ONIR ARAÚJO: “O RACISMO É UMA IDEOLOGIA DE DOMINAÇÃO”

O reconhecimento constitucional do direito dos povos indígenas e quilombolas às terras que tradicionalmente habitam, como parte de sua identidade e condição para a sobrevivência de sua cultura, data de 1988. Vinte e cinco anos depois, acumulam-se relatos de abusos, violência direta e indireta, perseguição e intimidação a lideranças inclusive por parte de governos, situações de extrema vulnerabilidade social e contínuos impasses na resolução do acesso a essas terras.

Da mesma maneira, acumulam-se projetos de lei, emendas e investidas da bancada ruralista que intentam a retirar esses direitos, fazer retroceder o reconhecimento conquistado com a luta de movimentos sociais organizados e impedir a continuidade das demarcações e titulações de terras de povos indígenas e quilombolas no país.

No caso das comunidades de remanescentes quilombolas, a situação é alarmante: das cerca de 3000 que se estima que existam no país, apenas 193 possuem seu território titulado. Além disso, há cerca de 1200 territórios com processo aberto no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), responsável pelas titulações, e aproximadamente 1900 comunidades certificadas pela Fundação Cultural Palmares, órgão ligado ao governo federal e responsável pelo cadastro dos remanescentes.

Segundo informações da Comissão Pró-Índio de São Paulo, 88% dos processos em curso no Incra não tiveram nenhuma outra providência além da designação de um número de protocolo. Desde 2003, apenas 12 terras foram tituladas pelo governo federal – oito durante o governo Lula e quatro no governo Dilma. Em 2012, foi apenas uma; em 2013, até agora, nenhuma, e mesmo as demais etapas do trâmite relativo à titulação transcorrem de maneira morosa.

As pressões são muitas e ininterruptas: em 2003, o Decreto 4.887 regulamentou o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras de remanescentes quilombolas. Já no ano seguinte, o Partido da Frente Liberal (atual Democratas) ingressou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade contra o Decreto, a qual ainda aguarda julgamento no STF.

Recentemente, está em discussão no Congresso Federal a Proposta de Emenda Constitucional 215 (PEC 215/2000), que pretende passar do Executivo para o Legislativo a incumbência de realizar as demarcações de territórios indígenas e quilombolas e, assim, inviabilizá-las na prática, em um espaço dominado por representantes dos interesses das elites agrárias.

No dia 29 de agosto, representantes de comunidades indígenas e quilombolas do Rio Grande do Sul, junto a assentados da reforma agrária que enfrentam a total falta de estrutura e outros movimentos sociais reuniram-se na Praça da Matriz, em Porto Alegre, para cobrarem do governador Tarso Genro um posicionamento claro e efetivo em relação às demarcações de terras no estado e discutirem sua situação em uma Assembleia dos Povos.

Na ocasião, não foram recebidos pelo governador, mas a recepção que lhes foi dispensada demonstra um pouco da disposição do Estado em relação aos povos indígenas e quilombolas: um violento e injustificado ataque por parte da Tropa de Choque da Brigada Militar, que atacou crianças, adultos e idosos com bombas de efeito moral, gás lacrimogênio e balas de borracha.

No primeiro dia do acampamento erguido com lonas pretas e amarelas na Praça, o descendente de quilombolas e militante da Frente Nacional em Defesa dos Territórios Quilombolas, Onir Araújo, concedeu uma entrevista à revista o Viés, na qual discute sobre a situação atual das comunidades quilombolas no país e no estado, a conjuntura da luta pelas terras tradicionais, o conceito de racismo institucional e o genocídio da juventude negra.

revista o Viés: Nacionalmente, qual a situação atual dos povos quilombolas?

Onir Araújo: A nossa conjuntura é bem semelhante à dos povos originários. Hoje em dia, nós trabalhamos com um dado de quase 10 mil comunidades quilombolas no país. Desde o processo da Constituição de 1988, houve toda uma mobilização anterior para gravar na Constituição o direito à titulação desses territórios. De lá para cá, formalmente, teve várias idas e vindas da efetivação desse direito, que está lá no artigo 68, no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. O nosso entendimento, na época, é que esse artigo seria autoaplicável, ou seja, não teria necessidade de regulamentação. Mas começou a se esboçar a reação conservadora, racista, em relação a esse pleito territorial.

: Na Constituição, são os mesmos artigos que versam sobre os direitos de quilombolas e indígenas?

OA: Não, são artigos diferentes. O artigo dos povos originários é o 231 da Constituição Federal, e o nosso é o 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Essa parte da Constituição era uma questão de deveria ser resolvida rapidamente, o que até reforça nossa tese de que seria autoaplicável. Por isso, está no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. No entanto, temos um quadro que é como falei: informalmente, são 10 mil territórios no país inteiro, só aqui no Rio Grande do Sul (RS) são 182 comunidades. Aí, tem todo um procedimento administrativo. Hoje, o órgão competente para fazer a demarcação é o INCRA, e é um procedimento que começa com a autoidentificação da comunidade. Essa autoidentificação é informada para a Fundação Cultural Palmares, que cria uma certificação e a partir daí se abre um processo administrativo no INCRA. Então, existe uma série de trâmites extremamente burocráticos e mesmo esses trâmites não são cumpridos, ou seja, a legislação não é cumprida pelos sucessivos governos e pelo Estado brasileiro.

Nós temos formalmente certificadas na Palmares um plano de 1900 comunidades, desse universo todo, e em torno de 1200 comunidades com processo de demarcação aberto no INCRA. Aqui no RS são 82 processos abertos no INCRA e, desse total, com 25 anos de Constituição, nós temos somente 193 comunidades tituladas [no país inteiro]. Nos últimos 10 anos de um governo dito popular, apenas 12 dessas 193 comunidades foram tituladas. Então, não procede o que vem se propagandeando, que está tendo um esmero, um esforço, que nunca se fez tanto pelos quilombolas como agora, isso não é verdade. Pelo contrário, o que a gente percebeu nos últimos 10 anos, se for considerar os governos Lula e o governo Dilma, é que o governo Lula, por exemplo, fez em torno de oito titulações e o governo Dilma fez menos ainda. Se a gente pegar em termos orçamentários, os recursos para esse tipo de política eram contingenciados. A média de orçamento que ia para o INCRA para demarcação de territórios quilombolas era em torno de 30, 20 milhões de reais, que eram para o funcionário do INCRA ir lá, ouvir a comunidade, ver qual o perímetro que a comunidade indica, o território, fazer, se for o caso, as devidas indenizações para títulos que incidam sobre o território, etc. Mesmo assim, considerando o último ano, o orçamento de 2012 não foi executado nem em 10% do que era previsto. Quer dizer, além dos recursos serem poucos, comparados a outras prioridades dos governos, ele ainda não é executado em sua integralidade. Por isso que nós, junto com os povos originários, consideramos que não é falta de dinheiro, é falta de vontade política mesmo.

Quem fez projeto de colonização e reforma agrária em territórios indígenas e quilombolas? Foi ou o estado do Rio Grande do Sul, ou a União Federal. Eles sabiam que havia indígenas e quilombolas, sabiam que aquele território tinha um pertencimento. Nós não podemos, como vítimas de um processo de genocídio, racismo e extermínio, ficarmos com a culpa e a responsabilidade por isso. A responsabilidade é do Estado brasileiro, é do estado do Rio Grande do Sul

: E a que vocês atribuem essa falta de vontade política e o fato de esse recurso ser deixado de lado?

OA: Para nós, da Frente Nacional em Defesa dos Territórios Quilombolas, o projeto dos sucessivos governos é um projeto a serviço do grande capital. A serviço das mineradoras, do agronegócio, das empreiteiras, dos bancos, e há necessidade de ocupar, de capitalizar esses territórios, é a questão da disputa dos recursos naturais, todos eles: água, biodiversidade, subsolo e assim por diante. Quem governa, ainda que tenha um verniz azul, vermelho, etc., faz governos antipopulares, contra os povos originários, contra quilombolas, contra negros, são governos neocoloniais. Há um processo de neocolonização do país. O grande referencial econômico do governo são as commodities, um eufemismo que se criou em relação a entregar os recursos naturais do país. E não é só os recursos ditos naturais – minério, água, petróleo, biodiversidade; é o ser humano também. É o aumento da exploração de conjunto, ou seja, o que acontece é o racismo institucional. O que é isso: as pessoas tem uma visão de racismo muito vinculada àquela coisa do preconceito, aquela relação transinidividual, que existe, é uma expressão do racismo. O racismo é uma ideologia de dominação. E o racismo institucional é quando um Estado, um governo cria medidas que favorecem determinados segmentos da população, teoricamente com medidas neutras, mas em detrimento de outros. Então, por exemplo, quando parlamentares criam uma lei como a PEC 215, que transfere do INCRA e da FUNAI, ou seja, transfere do Executivo a questão da demarcação e da homologação dos territórios dos povos originários e quilombolas, isso é um exemplo típico de racismo institucional. Quando a AGU baixa uma portaria, que é a Portaria 303, que flexibiliza o acesso das mineradoras e do agronegócio nos territórios dos povos originários, isso é um exemplo de racismo institucional, porque impacta e desconsidera os povos originários e os quilombolas. Quando o governo federal, o Estado brasileiro, não aplica a Convenção 169, ou aplica do jeito que lhe convém, isso é um exemplo típico de racismo institucional, que está acontecendo em Belo Monte, que está acontecendo aqui no Rio Grande do Sul e no Brasil inteiro. Isso ocorre por quê? Porque os interesses que primam no governo e no Estado brasileiro não são os interesses da população dos povos originários, quilombolas, negros, negras, mulheres, pobres, são os interesses de transformar o Brasil de novo num grande exportador de commodities, matérias primas, e uma elite sócia dessa exploração, dessa opressão, que precisa, para nos conter, ter toda essa violência tanto institucional como até direta. Tem uma série de projetos de lei que praticamente criminalizam isso que está sendo feito aqui, com a Assembleia dos Povos, na praça. Daqui a uns dias, isso aqui vai ser considerado formação de quadrilha, vai ser considerado terrorismo, inclusive no marco dos megaeventos que estão colocados aí, Copa do Mundo, Olimpíadas. E os vários projetos que há ligados ao Plano IRSA [Iniciativa de Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana], é o que está acontecendo por exemplo em Belo Monte. Hoje, vai acontecer o leilão de blocos para a exploração de carvão aqui no Rio Grande do Sul. Consultaram os quilombolas da região da campanha impactados por essa exploração mineral? Os indígenas, os povos originários? Então, é esse o quadro: se constrói um modelo de desenvolvimento que é aquele velho modelo que deixa o povo ou como carne barata para ser explorada ou fora, completamente. Quer ver um exemplo de como eles também colocam fora: no Mapa da Violência no Brasil, uma pesquisa que é realizada anualmente, se constatou o seguinte: um jovem negro, na faixa etária de 14 a 25 anos, tem 150% a mais de chances de ser vítima de um homicídio do que um jovem não negro, e a média anual de jovens negros nessa faixa etária vítimas de homicídio beira 35 mil por ano. Se formos fazer uma conta de dez anos, isso é uma média, são 350 mil jovens negros, entre 14 e 25 anos, que foram mortos nesse período. Isso é um exemplo do que é o racismo institucional, e um exemplo de como a sociedade em que a gente vive tem intrinsecamente incorporada nela essa questão do racismo. Vocês viram alguma manifestação de algum órgão de direitos humanos denunciando essa tragédia anual que os brasileiros vivem? A guerra civil em Angola durou 30 anos e teve 300 mil mortos considerando o total da população. Nós, em dez anos, dirigidamente matamos mais pessoas do que um processo de 30 anos de guerra civil. Então, isso se combina com o racismo institucional, se combina com o fato de estarmos sendo massacrados na questão central que é o direito aos territórios. É uma coisa combinada, não é mera coincidência. O quadro é esse. Essa atividade da Assembleia dos Povos aqui aponta uma perspectiva nova de atores para resistir a esse processo. Não é muito comum, estou com 53 anos e militando há muito tempo. Por mais que a gente tentasse construir ações como essa, conjunta entre quilombolas e povos indígenas, é muito recente uma ação assim, e nós acreditamos que a resposta é por aí.

Tabela extraída do Mapa da Violência 2013 – Homicídios e juventude no Brasil, demonstra a incidência de homicídios por raça/cor das vítimas e a evolução crescente da vitimização. da população negra em relação à branca.

O Brasil é o país de maior concentração fundiária do mundo, e nós que somos os vilões da história da má divisão de terras no país? Não! Que se exproprie o latifúndio. Que se reassente, que se faça efetivamente a reforma agrária, não em território indígena e quilombola, como aconteceu ao longo da história, mas no latifúndio.

: E essa articulação é uma consequência do tratamento do Estado ter sido mais violento ultimamente?

Se acirrou, houve um recrudescimento do racismo, por mais que se faça propaganda contrária. Eu vejo um esforço muito grande, tragicômico às vezes, de setores do movimento social que estão cooptados pelo projeto de governo e de Estado falarem: ‘hoje, nós temos um Ministro presidente do Supremo Tribunal Federal negro, nós temos uma secretaria com status de ministério, que é a Seppir [Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial], nós tivemos vários ministros negros, temos uma presidente mulher, houve tantos avanços nos últimos dez anos’. Mas tem o outro lado, a situação concreta, real: se a gente somar as vítimas de homicídio aos desaparecidos, nós temos uma tragédia. Esse pessoal que sumiu, tipo o Amarildo, não foi abduzido, não foi uma nave espacial que parou e sumiram as pessoas. Isso é uma guerra que está acontecendo.

Uma ação como essa [a Assembleia dos Povos] aponta uma perspectiva não só de cobrar os nossos direitos que estão sendo vilipendiados, é também fazer um diálogo com a sociedade brasileira como um todo, a partir do nosso pertencimento negro, indígena, popular, e fazer que se efetive o mínimo que está na Constituição. Se fala na Constituição que nós somos uma nação pluriétnica, e para sermos mesmo, temos que ser respeitados. E essas mães, essas avós, esses tios desses jovens assassinados, desaparecidos? Não são seres humanos, não têm sofrimento? E esse quadro nosso, com os territórios completamente vilipendiados, com sucessivas ações do Estado brasileiro de extermínio? A desculpa que se tem é de que é complexa a situação, há pequenos proprietários que têm títulos reconhecidos nesses territórios. Mas quem colocou, quem fez projeto de colonização e reforma agrária em territórios indígenas e quilombolas? Foi ou o estado do Rio Grande do Sul, ou a União Federal. Eles sabiam que havia indígenas e quilombolas, sabiam que aquele território tinha um pertencimento. O que nós estamos cobrando é que nós não podemos, como vítimas de um processo de genocídio, racismo e extermínio, ficarmos com a culpa e a responsabilidade por isso. O que estamos cobrando aqui é isso: tem uma lei que diz que temos direito ao nosso território ancestral. É isso que nós queremos. Se o Estado brasileiro assentou, fez colonização e reforma agrária nesses territórios, a responsabilidade é do Estado brasileiro, é do estado do Rio Grande do Sul, e a legislação prevê o que nesses casos: indenização desses pequenos proprietários de boa fé, e nós defendemos que eles sejam indenizados, já falamos isso pra eles, ou o reassentamento. Ora, o Brasil é o país de maior concentração fundiária do mundo, 5 mil famílias detêm 80% das terras agriculturáveis do país, e nós que somos os vilões da história da má divisão de terras no país? Não! Que se exproprie o latifúndio. Que se reassente, que se faça efetivamente a reforma agrária, não em território indígena e quilombola, como aconteceu ao longo da história, mas no latifúndio. É essa a nossa cobrança. Os conflitos estão acontecendo, casas de indígenas foram queimadas perto da região de vocês, nós temos o território quilombola de Morro Alto sendo grilado, ocupado por jagunços, cercaram a frente da sede da associação como uma forma de provocação. Há lideranças sendo vítimas de tentativas de homicídio, isso tudo sendo alimentado pela inércia e pelo discurso sucessivo do governo em não cumprir a lei.]

: Formalmente, qual a situação do Quilombo do Morro Alto?

O quilombo do Morro Alto fica em Maquiné, região norte do Rio Grande do Sul. Formalmente, estamos em uma etapa que, depois de muita luta, três ocupações no INCRA, sumiço do processo de demarcação, mobilização nossa em Brasília, foi publicado um relatório técnico de identificação, o território demarcado é de 4665 hectares. Foi publicado o relatório, eles seguraram para fazer as notificações em relação aos proprietários que têm títulos incidindo sobre o território. Os quilombolas sofreram uma campanha racista, por parte inclusive do sindicato rural de Maquiné e alimentado por setores ligados ao agronegócio, às empreiteiras, como [os deputados federais] Alceu Moreira, Eliseu Padilha, e deputados da própria frente popular que têm interesses eleitoreiros lá e andaram fazendo assentamentos irregulares de famílias dentro do território quilombola. Agora, está aberto o período de contestação ao relatório, quer dizer: com o racismo institucional do INCRA, em ter trancado primeiro a publicação do relatório e depois a notificação, nós tivemos que entrar com uma Ação Civil Pública para que eles cumprissem o que eles têm obrigação, enquanto gestores, de fazer. Nesse intervalo, houve tempo para, junto com aqueles supostos pequenos agricultores de Mato Preto e Mato Castelhano, eles se organizarem e fazerem uma campanha extremamente racista contra quilombolas e indígenas. Eles criaram uma associação chamada “Movimento dos Impactados por Demarcação de Territórios Quilombolas e Indígenas”, no final do ano passado e início desse ano. E isso surgiu dentro da FARSUL [Federação da Agricultura do Estado do Rio Grande do Sul], com apoio da FETRAF-SUL/CUT [Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar da Região Sul]. Eles não estão pleiteando que se tenha indenização, que se tenha reassentamento, não: eles estão querendo retirar o nosso direito, enquanto quilombolas e enquanto indígenas, ou seja: seguir com o massacre, é isso que eles querem. Então, nós colocamos isso para o governo, quase 90 dias atrás nós estivemos aqui nessa praça, fizemos uma mobilização e tivemos uma reunião com o governador do estado. Ele se comprometeu a desenvolver uma força-tarefa com o Ministério Público, a Secretaria do Desenvolvimento Rural, a EMATER, para solucionar os conflitos. Passados os 60 dias iniciais, tivemos outra reunião no INCRA, com o governador, o Ministro da Justiça, Eduardo Cardozo e o presidente da FUNAI, e eles pediram mais 30 dias. Não fizeram nada. Esse prazo de mais 30 dias termina amanhã. Não tem mais condição: ou se responde concretamente a isso, ou teremos que ver qual a atitude que se vai tomar. Por isso que a gente está junto: apesar de sermos povos diferentes, fazemos parte de um setor do povo brasileiro que está sendo completamente desrespeitado em seu direito básico: a existência. Então, estamos querendo construir uma agenda forte de mobilização nacional, dialogar com o conjunto da sociedade brasileira, porque acreditamos que essa não é uma questão só atinente a nós. Diz respeito a que nação realmente a gente vive, e é muito importante ter essa interlocução com esses movimentos sociais que ainda não se perderam e não entraram no projeto da Casa Grande. É muito importante essa relação que a gente está tendo com setores indigenistas também, como o CIMI [Conselho Indigenista Missionário], o GAPIN [Grupo de Apoio aos Povos Indígenas], porque pode ser o embrião de um novo movimento, além do fato também de que a nossa presença aqui está obrigando a que sindicatos reflitam sobre isso, que o movimento estudantil reflita sobre isso, a juventude reflita sobre isso, ou seja, o movimento social como um todo reflita sobre essa situação.

: Essa articulação entre indígenas e quilombolas, nacionalmente, está surgindo aqui no sul?

Isso é um fato. Ela está assumindo uma característica mais orgânica. A gente não está vendo outra alternativa que esse processo se dar em nível nacional. Por exemplo, não tem como barrar a PEC 215 se a gente não construir um caldo de cultura, de mobilização dos povos, dos trabalhadores nacionalmente. Se não fosse a ocupação do Congresso em abril pelos povos originários, a Frente Parlamentar não teria entrado com o mandado de segurança [em agosto, integrantes da Frente Parlamentar de Apoio aos Povos Indígenas e Direitos Humanos protocolaram no Supremo Tribunal Federal (STF) um Mandado de Segurança para impedir a criação de comissão especial relativa à PEC 215 na Câmara]. Então, se a gente se soma nesse processo com ações, essa é a única forma, porque a composição do Congresso, sem mobilização, é completamente impermeável a qualquer tipo de demanda popular. O destino nos reserva uma tarefa que não é qualquer tarefa. É um embrião, mas como a questão, por exemplo, da redução das passagens: o exemplo de Porto Alegre praticamente criou um rastilho junto com a conjuntura econômica. Não dá para dizer que o Brasil é a mesma coisa em maio e hoje. O pessoal do Rio segue lutando, se desdobrou para uma questão do Passe Livre. O que está acontecendo aqui é necessário que aconteça em outros estados. Talvez aqui mostre que é possível acontecer.  Essa é uma importância que tem para nós, e isso eu vejo em todas as lideranças kaingang, nos próprios quilombolas que estão aí, de entender a importância que isso pode ter, de mostrar que é possível, porque a situação é igual em todo o país. O que a gente tem falado para alguns setores que atuam tanto com quilombolas quanto com indígenas, algumas ONGs que transitam em torno da gestão de algumas políticas públicas, é que, se eles não se tocarem, daqui a pouco não haverá território para eles fazerem projetos. Não vai ter território pra fazer o projeto, angariar recurso, fazer uma capacitação de lideranças quilombolas; projeto pra ter uma biblioteca dentro de uma aldeia indígena, porque o que está em risco é a existência dos territórios.

Apesar de sermos povos diferentes, fazemos parte de um setor do povo brasileiro que está sendo completamente desrespeitado em seu direito básico: a existência.

: No caso dos indígenas, por exemplo, sabemos que parte deles está vivendo ainda em beira de rodovias, na periferia das grandes cidades ou, como já aconteceu aqui no Rio Grande do Sul, em situações de o estado comprar terras que não são as terras tradicionais e oferecê-las como moeda de troca para os indígenas. Como é essa situação em relação aos quilombolas?

Se você pegar o IDH [Índice de Desenvolvimento Humano], se fizer um corte entre negros e não negros, você vai ter dois Brasis. O IDH do Brasil, se considerar a população branca, fica em trigésimo, quadragésimo lugar. Se considerar a população negra, está atrás de repúblicas africanas, 178º lugar. Se fizermos um perfil do IDH em comunidades quilombolas, nós estaremos atrás do Haiti. Então, a situação de precarização de questões básicas como acesso a moradia, saúde, segurança alimentar está extremamente precarizada porque isso é uma tática, não se dá segurança jurídica aos territórios, se pressiona, se destrói as relações e aí vem com a proposta que é de descaracterização total e um oferecimento de áreas, ou seja, um processo de favelização dos territórios. É a descaracterização total.

 E essa é uma tática que o governo tem tentado, ele cria uma situação de divergências internas dentro das comunidades. É uma tática que pode nos levar à derrota. Por exemplo, Rio dos Macacos, na Bahia, o território tem 300 anos e tem um condomínio da Marinha dentro. Eles estão querendo expulsar a comunidade, barbarizaram, criaram o “muro da vergonha”, houve casos de estupro. A comunidade perdeu toda a segurança alimentar dela, tinham três casas de farinha lá dentro, dois terreiros de candomblé lá dentro, a comunidade tinha uma expectativa de vida de 105, 110 anos, pomares, pesca, ou seja, viviam extremamente bem. Com a chegada da Marinha, o analfabetismo, total falta de segurança alimentar. E o que o governo tem oferecido para eles é favelizá-los, colocá-los em um projeto habitacional como o Minha Casa, Minha Vida.

 No caso dos indígenas de Mato Preto, o território que está sendo demarcado é de quatro mil e duzentos hectares, eles botaram a liderança dentro da Secretaria de Agricultura e pressionaram essa liderança pra que ela aceitasse duzentos hectares em troca do seu território ancestral. Essa é a lógica, um total desrespeito, uma total desconsideração com as regras do próprio jogo instalado em termos jurídicos, e essa é uma tática que nos divide muito porque cria problemas dentro da comunidade. Eu já vi, dentro de comunidades extremamente precarizadas, que perderam sua segurança alimentar, cizânias em torno da distribuição do Bolsa Família. Então, é um quadro em que se procura pinçar determinadas lideranças em detrimento de outras, ter um controle de gestão de uma determinada política pública que beneficia um e não beneficia outro, ou seja, são táticas utilizadas de dominação mesmo, e uma delas, que está sendo utilizada em relação aos territórios ancestrais, é essa. Porque aí, na prática, não se reconhece o território ancestral.

: Outra questão que parece bem particular é essa dos quilombos urbanos. Aqui em Porto Alegre, inclusive, tem alguns. É uma dinâmica um pouco diferenciada?

Nós temos aqui em Porto Alegre quatro quilombos urbanos. Isso é um espinho na garganta do sistema, pois se tinha uma visão folclórica de que quilombo era isolado. Então, na verdade os quilombos urbanos trazem a questão do nosso pertencimento enquanto povo a partir de relações que sempre se mantiveram mesmo com o crescimento das cidades. Isso cria um problema para o sistema. Como boa parte da população brasileira hoje vive nas cidades e existe todo o processo de especulação imobiliária, capitalização do território e de limpeza étnica das grandes cidades – está aí o processo em torno da Copa do Mundo – isso cria um problema porque, tendo um território auto-reconhecido ancestral, esse território sai do mercado, ele não pode ser objeto de especulação. Nós tivemos notícias agora de que um bairro inteiro em Olinda está se autoidentificandoenquanto território quilombola, é um bairro inteiro, em torno de 20 mil pessoas que moram nesse bairro. Os desdobramentos disso nas cidades, vocês imaginem qual é, porque ter um território auto-reconhecido quilombola dentro da cidade implica que vai ter de se cumprir todos os rituais previstos no ordenamento jurídico no que se refere ao espaço urbano. Então, por exemplo, plano diretor, tem que se consultar com a comunidade de boa fé. Outras medidas, como, por exemplo, passar uma avenida, construir um estádio para a Copa, tudo isso teria que levar em conta esse pertencimento, então, isso cria um problema enorme para o sistema e é uma novidade que, no meu entendimento, demorou porque na verdade nós somos quilombos urbanos mesmo, funcionamos assim.

Essa não é uma questão só atinente a nós. Diz respeito a que nação realmente a gente vive, e é muito importante ter essa interlocução com esses movimentos sociais que ainda não se perderam e não entraram no projeto da Casa Grande.

: Você falou antes na “organização dos de baixo”. O que significa isso?

A gente está vendo uma crise geral nas organizações tradicionais do movimento social em função de todo esse processo de cooptação, de perda de referência, perda do projeto inicial, e isso de certa forma é interessante porque abre perspectiva para que, em função dessa burocratização, dessa institucionalização, a gente se relacione diretamente entre nós, na base, horizontalmente. Nós temos que aproveitar esse momento e temos que refletir sobre ele também, inclusive sobre formas de organização que potencializem cada coletivo desses, cada grupo que está fazendo a experiência com suas antigas direções. Então, quando a gente fala “dos de baixo” é justamente aqueles setores de base de vários movimentos sociais que estão sendo literalmente massacrados por essa política neocolonial e começando a fazer uma experiência com coletivos diferentes, que são povos, setores, e uma procura por estabelecer um ritmo da batida perfeita. A gente está começando a escutar mais um ao outro, e a gente começa a esboçar a construção de um programa, de um projeto mínimo contra esse projeto político dominante. Óbvio que isso não vai se dar de uma hora pra outra, mas nós estamos vendo como uma perspectiva interessante. As pessoas que acreditavam ou acreditam vão fazendo a experiência sucessivamente com as organizações tradicionais que apodreceram completamente. É óbvio que não vai se dar de uma hora pra outra, mas se não tiver algum clima organizativo, algum polo que aglutine e potencialize essa revolta, realmente a tendência é de essa energia se dissipar.

: Você mencionou também a questão dos conflitos, dos posseiros nos quilombos urbanos. Como está isso hoje?

Houve um acirramento disso. A gente está vendo sucessivamente nos territórios, mesmo nos urbanos, ações de pessoas entrando, ocupando, criando situações de conflito, duas lideranças foram assassinadas em Porto Alegre por um grileiro que entrou na comunidade. A gente está vendo isso acontecer em Morro Alto, e está vendo isso acontecer nacionalmente, pessoas que vão e são o ovo da serpente e estão ali armando mesmo. Isso se acirrou nos últimos quatro, cinco anos. Esse processo avançou muito em função da inércia do Estado pra cumprir com suas obrigações de demarcação, isso foi uma carta aberta que permitiu que a jagunçagem viesse com tudo para dentro dos territórios. Isso não é lá no nordeste, não, aqui, como eu falei, teve dois assassinatos, no ano passado, em Morro Alto. [Houve] duas tentativas de homicídio, nós tivemos um cara que invadiu uma parte do território quilombo da família Fidelix, a gente tem muito problema nos quilombos urbanos em relação aos entornos, muitas vezes é uma situação delicada, então, esse é um quadro generalizado.

ENTREVISTA COM ONIR ARAÚJO, pelo viés de Caren Rhoden, Tiago Miotto, e a colaboradora Bruna Homrich.

carenrhoden@revistaovies.com

tiagomiotto@revistaovies.com

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