ANA MARIA RAMOS ESTEVÃO: “QUE NÃO HAJA ANISTIA PARA QUEM TEM VERGONHA DO QUE FEZ”

Quando se fala do combate à ditadura civil-militar brasileira, várias imagens vem à cabeça quase automaticamente. Grafites, grandes mobilizações, cenas de tortura são, sem dúvida, algumas delas. Mas, por trás de cada uma dessas imagens, existem pessoas. Pessoas que decidiram se levantar contra os absurdos de uma sociedade que preferia a repressão às possibilidades da vida humana na igualdade, no sentimento de solidariedade, nas liberdades várias – de expressão, sobre o próprio corpo, sobre as próprias escolhas e orientações, sobre os sexos e sobre as religiosidades (ou não). Nada que, às vezes, ainda não vejamos na democracia dos gabinetes de hoje.

E, se sobre cada imagem existem pessoas, muitas delas precisam mais do que a anistia que receberam e, por isso, seguem na luta por respeito, memória, verdade e justiça. Ana Maria Ramos Estevão é uma dessas pessoas.

Vinda do movimento de jovens da Igreja Metodista, Ana Maria entrou na faculdade de Serviço Social da Faculdade Paulista de Serviço Social para acabar encontrando uma militância que se misturaria com sua vida. A Ação Libertadora Nacional (ALN), de Carlos Marighella, foi a organização em que acabou entrando para o trabalho da Frente de Massa. Diferente da frente armada, que causava maior alvoroço nos governos militares com ações diretas, assaltos a banco e sequestros, a missão da Frente de Massas era agregar o maior número possível de apoiadores, disseminando os ideias da organização.

Por conta da maior atenção à luta clandestina, a sua situação ainda é pouco conhecida no Brasil: Ana Maria esteve, quase sempre, na legalidade, usando seu próprio nome, às vistas dos militares. Acabou sendo presa por três vezes e viveu os momentos mais dolorosos de uma ditadura: ser torturada e perder parte de sua vida, ainda jovem, no cárcere. Exilada na França, Ana Maria fez parte de diversas organizações depois da violenta dispersão da ALN, ao que, por fim, pôde voltar ao Brasil, assistir ao terror patrocinado pelo Estado amainar e seguir sua vida como professora de Serviço Social, atividade que exerce até hoje na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Sua militância, como parte da categoria dos professores do Ensino Superior, segue até hoje.

A entrevista a seguir foi realizada na passagem da professora por Santa Maria para a atividade promovida pela SEDUFSM, “Cultura na SEDUFSM: Marighella, o homem por trás das letras”.

Para que não se esqueça, para que não mais aconteça!

revista o Viés: Nós gostaríamos de saber como foi a sua militância na ALN (Ação Libertadora Nacional), como você se aproximou da organização?

Ana Maria Ramos Estevão (A.M.): Bom, pouco tempo atrás eu fiz um depoimento para a Comissão da Verdade da Presidência da República, em São Paulo. Lá eles queriam uma coisa mais específica de como eu fui atraída, “seduzida” pela esquerda e a influência da igreja. Eu já era militante desde o movimento estudantil, sempre fui militante. É uma tradição da minha família. Eu sou de uma família de alagoanos que vieram para São Paulo em 1955 e o meu pai já militava na colônia de pescadores que existia na época lá em Alagoas, que era uma área de influência do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Papai era meio parente do Graciliano Ramos, via meu avô. Então, já tinha na família meio que essa tradição de respeito. Não que papai fosse comunista, nem era militante, mas a gente achava muito bonito. Sempre achamos lindo ser comunista e escritor. Era algo que se prezava muito em casa. Mas eu entro na militância, no caso na ALN, via Movimento Estudantil e continuei depois ligada à Frente de Massas, apoio de massas, apoio logístico, que é mais aquele trabalho para o qual você tem que estar legal, não pode estar clandestino. Eu comecei na Passeata de Maio de 1968, na Praça da Sé [São Paulo], no comício em que deram uma pedrada no Abreu Sodré, o governador do estado [a passeata de maio de 1968 foi um dos marcos da luta contra a ditadura, mais informações aqui]. Tinha estudantes, operários, tinha pessoas mais… Era uma comemoração de 1º de maio em que o palanque foi desfeito. Estava o governador e, em função da força que o movimento teve, eles saíram e o palanque foi ocupado pelos militantes de esquerda. Nessa época eu era da Igreja Metodista, eu estudava numa escola para formar missionárias da igreja. Por incrível que pareça, foi lá que eu tomei contato com todas essas ideias subversivas [risos]. Lá que a gente começou a militar como movimento secundarista. Agora, eu fiz meio diferente do resto desse grupo, porque todo o pessoal da Igreja Metodista ou da Igreja Católica que era dos movimentos organizados – JOC e JUC, Juventude Operária Católica e Juventude Universitária Católica e a Federação de Jovens da Igreja Metodista -foram para a Ação Popular, a AP, que era um movimento de esquerda armado, uma organização de esquerda armada só de origem cristã, que se declara ateia marxista-leninista em 1965. E quem era ligado à igreja, tinha um passado cristão e tal vai para a AP. Eu, quando entro na universidade, em 1969, meu trote foi uma palestra sobre a reforma universitária do Costa e Silva. E, ao trote, foi um militante da ALN, que só depois soubemos que era militante da ALN, quando ele morreu, chamado [Antônio] Benetazzo, que foi falar aos estudantes. Eu estudava Serviço Social na escola da noite e tinha toda uma tática de como se trazia gente, como você ganhava pessoas para a sua organização. Não era “assim”, em 1969 a coisa já estava difícil. O Marighella não tinha morrido ainda, estavam todos lá, mas a coisa já estava difícil. Já tinha o Ato Institucional número 5, já tinha o Jarbas [Passarinho, Ministro do Trabalho e Providência Social], o [Antônio] Delfim Neto [Ministro da Fazenda] – já estava essa cambada aí. Mas, em 1969, foi também o ano em que veio o [Nelson] Rockfeller para o Brasil, que teve um acordo entre o MEC e a USAID, o Decreto 477, que ficou conhecido como AI-5 das universidades. Então, quando eu entro, está o Benetazzo fazendo a palestra e, aí, é claro, eu já vinha de movimento secundarista, eu estava louca para achar o povo. Eu nem sabia direito quem era do quê, porque, aparentemente, todos os grupos de esquerda armados daquela época falavam a mesma coisa. Até você aprender as sutilezas que diferenciam um discurso do outro levava algum tempo. Mas quem estava perto, o pessoal da escola da noite, o Centro Acadêmico do noturno era da ALN. Do diurno era da AP. Mas eu acabei virando presidenta do Centro Acadêmico e aí fui me aproximando do pessoal da ALN.

: A senhora não chegou a viver na clandestinidade…

A.M.: Não, eu vivi na clandestinidade apenas em 1973. Já tinha acabado tudo, foram uns vinte dias, não fiquei mais porque não fazia sentido. Porque, como eu fui presa três vezes – fui em 1970, depois em 1972 e em 1973 não fazia sentido.

A minha primeira prisão foi em 11 de julho de 1970. Isto daqui [Ana Maria mostra um documento] eu tirei do Arquivo Histórico de São Paulo. Em 21 de agosto de 1972 eu fui presa de novo e, depois, em 14 de agosto de 1973, de novo. Nessa primeira vez eu fiquei mais tempo, fiquei de julho de 1970 até 28 de março de 1971. Eu estava lá quando teve o último sequestro, do embaixador suíço [sequestro do embaixador Giovanni Bucher, entre dezembro de 1970 e janeiro de 1971].

: Como era a estrutura interna da ALN naquela época?

Foto: Gianlluca Simi

A.M.: A ideia era que, como as organizações eram pela luta armada, tinha que ter um esquema de segurança e de formação para não vazar informação, para não ter infiltração, o que mesmo assim houve. Era um outro esquema, as pessoas tinham pouca comunicação um grupo com o outro. Era dividido em dois setores: um era o setor que fazia a luta armada e o outro setor fazia a luta de massas. Em geral, era separado e um não tinha muito contato com o outro setor, só quando precisava ver a questão de apoio logístico, alguém que precisava sair do país e ver documentação falsa ou ver alguém para morar com outro alguém como um casal, clandestino, para poder dar uma aparência de legalidade, de família. Então, era bem estanque. Eu, por exemplo, conheci pouquíssima gente que era dos GTAs, os grupos táticos armados. No caso, em São Paulo, tinha dois da ALN, que, depois, chegou a ter mais, mas era meio separado. Eu acabei conhecendo quase todo mundo dos GTAs lá no presídio – aí foi meu contato. E tinha também a guerrilha urbana, que era preparatória para a guerrilha rural, que era para adquirir os meios, para comprar armas, para comprar medicamentos, para preparar a guerrilha rural.

: Essa visão da guerrilha urbana como meio para a guerrilha rural era algo bem marcante do Marighella…

A.M.: A ideia dele era essa. A ideia era assim: por que a guerrilha urbana? Porque é na cidade em que se concentram todos os recursos, de todos os tipos. Então, a cidade é o celeiro que vai alimentar a guerrilha rural.

: E a sua ligação com o Marighella, a senhora chegou a conhecê-lo naquela época?

A.M.: Não. Era bem estanque, era bem separado. E a gente, que era do movimento de massas, como é que você vai fazer movimento de massas sem aparecer? Não tem jeito. Você tem que aparecer. Você é presidente do centro acadêmico ou é presidente de sindicato – na época, não tinha sindicatos fortes, eles já tinham acabado com todos, mas são ações nas quais você tem que se mostrar. E dizer o seu nome, você não pode ter nome frio, documento falso.

: Isso os tornava visados. Tanto que a senhora foi presa três vezes.

A.M.: É, mas aí a prisão não é por causa de ser visado. Tem toda uma forma de funcionamento. Quando um companheiro ia preso, todo mundo ficava sabendo. E os seguintes que iam presos, depois daquela pessoa, mesmo que ela já tivesse saído da prisão, como ela já tinha sido identificada, a polícia já tinha nome e tarará, você, se tivesse que dar o nome de alguém de contato, dava um nome de um contato que eles já conheciam. Era o meu caso.

Quando eu e uma amiga fomos presas nós morávamos numa república de estudantes, também morava lá o Rafael di Falco, que também era da ALN, da parte do GTA, estava clandestino, mas já tinha sido presidente da UEE, da União Estadual dos Estudantes e tinha muita gente que não dava seu nome, então deu para montar uma história que não precisou. Até a Operação Bandeirantes [centro de investigação criada em 1969 pelo exército brasileiro] foi muito mais bárbara com outras pessoas, porque a gente estava na legalidade, a gente não tinha ação armada nas costas, com quem eles eram muito mais cruéis. Então, como a gente não falou de um monte de gente, toda vez que alguém ia preso, falava a Ana Maria e a Edinaura, que era a minha outra amiga, que ficou até mais tempo do que eu. Por isso que eu voltava a ser presa: eles pegavam a gente de novo para esclarecer porque não tinha falado aquilo da outra vez que tinha sido presa. Então, tinha todo um esquema repressivo muito bem articulado com relação a isso. Quando eu saí na primeira vez, eu saí de ménage, que chamava, que é quando você chega à auditoria militar, que é o momento processual, comparece perante a Junta Militar, o Tribunal Militar, para ser ouvido, para dar o seu depoimento; e aí, quem eles não tinham absoluta certeza de que deveria continuar preso saia. Eu saí, só que ia toda semana assinar documentos, na Auditoria Militar, até concluir o processo. E aí eu não tinha como… Eles tinham meu endereço, eu estava na casa dos meus pais nessa época, mas, sempre que eu me mudava, eu tinha que ir lá. Era liberdade condicional. Se é que se pode dizer.

: E a sua militância continua na ALN até ela acabar?

A.M.: Eu nunca saí. Aliás, a ALN nunca acabou – digamos, oficialmente. Em 1973, na minha última prisão, eu era ligada ao MOLIPO, que foi o Movimento de Libertação Popular, uma reorganização dos militantes que sobraram da ALN no Brasil na tentativa de ajudar o pessoal do Araguaia, ajudar com uma série de coisas, dando o mínimo de infraestrutura, eles tinham que ter medicamentos, essas coisas, porque teve gente que morreu de doença lá… Também tinha um esquema que algumas pessoas do MOLIPO organizaram para trazer os companheiros que estavam fora, que tinham ido para Cuba para treinamento , que nunca tinham sido presos. Esses morreram todos. Com exceção do Zé Dirceu, que na época já era “O” Zé Dirceu, que volta para o Brasil no esquema pessoal, o Fidel montou o esquema pro Zé Dirceu entrar no Brasil. Então, os outros todos morreram, porque tinha uma infiltração grande também, que acabou matando muitos militantes. Passava a fronteira; pegavam; morria. Mas aí eu fui pro MOLIPO, não é que eu fui, porque a gente não ia mais, sabe? Não era uma coisa assim, como foi nos outros grupos. Como na época da minha entrada na Universidade, que tinha a AP, a ALN, que eu sabia o que cada grupo pensava, qual era a perspectiva da revolução de cada um, qual seria o caráter da sociedade que seria construída depois. Então, já não havia mais essa discussão. Estava todo mundo morto, exilado ou sobrando, como eu, sobrevivendo. Era o que dava pra fazer.

: E depois do MOLIPO…

Foto: Gianlluca Simi

A.M.: Aí depois eu casei, mudei de nome, tirei passaporte. Aí sim a família do meu ex-marido podia mandar grana. Porque a minha família era uma família de proletário mesmo, então não tinha como meus pais me tirarem do país. A gente não tinha recurso – nem eu nem o meu grupo inteiro de amigos. E as coisas estavam se desfazendo. Então eu acabei indo para a Igreja Presbiteriana, não a Metodista à que eu era ligada antes, mas a Presbiteriana, que era quem dava um pouco de garantia, de segurança, quem acolhia os militantes na época. Me casei, mudei de nome, e aí o próprio pessoal da Comunidade Ecumênica de Igrejas, que na época chamava-se Conselho Mundial de Igrejas, deu uma bolsa para o meu marido da época. Só que ele disse “não, eu não vou, se a Ana Maria não for, se alguém tem que sair para o exterior é ela”. Aí a gente conseguiu que eles me dessem uma bolsa também. Mas tinha que pagar a passagem, essas coisas todas. Eu casei, tirei o passaporte com o nome de casada – tanto que o Estevão não é o meu nome – meu nome é Rodrigues Ramos. E aí eu fui para a França, para um Instituto chamado “Instituto Ecumênico para o Desenvolvimento dos Povos”, um grupo ligado ao Paulo Freire, ele que era o presidente desse Instituto. Fiquei com a bolsa lá durante nove meses. Quando entrou o Geisel, na época da distensão, a gente voltou para o Brasil, para militar no MDB, na Ação Católica Operária, junto com os movimentos de massas, na oposição sindical de Osasco, já que a gente foi para Osasco.

Na França, em 1973, 1974, havia um movimento dos militantes da ALN que se chamava Tendência Marxista-Leninista da ALN. Eram todos os militantes que estavam no exílio, que se juntaram pra fazer uma autocrítica da ALN. Eles me chamaram, porque essas coisas você não diz “eu quero”, tem uma série de fatores: o seu comportamento na prisão, o grau de compromisso depois que você saiu da prisão, enfim, tem uma série de critérios que te avaliam e as pessoas te chamam. E aí mandaram me chamar para eu participar dessa discussão, para debater quais foram os erros, os acertos, sendo da organização que mais peso teve. A gente devia muito mais respostas para a sociedade brasileira – mais do que qualquer outro grupo armado. Eu participei desse debate também. Aí depois eu continuei e até hoje eu estou aí, no sindicato. Então, de fato, sair da ALN, eu acho que eu nunca saí.

: Como foi esse período da anistia no Brasil? Para aquela época foi um avanço? Foi um retrocesso? Porque é essa mesma anistia que está anistiando os militares hoje…

A.M.: É, não sei se está anistiando, né? Nossa intenção é que não haja anistia para quem tem vergonha de confessar o que fez. O mínimo é que pelo menos eles confessem, assumam suas responsabilidades. Para ser anistiado você tem que assumir o que você fez, não tem como você ser anistiado sem dizer “olha, eu fiz isso, isso, isso e eu quero anistia”. Eu fiquei na primeira prisão com a Therezinha Zerbini, que emprestou o sítio de Ibiúna para fazer o congresso da UNE. A Therezinha era esposa do general Zerbini, que foi o único general em São Paulo, no Vale do Paraíba, que resistiu ao golpe de 64. Na época, a Therezinha Zerbini era muito ligada a grupos católicos, ao Dom Paulo Evaristo [Arns], que depois virou o grupo “Tortura Nunca Mais”. Já no presídio Tiradentes, em 1970, a Therezinha já falava muito sobre anistia. Depois é ela que acaba propondo isso. O [Luiz Eduardo] Greenhalgh se apropriou da ideia da Therezinha, mas, de fato, foi a Therezinha Zerbini, o Airton Soares e o Edibal Piveta, que eram advogados e que ainda estão vivos. A primeira vez que eu ouvi falar em anistia foi no presídio Tiradentes, com a Therezinha Zerbini. A gente não discutia isso ainda; a esquerda estava preocupada em discutir como é que ia fazer dali para frente, porque em 1970 a gente já intuía, de certa forma, o fim. Que havia algumas coisas muito erradas, muito equivocadas nas análises que se fazia sobre o processo revolucionário no Brasil. A gente ainda não sabia direito o que era, hoje se tem um pouco mais esse ideal.

Eu não acho que tem que anistiar os militares. Eu acho que a gente escolheu, a gente não, porque eu não escolhi, quem fez a proposta, nocaso, foi o Estado brasileiro, a anistia foram os militares que propuseram – a ideia é do Golbery [General Golbery do Couto e Silva], que também era do grupo, da camarilha da ditadura. Então, esse é o primeiro viés da nossa anistia: ela não é um movimento nascido do conjunto da sociedade brasileira, ela segue o mesmo movimento que seguiram todos os movimentos populares no Brasil, todos os grandes movimentos sociais e populares no Brasil – eles nunca terminaram com vitórias, eles sempre terminam por acomodação. O que está se exigindo acaba sendo resolvido de cima para baixo, através de um processo de acomodação, de concessão. Então a minha concepção de anistia é muito maior do que isso que está aí. É semelhante ao que se fez no Chile: põe o Pinochet na cadeia e põe os que sobraram na cadeia. Pega o Ustra [Coronel Carlos Alerto Brilhante Ustra], aqui de Santa Maria… Se bem que esse aí já está tendo um pouco do que merece. Mas a anistia tinha que ser uma coisa muito mais… “ampla, geral e irrestrita” mesmo. A partir da proposta das bases. A anistia que a gente tem é a anistia que foi possível. É parte do processo brasileiro isso, é o máximo de consciência possível do conjunto da sociedade em 1978. Veja como a coisa do caráter popular, do movimento, vem depois que morrem Manuel Fiel Filho [operário morto pela ditadura em 1976], Vladimir Herzog e Santo Dias da Silva, que era dos movimentos da Igreja Católica, também um líder operário. Precisaram morrer três pessoas para que houvesse a anistia, não foi só concessão, foi luta também, foi conquista. Torta, esquisita, mas foi conquista, que a gente não pode esquecer, que aparece também como concessão.

: Na sua opinião, em algum dia vai dar para superar esse período da ditadura? E a eleição de uma ex-combatente, a Dilma Rousseff, o que representa?

Foto: Gianlluca Simi

A.M.: Eu fiquei presa com a Dilma Rousseff na mesma cela. Ela ficava no beliche de cima e eu ficava no beliche de baixo, lá no presídio Tiradentes. Todo o tempo que eu fiquei lá ela estava, depois ela ficou mais tempo. Eu acho que todos os militantes, não vou dizer a esquerda em seu conjunto, mudaram radicalmente de posição. A esquerda armada, revolucionária de fato, se forma a partir da ideia de que não é possível fazer uma revolução através de voto, que era a proposta do PCB. O PCB achava que tinha que ter primeiro uma República Democrática Burguesa pra depois ter uma revolução socialista. Portanto, era através da eleição… Nunca conseguiram, mas era através do processo eleitoral. Então, não sei, acho que eu já respondi o que eu acho. Eu não acho o governo do PT revolucionário, não acho mesmo. É dentro dos limites da democracia representativa parlamentar e é dentro dos limites do capitalismo monopolista internacional, já globalizado, de uma economia globalizada, em termos de extração de mais-valia do conjunto dos trabalhadores do mundo e a acumulação cada vez maior, já a nível internacional. Então, eu acho que o Lula, e depois a Dilma, só chegaram lá porque tiveram que se aliar, como era a condição. A condição de possibilidade de eles ficarem todo esse tempo é essa. Não se faz profundas transformações sociais fazendo o “Bolsa Família”. No máximo você consegue base social para se eleger um monte de vezes, mas não é através de Bolsa Família que você faz a revolução social. Não é nem redistribuição. É um governo nem revolucionário, nem em disputa. A burguesia já ganhou, já esta aí. Quer dizer, o setor capitalista internacional já esta aí. Os banqueiros, os latifundiários. Se bem que os latifundiários… o capitalismo já entrou no campo, já tem um processo de implantação, agora é agroindústria, né? A cidade domina sobre o campo, o capitalismo já domina sobre outras formas de produção, dentro da formação social histórica brasileira.

: Sobre a Comissão da Verdade, na qual a senhora participou, em mais de uma comissão, inclusive. O que a senhora acha dessas Comissões? Elas representam uma real revisão desse período?

A.M.: A Comissão da Verdade eu acho que vai lembrar a sociedade brasileira, por isso eu acho muito interessante ela ter o poder de chamar torturadores, militares e todos esses para obrigar os caras a falarem. Eles estão falando agora também, porque provavelmente sabem que não vão sofrer muitas represálias, porque estão garantidos pela Lei da Anistia. Agora, o nome é meio estranho, era melhor ser “Comissão da Memória”, porque é mais a memória do que a verdade que está em jogo. A memória e o direito à memória – é isso que querem apagar, mais do que a verdade. Eu acho que a gente tem que dar todo o apoio a todas as comissões que se criarem, como uma forma não só de denúncia. Depois que se criou todo um clima da comissão da verdade, as pessoas, inclusive os militares que se opuseram, de alguma forma, ao golpe militar de 64, à ditadura, eles estão começando a falar. “Eu me recusei a fazer tal coisa, era ordem da presidência da República, e fui punido”. O cara que queriam que derrubasse o avião do Jango, a própria exumação do corpo do Jango para ver se ele não foi assassinado, as histórias do Marighella, a morte do Marighella, que foi declarado como assassinato e não como prisão. Tudo isso é em decorrência da Comissão da Verdade, da criação de um clima em que as pessoas querem ouvir, elas querem saber, a gente tem a possibilidade de publicar o máximo possível do que aconteceu. para que não aconteça de novo, né?. Eu acho que tem muito uma missão histórica dessas Comissões da Verdade, que é não só a de lembrar, mas de dizer que jamais a gente vai esquecer. 

ANA MARIA RAMOS ESTEVÃO: “QUE NÃO HAJA ANISTIA PARA QUEM TEM VERGONHA DO QUE FEZ”, pelo viés de João Victor Moura

joaovictormoura@revistaovies.com

*Colaboraram: Marina Martinuzzi e Gianlluca Simi.

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