Isolar o fato e pôr a culpa nos astros: o plano de fuga perfeito

Toda ação violadora dos direitos humanos possui a chance de provocar uma reação negativa ou positiva da comunidade. O que determina que se encaminhe para uma ou outra não é a gravidade do dano causado às pessoas e ao meio ambiente, mas sim a forma como a história dessas violações é contada. Significa dizer que entre um assassinato frio e uma legítima defesa existe uma linha tênue que garante a quem tem o acesso ao discurso deslocá-la para um lado ou para o outro dessa linha. Entre uma negligência e um acidente; entre a proteção de um povo e o genocídio de outro; entre a garantia do crescimento econômico e da lucratividade e o assassinato de famílias inteiras por câncer, envenenamento, fome ou mutilação; entre a pacificação e a tortura policial institucionalizada, da mesma maneira. Quem conta as histórias sobre o crime nas sociedades modernas? Quem tem o acesso ao e qual é o discurso criminológico dominante?
Essas e outras perguntas emergem diante dos casos que dominam os noticiários nacionais da atualidade: o assassinato de cinco jovens negros pela polícia no Rio de Janeiro; a violência policial perante os estudantes em protestos contra o fechamento de escolas em São Paulo; o rompimento das barragens que liberaram a lama tóxica da Samarco; as operações policiais que perseguem altos executivos de empresas, junto com banqueiros e políticos no país.

Como observou o sociólogo Stanley Cohen, ao analisar os relatórios de direitos humanos, a negação dos danos é a primeira e mais evidente reação às acusações de crimes de grande escala cometida pelos poderosos.

Quando analisados todos esses temas, seja no discurso oficial, seja naquele informal midiático, algumas conclusões são facilmente obtidas: as expressões tiroteio ou troca de tiros são escolhidas ao invés de execução; confronto e confusão são as palavras para designar a repressão nua e crua; acidente ou desastre são utilizadas ao invés de crime ambiental; escândalo político substitui a criminalidade rotinizada dos mercados em conluio com o Estado.
Além do vocabulário cuidadosamente escolhido através de eufemismos para definir atos danosos cometidos por agentes do Estado ou dos mercados, também teorias são criadas para justificá-los. Como observou o sociólogo Stanley Cohen, ao analisar os relatórios de direitos humanos, a negação dos danos é a primeira e mais evidente reação às acusações de crimes de grande escala cometida pelos poderosos. Mas ela não é a única: também é possível, justificar, eufemizar, negar a vitimização, defender a necessidade da conduta, isolar o fato, como se ele não estivesse relacionado a problemas estruturais.

Arte: Bibiano Girard sobre charge de Rafael Balbueno
Arte: Bibiano Girard sobre charge de Rafael Balbueno

No dia 05 de novembro, precisamente às 16h20, a barragem de Fundão, em Mariana-MG, explorada pela Samarco Mineradora, que pertence à Vale e à BHP, rompeu-se, provocando danos socioambientais ainda incalculáveis. A lama com os rejeitos da mineração invadiu a localidade de Bento Rodrigues, levando, pelo leito do Rio Doce, o que encontrava pela frente. Pessoas, animais silvestres e domésticos, casas, automóveis. A extensão da contaminação do Rio pela lama foi de 666 quilômetros, desaguando, finalmente, no mar. 15 pessoas foram mortas, entre crianças, adultos, idosos, entre mulheres e homens, e outras quatro estão desaparecidas. 85% das construções da localidade foram completamente destruídas. As imagens disponibilizadas em diferentes sites de notícias e blogs ambientalistas são inacreditáveis.
Um mês depois do início desse pesadelo socioambiental, e de seu arrefecimento nos noticiários e mesmo nas redes sociais – sobretudo após os holofotes se direcionarem à aceitação do pedido de impeachment pelo presidente da Câmara dos Deputados – a pergunta que não quer calar é: e agora?
Ao entrar no site da Samarco na segunda-feira, dia 07 de dezembro, qualquer visitante veria a reconstrução discursiva da realidade. Todos os fatos de Mariana e suas consequências são tratados como “acidentes”, e, por sua vez, todas as medidas tomadas para reparar danos e indenizar as vítimas – medidas essas determinadas pela Justiça – são rotuladas de “ações humanitárias”. Ações humanitárias!
Independentemente do que as investigações venham a concluir a respeito das causas do rompimento da barragem, uma coisa é certa: trata-se de um acontecimento previsível e evitável. A ausência sequer de alarmes que garantissem aos habitantes da cidade a evacuação do local, de modo a que vidas fossem salvas, demonstra o tamanho da negligência envolvida no caso.
Contudo, não foram poucos os noticiários que rotularam os incomensuráveis danos ambientais como um desastre. “Desastre” é uma palavra de origem etimológica latina, que conjuga o prefixo “dis” – oposto, contrário -, com a palavra asterastrum – astro: um acontecimento negativo provocado pela influência dos astros. Apesar de historicamente a palavra ter se distanciado de sua origem, até os dias atuais ela conjuga, em sua semântica, a ideia de um grande dano e a ausência de responsabilidade atribuível a alguém que não sejam os astros ou mesmo a fúria divina.

O que causou o rompimento da barragem – e sabemos da sua previsibilidade graças à manifestação dos técnicos que vêm inclusive advertindo sobre a possibilidade de ruptura de outras barragens – não foi meramente uma ação ou omissão humana. Não foi algo que facilmente se possa individualizar. A causa é a mesma que vem provocando numerosas mortes por asbestose em trabalhadores da mineração de amianto, no Brasil e em vários outros países; é a mesma que permite a permanência da escravidão no Brasil; é a mesma que premia o desmatamento da Amazônia.

Além da palavra desastre, outra encontrada no dicionário da desresponsabilização corporativa é “acidente”. Também derivada do latim, a palavra originada do verbo “accĭdō” traz consigo a ideia de “cair para” ou “cair sobre”. Ainda, parte do prefixo “ad” e do verbo “cadere”, que significa cair. Como se encontra no particípio, seu significado seria “caído”, ou seja, um acontecimento, algo que acontece, que cai do céu. Historicamente, sua semântica incluiu, para além do acaso, a negatividade, algo que acontece por falta de sorte. Por isso, no dicionário, consta: 1 O que é casual, fortuito, imprevisto. 2 Desastre, desgraça”.
Que a operação de marketing iniciada desde o dia 05 de novembro para limpar o nome das corporações envolvidas bata na tecla de que o que houve foi um desastre ou um acidente até é previsível. Não é estranho que a operação de greenwashing da marca inicie junto com o derramamento da lama. Também não é difícil entender por que os meios de comunicação, que lucram com os anúncios dessas empresas, e os políticos, cujas campanhas são por elas financiadas, adotem a fábula da desresponsabilização. O que não se pode é aceitá-la. Pior do que isso: a estratégia de individualização do fato, buscando isolá-lo do contexto no qual está inserido, sobretudo o do capitalismo e sua inimizade para com as vidas humanas, não humanas e com o meio ambiente.
O que causou o rompimento da barragem – e sabemos da sua previsibilidade graças à manifestação dos técnicos que vêm inclusive advertindo sobre a possibilidade de ruptura de outras barragens – não foi meramente uma ação ou omissão humana. Não foi algo que facilmente se possa individualizar. A causa é a mesma que vem provocando numerosas mortes por asbestose em trabalhadores da mineração de amianto, no Brasil e em vários outros países; é a mesma que permite a permanência da escravidão no Brasil; é a mesma que premia o desmatamento da Amazônia.
É o que faz com que todos esses sejam casos de crimes invisíveis. Os maiores danos sociais causados em uma sociedade não são provocados pelo batedor de carteira ou pelo consumidor de crack, como querem os jornais e outros representantes da ordem. O que realmente mata é o capitalismo, é o desenvolvimentismo, é o consumismo, é a indústria da guerra e toda a série de destruições que caminham junto deles.
O argumento do desenvolvimento sustentável se mostra falacioso justamente no ponto em que propagandeia a ideia de que a pobreza e o subdesenvolvimento são algumas das principais causas da insustentabilidade. Conclusão: o desenvolvimento seria a única via para a sustentabilidade. O que falha nesse ponto é a compreensão de que a pobreza é o resultado de relações de exploração interna e internacional também, de modo que a estrutura de poder político e econômico nacional e internacional corresponde muito mais às causas da pobreza e da desigualdade e, portanto, da degradação ambiental, do que o contrário.
E, sim, desenvolvimento sustentável é também um daqueles eufemismos, nesse caso tão paradoxal quanto a pacificação das favelas através da sua ocupação militar.
Os danos causados pela lama tóxica da Samarco, da Vale e da BHP têm responsáveis diretos e indiretos, que devem arcar com os custos sociais e ambientais gerados. Mas, sobretudo, o que não pode ficar de lado é o debate sobre o mercado e os direitos humanos. A diminuição de custos e a tentativa de uma eficiência máxima do ponto de vista do capital é o que efetivamente gera os maiores danos sociais e ambientais. É possível que um modo de produção que cresce através da insatisfação das necessidades humanas fundamentais, que pouco se importa com os impactos causados desde que o lucro seja obtido, seja compatível com os direitos humanos, com os direitos dos animais e com a preservação do meio ambiente?
Não, a culpa não foi dos astros. 

Tragédia em Mariana. Foto: Bruno Bou/UNE (cc)
Tragédia em Mariana. Foto: Bruno Bou/UNE (cc)

Isolar o fato e pôr a culpa nos astros: o plano de fuga perfeito, pelo viés da colunista Marília De Nardin Budó.
Para ler mais textos da autora clique aqui.

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