Notas sobre cibercidadania

 

Manifestação em prol do Marco Civil da Internet durante a Campus Party de 2013. Foto: Manuela d’Avila/CC BY 4.0.

A tentação por falar das eleições que logo se findam – e que para os cargos proporcionais, encerraram-se no dia 05 de outubro – é sempre grande diante dos intensos debates que se desenrolam. Entretanto, em parte pelo cansaço diante dos projetos que se apresentam no segundo turno, em parte por cautela diante da complexidade do pleito, fujo um pouco deste enfoque.
Na coluna deste mês, proponho-me a tecer algumas considerações sobre a ideia de cidadania no contexto de uma sociedade (de sociedades) que cada vez mais se digitaliza. Tenho perseguido os temas da política e democracia desde que comecei a publicar aqui no Viés em 2014. São muitas as questões que inquietam.
Partindo da noção de cibercultura proposta por André Lemos, como “a forma sociocultural que emerge da relação simbiótica entre a sociedade, a cultura e as novas tecnologias de base microeletrônica que surgiram com a convergência das telecomunicações com a informática na década de 70”, podemos resgatar algumas ideias sobre cidadania na internet.
Uma mais simples e usual trata da conquista de direitos (e respectivos deveres) para a utilização da internet e suas múltiplas formas de interação. De online banking às redes sociais e jogos de realidade virtual. Envolve privacidade, algum alfabetismo para a navegação (aquele tipo de usuário que Lucia Santaella chamou de leitor imersivo), anonimato ou ausência dele, coleta de dados, diálogos, utilização e exposição de imagem, etc.
Uma concepção mais complexa sobre cidadania digital refere-se à constituição de formas de atuação política, no espaço digital (“cibercidades”), que reconfiguram a política tradicional. As eleições deste ano demonstram claramente a centralidade que as redes sociais e outros fóruns na internet adquiriram na disputa discursiva e miditática. Não necessariamente nos votos, embora seja presumível que incida sobre eles.
Apropriação de memes e bordões de personalidades, criação de memes no mesmo instante em que os debates televisivos ocorrem, produção de mensagens visuais e textuais curtas e específicas para cada tipo de rede – diálogo breve no Twitter, imagens e vídeos no Facebook, fotos de bastidores no Instagram -, além de ferramentas de personalização e adesão dos eleitores a seus candidatos. São esses alguns exemplos de usos e reconfigurações das formas de interação e diálogo (tradicionais) no ambiente digital.
Interações via Twitter durante manifestações espanholas (#12M) em 2012. Foto: Gephi/blog do Malini

Este cenário é difuso e tem potencial enganoso numa primeira visada. O possível erro não está com os fatos, mas no diagnóstico. A faixa do eleitorado que mais frequenta a internet, sobretudo as redes sociais, é a mais jovem. Segundo a “Pesquisa Brasileira de Mídia 2014: hábitos de consumo de mídia pela população brasileira”, 77% dos jovens com menos de 25 anos têm contato com a internet uma vez por semana ao menos. Quase metade (48%) acessa todos os dias. Na faixa etária seguinte (26-35), 62% acessam uma vez na semana pelo menos. Só que o eleitorado mais jovem (entre 16 e 24 anos) representa 21,5 milhões de eleitores. Considerando-se que 22% nunca acessam a internet, o universo reduz-se para 16,7 milhões; menor que o eleitorado entre 60 e 79 anos (quase 20,5 milhões). Além disso, segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), caiu o percentual de jovens entre 16 e 18 anos (voto facultativo) no pleito de 2014 em comparação com o de 2010.
Um dado interessante da pesquisa citada é o seguinte: “de imediato, é possível destacar o peso que as redes sociais – em especial o Facebook – têm nos hábitos de uso da internet no Brasil: 68,5% das citações referentes ao período de 2ª a 6ª e 70,8% das citações referentes aos finais de semana apontam as redes sociais como os sites mais acessados pelos entrevistados […]”. Associando este dado com o anterior, é fácil presumir que a maior parte dos jovens que acessam a internet utilizam redes sociais como o Facebook.
Do universo de 142 milhões de eleitores em 2014, menos de 17 milhões são de jovens aptos a votar. Entretanto, 48% da população do país (em torno de 96 milhões de pessoas) acessa a internet pelo menos uma vez ao dia. Fazendo alguns descontos, este número deve representar mais da metade do eleitorado. Continua sendo um cenário difuso, pois internet é diferente de redes sociais, e acesso é diferente de frequência de uso e mesmo “formas de uso”.
Posto um pouco do cenário, creio que o diagnóstico mais adequado é o que leva em consideração o poder de agendamento (ou contra-agendamento) que as redes sociais têm produzido no jornalismo tradicional, especialmente no televisivo. E aqui não é de se menosprezar o dado de que “em geral, a maior parte dos brasileiros assiste televisão todos os dias da semana (65%)”. Essa taxa mantém-se estável entre os jovens, embora seja a menor dentre os grupos etários (61%). Com isso quero dizer que aquilo que reverba nas redes sociais tende a ser tematizado pelo telejornalismo e, em menos escala, pelos jornais impressos. Para as candidaturas, essa é uma estratégia importante, como o aumento de 100% dos votos na candidatura diminuta da presidenciável Luciana Genro (PSOL) ilustra bem — registre-se que a votação de Levy Fidelix, impulsionada pela sua repentina aparição em primeiro plano nos últimos dois debates televisivos, aumentou em mais de 700%.
Cibercidadania, entretanto, não se resume a isso. Reconfigurar os modos de se fazer política por meio das instituições representativas clássicas implica potencializar as ferramentas gestadas no meio digital. Iniciativas como Transparência Brasil, #VoteLGBT, Truco (da Agência Pública) e o MCCE (Lei Ficha Limpa) são exemplos disso. Por outro lado, as expectativas mais otimistas do começo do século ainda não se concretizaram: voto direto digital, plebiscitos “em tempo real” pela internet, fiscalização completa da atuação dos gestores públicos, etc. Têm esbarrado na complexidade dos usos das redes sociais, na polifonia discursiva, em que atores políticos tradicionais também interagem na internet, no baixo alfabetismo digital e, sobretudo, no acesso: 53% dos brasileiros nunca acessam a internet.
André Lemos, num texto do começo dos anos 2000 – Cibercultura: alguns pontos para compreender a nossa época – aponta três leis da cibercultura: reconfiguração; liberação do polo emissor; e conectividade generalizada. A primeira diz respeito à reconfiguração das práticas e usos de outros meios de comunicação, ou seja, não há uma substituição com o advento da internet. Isso significa, reforçando meu ponto sobre alfabetismo digital, que o simples acesso à internet não delineia nenhuma mudança específica na relação com a política, o voto e a cultura política em geral; entretanto, potencializa ao menos.
Essa potencialidade tem a ver com a segunda lei: a liberação do polo emissor é, sem dúvida, o aspecto mais emblemático da internet. Muitas pessoas, muitas vozes, muitas formas de manifestação, expressão e interação. Isso não significa que as relações de poder estejam neutralizadas, nem que não haja hierarquias na vocalização e reprodução de certos discursos. Significa, na verdade, que a produção de ideias e discursos descentraliza-se: em fóruns, listas fechadas, grupos (virtuais) de interesse, canais audiovisuais, jornais online, etc. Tal característica, sem dúvida, pode influenciar numa reconfiguração mais produtiva dos usos da internet em relação à política.
Por fim, a conectividade generalizada trata da “transformação do mundo em internet”. Indivíduos conectados a indivíduos, estes a máquinas, e estas a outras máquinas. Assim, todas e todos conectados a todo o instante, de forma máxima. Essa é uma característica que parece avançar paulatinamente – com os celulares cada vez mais convergentes, e experiências como o Google Glass -, e não é simples projetar seus benefícios e malefícios na interação cotidiana. Uma pergunta-fecho propositiva: que tal um aplicativo que avisa, minutos antes da ocorrência, que o candidato que você elegeu vai votar em tal projeto com o qual você concorda [ou discorda] lá na Câmara dos Deputados? Se mais que isso, ele catalogar todas as votações e manifestações do parlamentar que você elegeu e te lembrar de ver o relatório completo [de preferência em formato audiovisual] daqui a 4 anos? Temos experiências desta ordem já, mas que não exploram bem a conectividade total, muito menos com linguagens menos densas que a textual.
Esses são, como disse, alguns apontamentos. A cibercultura significa um novo tipo de produção sociocultural, com configurações que ainda são difusas e não generalizáveis. Há um hiato entre as experiências digitais de metade da população brasileiras e as não experiências de outra metade. Tal hiato tem contornos de renda, etnia, idade e região. Não é possível, portanto, traçar um cenário definitivo quanto às implicações políticas desta(s) nova(s) sociabilidade(s) pela internet. Apenas identificar caminhos e pequenos padrões que vão se desenhando. O que sai no Twitter hoje estará no telejornal da noite. logo
NOTAS SOBRE CIBERCIDADANIA, pelo viés do colunista Luiz Henrique Coletto.
Indicações:
[1] André Lemos (2003). Cibercultura: alguns pontos para compreender a nossa época.
[2] Presidência da República (2014). Pesquisa brasileira de mídia 2014: hábitos de consumo de mídia pela população brasileira.
[3] Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Estatísticas Eleitorais 2014.
[4] Tomás Patrocínio (20008). Para uma genealogia da cidadania digital.
[5] Ricardo Nicola (2007). Cibercidadania na República Tecnológica: contribuições info-inclusivas dos novos paradigmas transculturais canadenses.

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