Ebola: Inoculando pânico

 

Organização das Nações Unidas (via Unicef) e entidades parceiras distribuem informações sobre o ebola e sobre as formas para evitar a propagação do vírus. Atividade é realizada nas ruas de Conacri, capital da Guiné, no continente africano. Foto Timothy La Rose
Organização das Nações Unidas (via Unicef) e entidades parceiras distribuem informações sobre o ebola e sobre as formas para evitar a propagação do vírus. Atividade é realizada nas ruas de Conacri, capital da Guiné, no continente africano. Foto Timothy La Rose

A cena deve ser mesmo aterrorizante: o colágeno que liga todos os tecidos, quase todos os músculos e órgãos vai se transformando numa substância (mais) gelatinosa e perdendo sua densidade característica de maneira que as hemorragias múltiplas se acumulam. A língua se desfaz, escorrendo pela traqueia também malemolente. O sangue é expelido por todo orifício ou poro da pele e a morte chega como que por derretimento, esmaecimento, desfiguração quase total do fenótipo humano acompanhada da destruição do cérebro e de convulsões epilépticas.
Como os primeiros sintomas são menos agressivos ou específicos, antes de se chegar ao estágio de definhamento causado pelo ebola, qualquer um de nós, com um simples resfriado ou alguma indisposição intestinal apresentando febres, diarréias ou cefaléias, pode ser suspeito de ter sido infectado com o vírus ebola.
E o termo “suspeito” no caso  não é acidental, nem um lapso da minha parte. A doença que parece estar vivendo um novo ciclo de expansão pandêmica é uma formulação semiótica – tanto quanto biológica – perfeita pelo revigoramento de antigas barreiras. Em particular na alarmada europa, atravessada por distintas dimensões de crise política e econômica, o ressurgimento do ebola serve como “justo e legítimo” motivo para que as barreiras sanitárias cada vez imponham maiores restrições à entrada de populações vindas do sul, do continente africano.

Assim como também tem funcionado como estratégia de disseminação do pânico, do terror e do chauvinismo que segrega e afasta as pessoas.

Se ao elemento árabe se combate fazendo recair-lhe a pecha de terrorista ou fundamentalista, aos africanos, coube agora, receber a pecha de “contagiosos”. Se as autoridades europeias tem sido obrigadas a enfrentar – pois consideram isso um problema per si, sem contingenciar ou contextualizar – a forte presença de imigrantes da África e do Oriente Médio facilita-se o caminho ao criar um inimigo que possa unificar aquilo que costumamos chamar de opinião pública em torno de formulações emanadas daquela que convencionou-se chamar de comunidade política.
Não chega a soar estranho que, logo após a identificação de um foco considerado epidêmico na África, a Espanha e sua monarquia que, no discurso, apontavam para a qualidade de seus sistema de saúde e sanidade tenha registrado um caso de ebola (nas estatísticas da OMS a Espanha conta, no surto atual com 1 caso e nenhuma morte até o momento).
Duas coisas chamam a atenção no caso espanhol: primeiramente que a pessoa infectada tem sido tratada como culpada pela própria infecção. Trata-se da auxiliar de enfermagem – condição laboral sempre enfatizada para distanciar o desleixo ou negligência assepticamente distante da classe médica – que teria tocado (ou sido tocada)  indevidamente em pacientes infectados.
 

Teresa Romero, a la que las instituciones del PP madrileño e incluso los médicos dentro de toda sospecha, acusan de cosas tan singulares como falta de rigor y ser el agente que ha provocado lo que ninguno de sus superiores habría previsto. Un contagio. Un médico, saltándose el decaído juramento hipocrático, sugirió que quizá “hubiera habido” el tacto de un dedo sobre la cara de la “auxiliar de enfermería”. Atención siempre a la categoría de clase: auxiliar de enfermería. El escalón más bajo del trato al paciente, el menos protegido, el que se puede comer todos los marrones de los caballeros titulados. ¡Un dedo en la cara!, precedido de un imperfecto de subjuntivo, “quizá hubiera habido”, un tiempo de verbo que quizá ya no se dé en las escuelas pero que exigiría una explicación sobre la ambigüedad perversa que entraña. Garantizo que ese galeno llegará lejos en las instituciones sanitarias; tiene madera de cínico y esa bonhomía del supuesto científico, que parece que no le da importancia pero que la ha señalado no como víctima sino como autoinculpada.
(leia mais aqui)
 

Em segundo lugar, o toque de recolher proposto como medida de sanidade implícita nas orientações de evitar contato com estranhos surge no exato momento em que as mobilizações de massas voltam a encher la calles e plazas. Sobretudo a questão catalã tem colocado uma cunha no governo de Madrid, levando milhões (milhões mesmo!) às ruas. (Talvez seja apenas uma coincidência ou paranoia minha!)
No Brasil ocorre algo semelhante: a mídia reverberou toda sua preocupação com a saúde brasileira. Personificada na seriedade e imparcialidade (sic) dXs âncoras dos telejornais, já houve quem atribuiu a entrada do ebola – que até agora não tem nenhum caso confirmado no Brasil – aos haitianos. No único caso que sequer chegou a confirmar-se, o telejornalismo tratava do “que pode ser o primeiro caso de ebola no país”, dando a impressão necessária de que ao primeiro – assim usando um ordinal mesmo – inapelavelmente se seguiriam outros e outros. O périplo de Cascável ao Rio de Janeiro para onde levaram o “homem de 47 anos, que chegou ao Brasil em 19 de setembro e tem sua identidade mantida em segredo” foi acompanhado não sem os relatos detalhados de por onde ele havia passado dando a impressão que teria sido iniciada uma contaminação de grandeza continental, já que ele passou pela Tríplice Fronteira e dali sabemos que há coisas que circulam em muitas direções.
Além disso, a câmera do posto de saúde onde o paciente foi buscar ajuda médica, forneceu as imagens que mostravam que, no tempo de espera pelo atendimento, muitas pessoas circularam no mesmo lugar, alguns sentaram próximos, levantaram-se andaram. Aterrorizante este clima, não?
A sequência dos exames comprovou – com direito à contraprova – que não se tratava de ebola, no entanto, se o ebola não foi identificado no Brasil, o pânico sim já foi inoculado competentemente – e não sem menores influências ou efeitos isso ocorre em meio a um segundo turno presidencial altamente polarizado.
A parte que seria engraçada, se não fosse trágica, é a desproporção com que tratam o “surto” do ebola. De dezembro de 2013 (quando verificou-se novamente  a presença do vírus na Guiné) até a semana passada, registraram-se cerca de NOVE MIL casos (8998) com cerca de óbito em 50% dos casos (4497), ao passo que anualmente morrem mais de 2 milhões de pessoas com malária, outros 2 milhões com diarreia, além de mais 10 milhões que morrem por enfermidades curáveis – como gripes, sem incluir a H1N1 que também tem baixa densidade no sue índice de mortalidade.
Não se trata de negar a existência biológica de tais doenças, mas entender a dimensão performática que assumem quando articuladas aos discursos políticos e midiáticos, levando a construção de hábitos, costumes, medos e comportamentos controlados por quem controla a informação e define a modalização com a qual ela é divulgada.
O vírus ebola, descoberto há quase quatro décadas – praticamente uma década antes da identificação do HIV que ocorreu em 1983 – ainda hoje não recebido o mesmo tratamento quanto a investimentos dos laboratórios e da indústria farmacológica e nem a mesma atenção da comunidade científica quanto à pesquisas. Por que será?
Batizado lá pelas 3 ou 4 horas da manhã quando a equipe médica “comemorava e brindava” o isolamento e identificação do vírus, recebeu o nome do rio que acreditavam ser o mais próximo da comunidade onde identificou-se o primeiro contágio. Posteriormente descobriram que havia outro rio mais próximo, mas consideraram Ebola um nome bonito e que evitaria a estigmatização da comunidade de Yambuku, no atual território do Zaire.
O ebola foi descoberto em 1976 e todos os seus surtos já identificados partiram de comunidades na África quem tem em comum extremas condições de pobreza material-econômica. Talvez isso ajude a entender porque a assimetria no aporte de esforço e recurso para estudar e combater o ebola e doenças como a AIDS. Se por um lado ebola segue sendo “doença de pobre” ou de um que outro desafortunado; a AIDS atingiu todas as classes sociais.
Não quero aqui hierarquizar ou criminalizar o combate a uma doença em detrimento de outra, apenas mostrar que, mesmo que seja inadimplente de muitas questões, definitivamente não foi o PT quem inventou a luta de classes. Ela passa pela vértebra da nossa sociedade.
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P.S.: Creio que vale a pena conhecer (ou rever) a Doutrina do Choque a e concepção de pânico moral.
 
Inoculando pânico, pelo viés de Alcir Martins

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