acadêmico.

Apaixonado pelo povo e pela cultura do Brasil, não podia compactuar com o analfabetismo de quase metade da população do nordeste e lançou-se em um projeto visionário de alfabetização de jovens e adultos trabalhadores. Na distante cidade de Angicos, no Rio Grande do Norte, em 1963, Paulo teve a ousadia de alfabetizar 300 agricultores e agricultoras em apenas 40 horas!
Com uma concepção de alfabetização que partia dos saberes prévios e de uma análise coletiva da cultura e dos problemas locais, em Angicos materializou-se o Método Paulo Freire. Foi a articulação concreta de uma teoria do conhecimento visionária e emancipadora.
A repercussão da experiência de Angicos rendeu um convite pelo então Ministro da Educação do Governo JANGO, para que Paulo implantasse um programa de alfabetização para alcançar 5 milhões de brasileiros.
Sentindo-se ameaçadas, as classes dominantes acabaram com o programa em apenas duas semanas após o golpe militar de 1º de abril (em 14 de abril de 1964 o programa foi oficialmente extinto pelo Decreto 53.886).
Com uma passagem pela cadeia militar em Olinda e pressentindo o perigo que por cerca de 20 anos rondou aqueles e aquelas que amavam seu país, Paulo parte para o exílio em direção à Bolívia. Passa pelo Chile, onde escreve sua grande obra “Pedagogia do Oprimido” em 1968. Vive também nos EUA e Suíça. Torna-se colaborador e consultor da UNESCO e do Conselho Mundial de Igrejas. Andarilhou pelo mundo. Visitou os cinco continentes semeando a utopia e a convicção de que a mudança é possível.

Foto de Pedro Jiménez Beatríz Rodríguez

 
Foi professor da Universidade de Genebra. Recebeu mais de 43 títulos de Doutor Honoris Causa. Colaborou profundamente com o processo de descolonização da África.
Ironicamente, ao tentar calar Paulo Freire, aqueles que o expulsaram do Brasil acabaram por amplificar sua voz. De uma experiência nordestina e brasileira, passou a uma experiência latino-americana, norte-americana, européia, africana, mundial. Paulo se tornou cidadão do mundo não apenas porque visitou boa parte deste planeta, mas também porque sua vida foi um testemunho de intenso amor às pessoas, à liberdade, à natureza e à luta por uma sociedade mais justa e menos perversa.
Ao voltar do exílio, em agosto de 1979, começa – como ele dizia – a “re-aprender” o Brasil. Dedica-se ao esforço pela redemocratização do país. Funda com tantos outros sonhadores e sonhadoras do seu tempo o Partido dos Trabalhadores. Leciona na PUC-SP e na UNICAMP. Fica viúvo em 1986. Casa-se novamente em agosto de 1988 com Ana Maria Araújo Freire.
Participa como Secretário de Educação da cidade de São Paulo durante o governo popular de Luíza Erundina, onde constituiu o MOVA-SP, Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos.
Autor de mais de duas dezenas de importantes livros, recebeu prêmios e homenagens às centenas, espalhados pelos quatro cantos do mundo. Sua vida e obra são referência para estudos e instituições em mais de noventa países.
Este cidadão nos deixou em 2 de maio de 1997. Lá se vão quase duas décadas, mas seu pensamento continua atual e vigoroso. A teoria da educação de base freireana não continua válida apenas porque ainda há opressão, mas também porque responde à necessidades da educação atual. Responde à necessidade de promover um diálogo entre os diferentes saberes e principalmente a necessidade de construir uma escola que acalente o sonho das gentes que vivem e convivem com seus projetos de vida, querendo mais democracia, querendo mais justiça, querendo mais solidariedade. Enfim, é para essa gente, queredora de tantas coisas, que o pensamento, a vida e a obra de Paulo freire faz sentido.
Apresentando um brasileiro, pelo viés de Alcir Martins

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