Nada de novo debaixo do sol: velhos e novos pretextos para o encarceramento da juventude pobre no Brasil

modernizar
verbo
1.
transitivo direto e pronominal
tornar(-se) moderno, acompanhando
a evolução e as tendências
do mundo atual.
2.
transitivo direto e pronominal
efetuar mudanças em ou mudar,
substituindo-se sistemas,
métodos, equipamentos etc.
antigos por outros modernos.

Arte: revista o Viés.

O argumento que mais tem pautado os defensores do incremento da punição de menores de 18 anos é a necessidade de modernização do Código Penal e do Estatuto da Criança e do Adolescente. São duas as propostas principais: a de redução da maioridade penal e a de aumento do prazo de internação. No primeiro caso, adolescentes de 12, 14, 16 ou 17 anos, dependendo da proposta, poderiam ser responsabilizados criminalmente como adultos. Na segunda, a maioridade seguiria sendo aos 18 anos, mas, ao invés do limite máximo de três anos, a medida de internação poderia ter o prazo elevado para 5, 6, 8, 10 anos, ou até por período indeterminado, dependendo da proposta.
Dizem os partidários da primeira proposta que o adolescente de hoje não é o mesmo de 70 anos atrás – o código é de 1940. “A liberdade de imprensa, a ausência de censura prévia, a liberação sexual, a emancipação e independência dos filhos cada vez mais prematura …”, todas essas constatações seriam o mote para a responsabilização criminal antecipada segundo a justificativa da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 171 de 1993.
Em conjunto com a PEC 171 tramitam outras 38 propostas, mais ou menos com a mesma argumentação. Além dela, 25 pretendem a redução da idade penal para 12, 14, 16 ou 17 anos, mantendo o critério biológico. As 13 demais pretendem a adoção do critério biopsicológico, permitindo, em alguns casos, que menores de 18 anos possam ser responsabilizados criminalmente dependendo do crime cometido e/ou de um laudo elaborado por uma junta técnica atestando o discernimento do adolescente.
Já os defensores da segunda proposta se dividem: alguns argumentam que é necessário aumentar a punição porque os adolescentes não são responsabilizados proporcionalmente à gravidade dos atos infracionais que cometem; outros afirmam que será uma forma de garantir que o Estado tenha mais tempo para reeducá-los. Todos eles concordam que esta seria uma forma de modernizar o Estatuto.
Há, contudo, um ponto dessas propostas sobre o qual não se costuma refletir. E é a própria história que irá refutá-los (veja, ao final do texto, Linha do Tempo sobre o encarceramento de menores no país).
1830 é o ano da publicação do primeiro código penal brasileiro. Nele, era considerada criminalmente responsável a pessoa a partir dos 14 anos de idade. Porém, se a criança com menos de 14 anos praticasse ato definido como crime, poderia ser também responsabilizada e enviada a uma casa de correção por tempo indeterminado, desde que não ultrapassasse os dezessete anos. O critério era o do discernimento. Ou seja, a partir de um exame não detalhado pela lei, o juiz decidiria se a criança poderia ou não ser responsabilizada criminalmente.
Esse código penal é reconhecido, assim como a Constituição outorgada de 1824, pela sua esquizofrenia. Ambas as normas copiavam a legislação francesa em seus ideais libertários diante da superação do absolutismo. Celebravam a liberdade, a igualdade, a fraternidade. Com um detalhe: em um país escravocrata. O mesmo código penal que garantia punição a crianças caso obrassem com discernimento, previa aos escravos a pena de açoites, limitados a cinquenta por dia, em caso de condenação penal, além de obrigar o seu senhor a trazê-lo com um ferro pelo tempo que o juiz designasse. Ironicamente, ainda o mesmo código previa, no capítulo “dos crimes contra a liberdade individual”, a conduta de “Reduzir à escravidão a pessoa livre”.
1890 é o ano de publicação do primeiro código penal da República brasileira. Novamente reafirma-se a idade penal aos 14 anos, porém, é declarado que o maior de 9 anos e menor de 14 poderia ser “considerado criminoso” se o juiz concluísse que ele agira com discernimento, novamente sem os critérios de aferição claramente estabelecidos.
A adoção do critério biológico e a consagração da maioridade penal aos 18 anos ocorreram apenas em 1940, com o novo Código penal. O motivo pelo qual ocorre essa elevação é bastante claro aos estudiosos do tema: a passagem do século XIX ao século XX trouxe uma mudança de sensibilidade a respeito da infância. Se até então as crianças eram consideradas adultas em miniatura a partir dos sete anos, no final do século XIX, a noção de que a infância é uma preparação para a vida adulta, e que dura muito mais do que sete anos, passa a ser dominante.
Em termos jurídicos, o “surgimento” da infância levou à criação dos tribunais de menores, primeiramente nos Estados Unidos, sendo seguidos pela Inglaterra, Alemanha, França etc. Esses tribunais implicavam na separação de crianças e de adultos no julgamento sobre casos criminais. É também esse um período de forte disciplinamento, caracterizado pela grande internação de crianças e adolescentes, no Brasil e no mundo. Essa noção de que as crianças são o germe da vida adulta também trouxe consigo preconceitos sociais que conduziam a uma relação determinista entre pobreza e criminalidade.  Ou seja, as normas que surgiram para regular a infância de maneira diferenciada se dirigiam, sobretudo, aos filhos do subproletariado: crianças em perigo que poderiam se tornar perigosas.
O Código de menores, de 1927, previa que os menores de 14 anos não poderiam ser responsabilizados pela prática de crimes. Já os adolescentes entre 14 e 18 anos poderiam ser submetidos a processo especial e serem condenados a uma medida de internação por tempo indeterminado. Aqueles de 16 a 18 anos poderiam também ser enviados a estabelecimentos correcionais, e, na sua falta, às prisões.  O código de menores da ditadura militar, de 1979, previa, inclusive, que se o jovem que estivesse cumprindo medida de internação, ao completar dezoito anos ainda não tivesse sido considerado curado pelo juiz, poderia passar ao juízo da execução penal e ser transferido para a prisão.
Nada de novo debaixo do sol:
As propostas de redução da maioridade penal, com ou sem o critério do discernimento nos conduzem a um retorno ao século XIX.
As propostas de elevação do prazo da medida socioeducativa de internação nos conduzem ao início do século XX.
Daí que modernizar, pelo visto, se conjuga no pretérito.
 
Se o argumento de que os adolescentes hoje são mais informados do que em 1940 serve para sustentar a redução da maioridade penal, então como se explica o fato de que em 1830 a maioridade penal fosse de 14 anos? Ou que se aceitasse punir crianças de 9 anos em 1890? É mais razoável acreditar que essas crianças em seus trajes oitocentistas eram superdotadas, ou que a idade penal nada tem a ver com informação, mas sim com a maneira como se pensa a infância em uma sociedade?

Se modernizar é acompanhar a evolução e as tendências do mundo atual, então que se eleve a maioridade penal para 25 anos, pois ela não está ligada à consciência da ilicitude ou à capacidade de discernimento do que é certo e do que é errado. Isso uma criança de dois anos sabe fazer. É da maturidade para o controle dos impulsos que se trata a inimputabilidade pela idade.

O curso da história e do desenvolvimento do saber sobre as etapas da vida humana, ao contrário do que a demagogia punitivista quer demonstrar, conduz ao aumento da idade penal e não a sua redução. Aquelas crianças que trabalhavam como adultas são as que seriam responsabilizadas criminalmente como adultas, afinal, era assim que a ciência e a cultura os viam. Aquelas crianças em relação às quais se denuncia o trabalho infantil, são as que serão protegidas ao invés de punidas, tendo em vista a demonstração científica e cultural de que sua imaturidade emocional não permite que elas sejam vistas como adultas.
Ao mesmo tempo, é mentiroso o trecho da justificativa da PEC 171 que diz que a emancipação e independência dos filhos é cada vez mais prematura: são numerosas as pesquisas desenvolvidas, tanto no âmbito biológico quanto no sócio-cultural, que mostram que o amadurecimento dos jovens hoje ocorre por volta dos 25 anos (leia reportagem sobre o tema aqui).

Arte: revista o Viés

Há cinquenta anos, um jovem com vinte anos já havia tomado as decisões mais importantes de sua vida, já havia saído de casa, casado, tinha filhos e trabalhava. Hoje, os jovens adultos saem cada vez mais tarde de casa, estudam mais, mas evitam a tomada de decisões importantes, bem como não têm maiores responsabilidades antes dos trinta anos.
Se modernizar é acompanhar a evolução e as tendências do mundo atual, então que se eleve a maioridade penal para 25 anos, pois ela não está ligada à consciência da ilicitude ou à capacidade de discernimento do que é certo e do que é errado. Isso uma criança de dois anos sabe fazer. É da maturidade para o controle dos impulsos que se trata a inimputabilidade pela idade.
Da mesma forma, aumentar o prazo de internação significa punir mais duramente os adolescentes do que os adultos: se o prazo for elevado para dez anos, como quer o projeto do senador José Serra, por exemplo, um adolescente que pratique ato infracional análogo ao de estupro poderá ficar até quatro vezes mais tempo privado de liberdade do que um adulto que praticasse o mesmo crime (A pena mínima é de 6 anos dos quais apenas 2,4 anos podem ser cumpridos em regime fechado). Isso sem considerar a péssima situação das instituições de internação de adolescentes, convertidas, na sua maior parte, em verdadeiras prisões.
Recentemente, o site Pragmatismo Político publicou uma reportagem sobre o caso James Bulger, relembrando a morte do menino de 2 anos, em 1993, que motivou uma série de mudanças legislativas para permitir que crianças pudessem ser julgadas como criminosas a partir dos 10 anos na Inglaterra. Dois meninos de 10 anos amarraram James aos trilhos do trem, ocasionando seu atropelamento. Eles foram julgados como adultos, apesar de a idade penal na época ser de 14 anos. A influência da mídia e o populismo penal adotado pelos políticos na época aparecem na literatura criminológica britânica como os dois principais motivos pelos quais um caso absolutamente excepcional passou a ser visto como algo generalizado, ocasionando a mudança da legislação.
Uma leitura mais complexa sobre o caso é realizado pelo criminólogo britânico David Green. Na obra “Quando crianças matam crianças” (When children kill children), ele estabelece uma comparação entre a reação social ao caso James Bulger, de 1993, na Inglaterra, com a reação social ao caso da morte da menina Silje Redegard, de 5 anos, por três meninos de 6 anos, na Noruega, em 1994. Diante do acontecimento, os tablóides ingleses rapidamente procuraram a mãe de Silje para sensacionalizarem ao máximo e fazerem reviver o caso Bulger. O objetivo era a continuação do pânico moral em torno de crianças que matam crianças, agora na Escandinávia. A surpresa dos abutres da imprensa marrom inglesa foi que nada do pânico previsto ocorreu: os jornais noruegueses enquadraram o fato como um trágico acidente, tendo os nomes das famílias e das crianças sido mantidos em segredo; o prefeito da cidade, ao ver os jornalistas internacionais chegarem para cobrir o caso, pediu a eles que deixassem a comunidade em paz para que pudessem lidar com essa tragédia; a preocupação pública era com o bem-estar futuro daqueles que mataram a menina, com a necessidade de sua integração social; e os políticos não fizeram uso do caso para obter popularidade. A mãe da menina apareceu na imprensa apenas para dizer que perdoava os meninos que a mataram, sendo que foi publicizado o fato de ela ter negado dinheiro oferecido por um tabloide inglês para falar sobre seu caso em exclusiva, além de ter participado de uma campanha para aumentar a idade da maioridade penal na Inglaterra.
O que determina essa diferença de tratamento de casos semelhantes, em tempos também semelhantes? Esta é a pergunta de que parte Green em seu estudo. Enquanto a Noruega se mantém como um forte Estado de bem-estar igualitário, o Estado de bem-estar inglês erodiu desde a emergência da política econômica neoliberal thatcherista. O público não confia na política inglesa, em especial em razão de seu estilo de político fortemente partidário e adversarial. A imprensa inglesa tende a preconceitos políticos abertos e abraça agendas intervencionistas em temas como o crime e a punição. A propriedade da imprensa britânica é extremamente concentrada, enquanto a norueguesa é mais local e plural. A Noruega possui menos polícia, menos adultos e adolescentes na prisão e por menos tempo, menos medo do crime, grande investimento de welfare, importante igualdade de renda e altos níveis de assistência à criança. Para o autor, o consenso envolvido na cultura desse pequeno país estaria por detrás do desincentivo dos políticos em se engajarem no populismo penal cínico, e de uma cultura midiática menos sensacionalista
O ponto é, portanto, que a decisão sobre o número de pessoas encarceradas é uma escolha política. Ela provém da relação com outras questões, que pouco ou nada têm a ver com o aumento da criminalidade: são questões econômicas, políticas, culturais. E, finalmente: a idade penal e o número de crianças e adolescentes que serão postos atrás das grades nada têm a ver com o aumento da gravidade ou do número de suas condutas delituosas: é uma opção, dentre muitas, de lidar com essa etapa fundamental do desenvolvimento humano.
Enfim, não são poucos os argumentos que conduzem à inevitável conclusão: optemos pela redução da maioridade penal ou pelo aumento do prazo de internação, estamos caminhando para o passado na nossa realidade. Da criança como adulta em miniatura à criança como objeto de tutela, nenhuma dessas propostas nos conduz ao que é o real avanço, e que jamais chegou a ser efetivado: a percepção da criança como cidadã, sujeito de direitos, trazida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.
Nada de novo debaixo do sol: velhos e novos pretextos para o encarceramento da juventude pobre no Brasil, pelo viés da colunista Marília De Nardin Budó
Linha do Tempo: evolução do tratamento dado à menores em conflito com a lei nos Códigos de justiça brasileiros (para ver em tela cheia clique aqui):

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