A exceção e a regra III: A realidade da prisão perpétua no Brasil

A Exceção e a Regra III - Edição sobre imagem divulgação (Amercian Horror Story)

“Prisão perpétua à brasileira” foi a expressão encontrada pelos repórteres da revista Istoé, na edição de 29 de abril 2011, para designar a situação do jovem Roberto Aparecido Alves Cardoso, conhecido nacionalmente como Champinha. Nenhuma seria mais precisa. Aos 16 anos, no ano de 2004, ao então adolescente foi aplicada medida de internação em razão da representação, julgada procedente, pelos homicídios de Felipe Caffé e Liana Friedenbach, em novembro de 2003, em Embu-Guaçu, na grande São Paulo. Champinha cumpriu os três anos de internação e, antes que o prazo terminasse, foi determinada a aplicação de uma medida protetiva, que garantiu sua privação de liberdade até completar 21 anos. Às vésperas de seu aniversário de 21 anos, contudo, ele foi interditado civilmente, através de pedido do Ministério Público, e internado compulsoriamente na Unidade Experimental de Saúde, como o seu primeiro interno. Desde então, sem que tenha cometido crime e já cumprida a medida socioeducativa pelos fatos anteriores, o adolescente permanece privado de liberdade há mais de dez anos.
Vários foram os Habeas Corpus impetrados para buscar a liberdade do jovem, e todos foram negados. Em dezembro de 2013 o Superior Tribunal de Justiça decidiu novamente negar a liberdade de ir e vir a Champinha. O fundamento da decisão é a suposta periculosidade do adolescente, derivada da gravidade do ato cometido onze anos atrás. A periculosidade seria como um prognóstico, no qual, ao examinar o passado do indivíduo, seria possível prever o seu futuro. Em razão de sua total impossibilidade prática, já que “bolas de cristal” não existem, o termo periculosidade foi abandonado na psicologia, sendo, contudo, reiteradamente utilizado em decisões judiciais. O fato de nenhum dos laudos psiquiátricos recomendarem a manutenção da internação, ou mesmo usarem a palavra “periculosidade”, não foi considerada pelos magistrados, garantindo que, como anormal, Champinha permanecesse privado de sua liberdade. O detalhe é que o jovem não passa por qualquer tratamento de saúde, não tem sido reavaliado com periodicidade, conforme determina a lei, e em todas as situações em que sua defesa ingressa com o habeas corpus, a decisão se baseia na gravidade do fato. Sendo assim, ele permanecerá para sempre enclausurado, totalmente contra as políticas de saúde mental inclusivas.
Para se rotular alguém ou alguma coisa como anormal, é necessário que em um determinado contexto, cronológico e espacial, um conjunto de critérios permita estabelecer o que está dentro da “normalidade”. Além disso, é necessário que uma pessoa ou grupo, no caso concreto, tenha o poder de definir que uma pessoa ou situação é anormal de acordo com tais critérios.

Imagem da internet – fonte desconhecida

A principal conclusão desse raciocínio tão simples é que a distinção entre o normal e o patológico depende de um processo de definição duplo, que é sempre arbitrário: primeiro, a seleção de critérios abstratos que determinam a patologia; segundo, a seleção de situações ou pessoas de acordo com tais critérios.
Diferentemente das patologias que biologicamente acarretam desordens no normal funcionamento do corpo humano, as patologias provenientes de algum transtorno mental não possuem formas objetivas de definição. Enquanto uma doença física crônica, como o diabete, será diagnosticada a partir de sintomas claros e exames clínicos e laboratoriais, uma doença mental, como a depressão, dependerá também de sintomas que, contudo, podem ser considerados normais ou patológicos segundo o olhar de um indivíduo que tem o poder de rotular. No caso, o médico.
Quem nos diz que certos comportamentos humanos podem configurar sintomas de um transtorno mental são, principalmente, a Sociedade Americana de Psiquiatria, no seu Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM), e a Organização Mundial de Saúde, na sua Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID). A cada edição de ambas as bíblias de construção de loucos, aplaudidas e financiadas pela indústria farmacêuticas, novos distúrbios psicológicos são definidos e descritos.
Qualquer pessoa que leia tais obras de maneira desavisada conclui que é maluco de pedra. Na última DSM são mais de 300 distúrbios mentais catalogados, nas quais facilmente nos enquadramos, como relata, por exemplo, Eliane Brum no texto intitulado Acordei doente mental, “Transtorno disfórico pré-menstrual, que consiste numa TPM mais severa. culpada. Qualquer um que convive comigo está agora autorizado a me chamar de louca nas duas semanas anteriores à menstruação. remédio para mim”. Na semana passada, o jornal El País publicou entrevista com o médico Allen Frances, que dirigiu durante anos o DSM, no qual ele próprio faz um mea culpa e afirma: “Criamos um sistema de diagnóstico que transforma problemas cotidianos e normais da vida em transtornos mentais”.
Tudo isso para dizer que a rotulação de pessoas como anormais tem historicamente servido não ao seu tratamento de saúde, mas ao seu controle. O surgimento e a permanência dos manicômios é um exemplo fundamental para entendermos como lidamos com o diferente em nossa sociedade. Dizer que o diferente, além de errado, é perigoso, é uma forma extremamente eficiente de legitimar o seu enclausuramento e infligir sofrimento por toda a vida.
A década de 1970 testemunhou uma mudança radical no olhar sobre o sofrimento psíquico. O movimento antimanicomial, baseado no caráter socialmente construído da “normalidade” e “anormalidade”, garantiu que as pessoas rotuladas como doentes mentais pudessem ser vistas como humanas, e reconhecidas em sua diferença. Um dos principais objetivos desse movimento foi o de abolir a cultura da internação. Não foram poucas as denúncias dirigidas às instituições psiquiátricas, em razão das péssimas condições de tratamento dos internos, que passam pela utilização de verdadeiras sessões de tortura com pretextos terapêuticos.
“Fecharei o livro em vocês”. Charge de Jayna Pavlin https://twitter.com/JaynaPavlinArt

A Lei da reforma psiquiátrica, de 2001, introduziu tais conquistas no Brasil, relegando ao caráter de subsidiária e transitória a privação de liberdade das pessoas em sofrimento psíquico. Contudo, se, por um lado, boa parte dos psicólogos e psiquiatras aderiram fortemente a esses novos ares, os juristas não conseguiram ainda alcançar tal resultado. Hoje, existem muitas pessoas internadas em instituições psiquiátricas no Brasil. No caso de um indivíduo rotulado como doente mental praticar um crime, ele não deve ser condenado pelo sistema de justiça criminal, mas, simultaneamente a sua absolvição, aplica o juiz uma medida de segurança por tempo indeterminado, o que muitas vezes é sinônimo de prisão perpétua.
A remanicomialização, um retrocesso protagonizado pelo Judiciário no tratamento de pessoas em sofrimento psíquico no Brasil, é uma afronta à lei de reforma psiquiátrica, e à Constituição Federal. Mais uma exceção à regra: pela lei, a liberdade das pessoas em sofrimento psíquico é a regra, sendo a internação excepcional. No que depender do Judiciário, seja no campo da infância e juventude, seja na esfera adulta, permaneceremos enjaulando nossos familiares e amigos, sob o pretexto de uma suposta anormalidade.
Como nota Szasz, ao tratar sobre a “fabricação da loucura”, comparando-a à fabricação de bruxas durante a inquisição, “sempre que os homens desejam degradar, explorar, oprimir ou matar o Outro, declaram que este não é “realmente” humano. Isso tem sido um aspecto característico de conquistas, escravizações e assassinatos em massa, em toda a história. […] Afinal, se a vítima não é integralmente humana, se não é uma pessoa, disso decorre que, tal como um gato, um cão ou qualquer outro ser não-humano, não pode aspirar aos direitos enumerados na Declaração dos Direitos do Homem ou na Constituição”.
É fácil, portanto, garantir que alguém seja preso pela vida toda, ou mesmo que queime na fogueira: basta desumanizá-lo, através da sua rotulação como louco e perigoso.
Leia também: A Exceção e a Regra I: Prólogo.
A Exceção e a Regra II: a ressureição de Bakunin e Lombroso
Série Completa A Exceção e a Regra.
A exceção e a regra III: A realidade da prisão perpétua no Brasil, pelo viés da colaboradora Marília De Nardin Budó*
*Marília é formada nos cursos de Comunicação Social – Jornalismo e Direito na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), com especialização em Pensamento Político Brasileiro na mesma instituição. É Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e Doutora em Direito na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Professora do mestrado em Direito da Faculdade Meridional (IMED) e do curso de Direito no Centro Universitário Franciscano (Unifra). Autora do livro “Mídia e Controle Social: da construção da criminalidade dos movimentos sociais à reprodução da violência estrutural”.
SZASZ, Thomas S. A fabricação da loucura: um estudo comparativo entre a Inquisição e o movimento de saúde mental. Rio de Janeiro: Zahar, 1971. p. 327.
 

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