O TEATRO PEDE SOCORRO

O Espaço Cultural Victorio Faccin e a luta dos atores pela dignidade dos palcos

 

Há exatos 50 anos, o Brasil iniciava uma longa jornada noite adentro, atravessando o mais extenso, cruel e mortífero período ditatorial da história da República. Com a suspensão dos direitos políticos mais básicos da população e o aniquilamento do dissenso parlamentar, a ditadura militar instaurada pelo golpe do 1º de abril de 1964 tratou de condenar às sombras, também, boa parte da produção artística nacional, através da lâmina fria da censura e do assédio moral praticado contra milhares de atores, escritores, músicos e artistas das mais variadas linguagens. No teatro, foi a época dos insurgentes Arena, Opinião e Oficina, com sua linguagem de contestação e enfrentamento ao regime dos militares. A ascensão do teatro amador, os laboratórios de contraponto político-estético ao domesticado Teatro Brasileiro de Comédia e o encontro das tradições de raíz popular brasileira com a profanação teatral de Brecht configuravam, naquele momento, um caldeirão de elementos explosivos a desafiar o olhar inquisidor dos censores e sua exigência de silêncio.

Mas não foi só nas grandes capitais que o teatro se levantou contra o fogo e a mordaça dos militares. Em Santa Maria, cidade da região central do Rio Grande do Sul, pioneira na condição de sede interiorana de uma Universidade Federal – o ano de criação da UFSM coincide com o ano que sujou de um verde dissimulado a memória nacional -, pelo menos um grupo também incorporou a lógica do teatro como ferramenta de transformação social e somou a voz ao coro dos descontentes. Esse grupo era, e ainda é, o TUI – Teatro Universitário Independente -, bloco dissidente do antigo TUSM (Teatro Universitário de Santa Maria), que também daria origem a outra companhia célebre da cidade, o Grupo Presença.

Em seu histórico, o TUI registra os mesmos percalços, vitórias e perseguições a que foram submetidas as companhias teatrais de veia contestadora durante a ditadura: foram aclamados com o reconhecimento do público num festival colombiano em 1968 (o Primeiro Festival de Teatro Universitário Latino Americano, realizado em Manizales), que contava com Pablo Neruda como um dos organizadores; tiveram espetáculos proibidos sob acusação de “tráfico de dramaturgia subversiva” com grupos criminalizados pela repressão; sofreram o boicote sistemático e incansável das instituições de amparo à ditadura, entre os quais se destaca o episódio em que Mariano da Rocha (criador da UFSM e reitor da instituição nos primeiros anos de atividade universitária em Santa Maria) teria usurpado a verba de um prêmio conquistado pelo grupo, cujo destino seria a construção de um teatro de arena, para investi-la, à revelia dos atores, na menos incômoda Boate Universitária. “O Mariano falou que teatro não dava dinheiro, mas na verdade foi uma jogada estratégica para impedir que uma cidade universitária como Santa Maria tivesse um teatro de arena, isso podia ser perigoso pra eles”, pondera Cristiano Bittencourt, ator e gestor da atual configuração do TUI.

Contrariando as expectativas, o TUI não só sobreviveu aos anos de chumbo como persiste até hoje como uma das companhias mais longevas da cidade. Em 1994, depois de vagar do popularíssimo Cine Teatro Coliseu até o anonimato de um teatro improvisado em um depósito subterrâneo, o grupo reformulado do TUI se estabeleceu, enfim, no Espaço Cultural Victorio Faccin, um prédio multifuncional no coração do Bairro do Rosário, região contígua ao centro de Santa Maria. Após muita luta pela regularização do espaço – nomeado em homenagem ao pai de Clênio Faccin, criador e espécie de tutor do TUI -, o grupo logrou tirá-lo da clandestinidade e formalizou sua condição de “casa de lazer noturno”, que é como o Espaço Victorio Faccin consta até hoje no livro de arrecadação do município, por conta da irracionalidade burocrática vigente. “Para o Schirmer, isto aqui é o ‘Esporte Clube Victorio Faccin’, ele mal sabe que a gente existe”, conta Felipe Martinez, diretor do Teatro Por Que Não?, lembrando risonho de um encontro com o prefeito em que ficou clara a ignorância administrativa quanto à natureza do espaço.

Hoje, o TUI é co-gestor do Espaço Cultural Victorio Faccin ao lado do Teatro Por Que Não?, grupo de jovens atores e diretores egressos do Curso de Artes Cênicas da UFSM. Atualmente, ambos os coletivos estão empenhados em arrecadar recursos para a reforma do teto e do piso do teatro que funciona no espaço, comprometidos pela ação dos cupins. Conversamos cerca de duas horas com Cristiano Bittencourt, Marcele Nascimento (TUI) e Felipe Martinez (TPQÑ?), sob a copa frondosa de uma mangueira no pátio do Victorio Faccin. Desta insólita conversa sobre arte, política, universidade, descaso e cupins foi possível organizar os trechos que você lê a seguir. Embora extensa, a entrevista é elucidativa sobre o passado, o presente e os possíveis futuros do teatro em Santa Maria.

*Atualmente, o TUI e o TPQÑ? estão em plena divulgação de uma campanha de financiamento colaborativo para a reforma do Espaço Victorio Faccin, através da plataforma virtual Catarse. Ao final do texto, há um link para quem deseja colaborar com a labuta dos dois grupos.

Cristiano, Marcele e Felipe em meio a tensão e expectativa quando ao futuro do Espaço Victorio Faccin/ Foto: Graciane Martini

  Há quanto tempo existe o Espaço Cultural Victorio Faccin?

Cristiano Bittencourt (CB): O TUI (Teatro Universitário Independente), fundado pelo Clênio Faccin, veio pra este terreno em 1994, embora existisse desde 1961. Durante alguns anos, isto aqui funcionou só como depósito e local de ensaio, até que em 1998 a gente abriu as portas para o público, ainda clandestinamente. Em 2001 a gente começou a correr atrás da papelada para oficializar o espaço, e não conseguimos. Aí veio um pessoal da universidade (UFSM) pra cá, primeiro o Bando (Luiz Fernando Marques), depois o Chico (Francisco André Freitag), depois o Ricardo Martel. Já em 2002, a gente tinha certeza que precisava oficializar mesmo, porque não podíamos divulgar nenhuma atividade na mídia.

Marcele Nascimento (MN): Nessa época, antes de eu chegar ainda, o pessoal fazia leituras dramáticas aqui, espetáculos infantis, mas tudo clandestinamente.

CB: Daí em 2006 a gente conseguiu dar andamento pra papelada, e  só em 2008 obtivemos o alvará de funcionamento, por causa da burocracia. Então fizemos uma parceria com a ASPAC (Associação Santa-Mariense de Profissionais das Artes Cênicas), através da Fátima Marques, e isso viabilizou a verba que a gente precisava para o espaço. Não existia e não existe na lei de Santa Maria esta definição “Casa de espetáculos teatrais”, existem dois teatros, um municipal e outro federal (o Theatro Treze de Maio e o Caixa Preta, no campus da  UFSM, respectivamente), aí a prefeitura não sabia como nos enquadrar. Aí pra nossa “satisfação” eles nos enquadraram como uma casa de lazer noturno, é assim que nós constamos no livro de arrecadação do município.

 Mas o TUI, que foi o primeiro grupo a ocupar este prédio, na verdade, é muito mais antigo que o Espaço Victorio Faccin, certo? Qual a história deste grupo, em que contexto surgiu, quem fazia parte, etc.?

CB: Assim, tinha um grupo muito forte, a União Santamariense dos Estudantes (USE), nas décadas de 50 e 60. Já existia o Edmundo Cardoso que fazia teatro, os estudantes do ginasial da época assistiam os espetáculos no Coliseu, havia uma movimentação teatral na cidade. Por esta época, início dos anos 60, o Clênio Faccin e alguns colegas de faculdade fundaram o TUSM (Teatro Universitário de Santa Maria), e estrearam em 1961 com uma peça chamada “Amor a Oito Mãos”, que era um texto do Vinícuis de Moraes, depois “Figueira do Inferno” em 62… Eles estavam preocupados em montar textos de autores brasileiros, de olho no movimento de arena que estava surgindo no Brasil. Era o momento dos teatros amadores, Maria Clara Machado já tinha estourado com o Tablado, no grande eixo Rio-São Paulo, Porto Alegre conseguiu explodir com um grupo local que deu origem ao que hoje é a Terreira da Tribo, a Tribo de Atuadores…

  E como o TUI se encaixava nesse panorama mais amplo do teatro brasileiro? Como o grupo definiu o seu perfil?

CB: Aí os grupos começam a trocar os textos entre si, e então todos os grupos de Rio e São Paulo, isso em 67, pós-golpe, são proibidos de encenar todo e qualquer texto de grupos que tivessem a nomenclatura “arena”. E o que esses grupos fazem então? Eles mimeógrafam todos os textos e começam a difundir, antes mesmo da publicação. A trilogia do Boal chegou às mãos do Clênio Faccin, fundador do TUI. O Mariano da Rocha, um baita dum filha-da-puta na minha opinião, um cara da direita extrema, dividiu o TUSM em duas ramificações, uma originou o TUI e a outra originou o Grupo Presença. O Presença, do Freire, mais aliado à universidade, e o Clênio com o TUI mais à margem. Nesta época, 68, eles (o TUI) montam o “Arena Conta Zumbi”, a censura assiste e proíbe que apresentem a peça em território nacional. Aí surge um movimento liderado por Pablo Neruda, que queria organizar em Manizales (Colômbia), que ainda nesse momento era uma área neutra, o Primeiro Festival Latino-Americano de Teatro Universitário. Porque em 1968 foi o boom dos teatros universitários. E o TUI (TUSM na época) foi a esse festival, com o Clênio, Circe Rocha, várias pessoas do movimento estudantil, todos ainda universitários. Eles não vencem o festival, mas conquistam o prêmio do júri popular. Era um espetáculo falado em português, com uma estética de vanguarda europeia e texto brasileiro, buscando uma estética nacional. Foi uma grande miscelânea que deu certo. Aí a verba da premiação, que seria usada para a construção de um teatro de arena, foi depositada na conta da universidade, e acabou sendo usada na construção da atual boate do DCE.

  Como assim? E qual foi a reação do TUI a esse boicote?

CB: Daí o Clênio brigou com a Universidade e abriu um processo judicial contra a reitoria, mas óbvio que em plena ditadura militar esse processo não foi pra frente. Aí a UFSM quis custear uma ida do TUI pra Nova Iorque, pra ficar na Broadway, pra tentar apagar o fogo. Então o grupo se recusou a aceitar a grana, foi por conta própria. Mas foi pra divulgar o problema que estava acontecendo em Santa Maria, apresentou espetáculo. Quase todos os espetáculos que o TUI apresentava eram espetáculos que haviam sido já censurados no Rio e em São Paulo, era a estratégia para divulgar a dramaturgia que sofria censura.

  Aqui em Santa Maria, o TUI apresentava onde, antes do Espaço Victorio Faccin?

 CB: Cine Teatro Coliseu, que é onde fica hoje a lancheria Big Lucão, onde foi o jornal A Razão também. O Theatro Treze de Maio nesta época era o Centro Histórico Cultural. Os espetáculos ficavam até 40 dias em cartaz no Coliseu, com plateia lotada, mais de 3000 pessoas. Por volta dos anos 80, isso muda, por conta da popularização das antenas que captavam a tevê aberta. Daí o movimento teatral migrou quase todo pro porão do Clube Comercial, na praça. Até 1992, ali funcionou um teatro de arena. Hoje aquele espaço é um depósito de batatas. E logo, a Dona Ruth Pereyrón vem com o movimento de reabertura do Theatro Treze de Maio.

  E o nome do espaço, por que chama Victorio Faccin?

CB: Era o pai do Clênio, que veio da Itália. Este terreno foi um dos lotes que ele ganhou do governo brasileiro por ser imigrante europeu. Aqui já funcionou depósito, fábrica de brinquedos, até de caixão. Foi até Igreja, a Assembleia de Deus. Tanto que embaixo do nosso palco tem o poço dos milagres, um poço azul enorme, onde as pessoas jogavam objetos, pedindo milagres. 

Felipe Martinez (FM): Já não era muito diferente de um teatro (risos).

 

 E o TPQÑ?, qual foi o percurso desde um grupo universitário até se tornar gestor do Espaço Victorio Faccin ao lado do TUI?

FM: Nunca fomos considerados um grupo alinhado com o que se fazia na universidade, desde os tempos do “Abajur Lilás” (peça baseada em texto de Plínio Marcos), que foi nosso primeiro trabalho a circular. A gente teve que ouvir de professores que nosso trabalho não representava o que era feito lá. A experimentação deveria ser o principal foco do curso de artes cênicas na universidade, mas não é assim, tua experimentação é podada, tu tem que fazer segundo um molde que já existe, dentro do que “é certo”. No TPQÑ?, nós já fomos 8, hoje somos em 5. Então a gente teve uma transição lenta pra fora da universidade, de acordo com o ritmo com que as pessoas iam se formando. Pra nós isso foi muito positivo, conviver tanto com a universidade quanto com o trabalho aqui fora. Mas nossa ideia sempre foi criar espetáculos que a gente pudesse apresentar fora da universidade, porque ninguém vai ao Caixa Preta assistir as peças, só alunos e amigos. Não interessa se é de graça, muita gente nem sabe que existe. E a gente queria ir onde as pessoas estavam, e nisso o Abajur ajudou muito, por ser um espetáculo que podia ser apresentado em qualquer lugar, em bares, garagens. Quando a gente começou a experimentar o universo fora da universidade, descobrimos que as coisas iam ser complicadas, porque na faculdade a gente não estudava como fazer teatro aqui fora. E um dos melhores lugares que a gente tinha pra apresentar era o TUI, a gente sempre teve uma relação muito saudável com eles, que nos faziam muitos descontos pra gente poder apresentar (risos). Porque a gente tinha que ter o retorno da bilheteria pra manter o grupo, e o TUI precisava de grupos apresentando no espaço pra movimentar a agenda e pagar as contas. A gente vinha aqui e dizia, “queremos fazer uma apresentação, mas não temos grana pra pagar o aluguel, dependemos da bilheteria pra isso”, e o pessoal: “claro, vamos lá!”. Tinha uma confiança já, e aqui a gente podia cobrar pelos ingressos, coisa que não é possível fazer no Caixa Preta.

  E quanto a formar público para o teatro, vocês acham que a universidade contribui de alguma forma?

FM: Muito pouco, porque falta interesse nisso. Era uma das brigas grandes que eu tinha lá, que foi uma das tristezas que eu tive também ao ouvir que a gente não representava o curso, ao tentarmos levar as pessoas pra lá. A gente começou a criar programações no Caixa Preta, coisas que a gente faz aqui hoje e que a gente tentava fazer lá, que eram gratuitas. Claro, tem a dificuldade de levar as pessoas até lá, até Camobi, depende de ônibus, etcétera e tal. Mas seria possível. Mas não forma público, falta vontade pra isso. Acredito até que a licenciatura (em artes cênicas) contribui mais hoje pra isso.

MN: Sim, porque o pessoal leva as crianças, as escolas pra ver os espetáculos, no Caixa Preta, aqui também.

  E esse negócio do teatro ainda ser considerado uma arte para as elites, de um modo geral, como vocês veem isso?

CB: É o problema do brasileiro, na minha opinião, uma construção histórica que precisa ser destruída, porque senão não vamos resolver nada. O teatro brasileiro começou catequizando índio, ajoelhando dentro dos paus ocos, e os índios lá com a sutileza deles. Apenas duas tribos com disposição bélica para guerrear, mas a tecnologia portuguesa era maior. Então é óbvio que os portugueses iriam vencer essa batalha. O teatro foi um dos recursos mais explorados pela Companhia de Jesus na conquista. As Missões, as pessoas falam até hoje do ouro que ia embora pra Europa dentro dos santos do pau oco, mas esquecem que os padres entravam nesses santos e manipulavam eles como uma máscara grega, os índios olhavam e diziam: “olha, é Tupã, um pedaço de pau falando”. Acreditavam que era Tupã. Então o teatro já começa equivocado no Brasil. Durante todo o Brasil Colônia, no Império, é equivocado. Depois, quando o Brasil vira uma República, o teatro é pra quem? É pra elite, busca-se companhias francesas pra quem pode pagar. Se nós enquanto brasileiros, tupis-guaranis, tapes, seja lá que diabo for, se nós tivéssemos tido tempo e não tivesse sido extinto um processo, nós teríamos uma manifestação corpórea próxima ao teatro, porque em todas as partes do mundo se desenvolveu isso. Mas isso nos foi podado com a chegada da Companhia de Jesus. Após todo esse processo histórico, nós caímos numa república que importou um teatro extremamente europeu. Nós tivemos um movimento modernista que buscava um brasileirismo, mas também não era isso. Ninguém sabia de fato o que seria, ou se existia, o teatro brasileiro. O teatro brasileiro, no meu entendimento, começou a busca por sua identidade nos anos 60. Quando se obrigou a deixar de ser arte pela arte, para virar um veículo de denúncia. Volta à sua origem grega, a gente esquece que teatro é comunicação, por outro viés, mas é comunicação. A gente fica muito no mise-en-scéne, e esquece a sua essência. A partir dos anos 60 isso se inverte, porque você não tem como treinar, você tem que combater um inimigo muito grande, que eram os militares. Aí os grupos resgatam essa busca por uma teoria da comunicação, beleza, vou montar o Arena, que eu quero dizer com isso? Começam a se preocupar com isso. Isso forma público, isso forma plateia, tanto é que o Cine Coliseu era lotado. O TUI chegava no teatro e as pessoas gritavam: “um povo que não ajuda e fomenta seu teatro, se não está morto, está moribundo.” Sabe? As pessoas começavam a discutir o teatro.

  E a relação dos grupos independentes da cidade com o Curso de Artes Cênicas da UFSM hoje, como se dá? Existe esta relação?

CB: Antes nós não podíamos entrar na universidade, nós éramos barrados. Éramos convidados pra participar de alguns espetáculos, mas diziam: “não, é amador, não pode, não tem a técnica”. Com todo apreço às pessoas e suas pesquisas estéticas na universidade, mas muitas nos barravam lá, até pra assistir espetáculos. Eu já fui retirado de cena de um espetáculo, que nem foi apresentado. Era muito ruim mesmo (risos), mas tinha uma coisa “pior” que o espetáculo, que era a presença de um autor formado, ou “deformado” como diziam, pelo Clênio. Em 1996, num período que o curso precisou de atores amadores por falta de elenco, isso ficou um pouco mais tranquilo. Mas a maior deficiência do curso hoje é que ele não ensina a produzir, não se constrói a realidade cotidiana do teatro do Brasil, se constrói uma realidade universitária, onde você tem amparo e estrutura, fora isso não tem nada. Não ensinam a ler e compreender nem uma Rouanet (lei de incentivo).

FM: Na verdade se ignora o próprio teatro brasileiro, o que é uma pena. Começando pelo teatro de Santa Maria. Isso é uma coisa que só depois que eu entrei aqui, que eu descobri o universo que era o TUI, eu pensei: como é que nunca ninguém me falou disso antes? Daí tu descobre, claro, o teatro anterior ao TUI na cidade, claro. Existe um universo tão grande que estava ao lado da minha casa, e eu pensei, putz! Eu podia muito bem ter descoberto sozinho, mas podia muito bem a universidade ter me conduzido a essa descoberta. A gente não estuda os grupos de Porto Alegre, é um semestre só no curso para estudar o teatro brasileiro. Ou seja, é impensável condensar em uma aula semanal durante um semestre todo o teatro brasileiro, se resume a ver as principais referências, como Nelson Rodrigues. Eu gosto muito, mas acho que não traduz o teatro brasileiro, e ignora totalmente a realidade atual. Não dá pra estudar uma pequena parte do todo e achar que conhece o teatro brasileiro, não tem como.

  E como foi a chegada do TPQÑ? no espaço, depois de anos de gestão solitária do TUI?

FM: Nossa chegada no Espaço Victorio Faccin acontece num momento crucial pra nós, que é quando a gente teria que decidir se ficávamos ou não em Santa Maria. Porque essa era um dúvida, ir pra São Paulo, ir pra Porto Alegre, diluir o grupo ou ficar em Santa Maria. E como ficar em Santa Maria? E aí vem uma coisa que eu percebo, que parte da culpa do vácuo que aconteceu no teatro na cidade é de nós artistas também. Houve uma descrença muito grande, houve pouca tentativa, e com um número muito pequeno isso não ia se consolidar nunca, precisava de algo como aconteceu aqui, uma fusão, uma parceria. Não adianta um grupo trabalhar lá e outro aqui e achar que o movimento teatral na cidade vai magicamente se fortalecer. Não existe concorrência, é absurdo pensar isso. É impossível trabalhar se não for junto. A gente trabalha com o TUI, com a Retalhos, com o Candeia. Se for ver todos os espetáculos que o TPQÑ? montou, metade foi em parceria com outros grupos.

  E como funciona administração do espaço?

FM: Um dos grandes ganhos administrativos dos dois grupos foi fazer com que o espaço pague as próprias contas. O espaço não paga ninguém, mas ninguém paga pro espaço existir. Quer dizer, a gente paga com trabalho, claro. 

MN: A única divisão que tem é essa, um de cada grupo cuida da contabilidade do espaço, tem as senhas do banco, paga as contas. Mas tudo é decidido em reunião. 

FM: A própria campanha (no Catarse) é fruto disso, dessa maturidade, a gente tentou fazer antes, mas a gente precisava desse tempo, pra amadurecer a relação entre os dois grupos.

A ação dos cupins, que comprometeu a estrutura do teatro, serve também como apelo na campanha bem-humorada no Catarse/ Foto: Graciane Martini

  E qual foi o problema determinante para a criação da campanha no Catarse? Alguma complicação com alvarás, depois da tragédia da Kiss?

MN: Na verdade, não estamos complicados com alvarás. Nós passamos dois meses fechados, com mutirão de trabalho, logo que houve a tragédia, pra organizar o que estava em aberto.

FM: Nós estávamos regularizados, mas com a tragédia, mesmo sem mudar a lei, mudaram as exigências.

CB: Nós éramos classificados como F1, o mínimo de periculosidade, e agora somos F5, que é o máximo. 

FM: Isso ainda não é 100% certo, porque os bombeiros tem que vir ainda. Segundo o engenheiro, isso vai acontecer. Inclusive o engenheiro que a gente chamou elogiou a capacidade de evasão do teatro, porque a gente nem tem uma capacidade de público grande. É pra 90 pessoas. E pelas nossa saídas, a gente poderia botar 300. Mas precisa de extintores, barra anti-pânico etc.

MN: E a questão do nosso madeirame, que ele pediu pra gente substituir ao máximo por metal. O nosso camarim mesmo, que era alto e de madeira, a gente já tá rebaixando, vai ser no chão, pra ficar no concreto. O palco, claro, não tem o que fazer, é madeira. Mas quando a gente trocar o teto, vai ser quase tudo de metal, as vigas todas de metal.

  Mas o Espaço Victorio Faccin hoje está impedido de funcionar? 

MN: Não, ninguém nos fechou. 

FM: O que aconteceu foi que a gente percebeu uma evolução pra pior no quadro da estrutura, por causa dos cupins. Atores afundavam o pé no palco, a gente teve que trocar umas tábuas de modo emergencial, porque elas estavam inviáveis. Mas para além dos 25 mil previstos pra essa reforma, a gente ainda vai precisar de cerca de 7 mil extra para extintores, luzes de emergência, sinalização etc. Tem que ter extintor até aqui no pátio, mesmo que a gente não realize eventos aqui. Resolvemos fazer um projeto de 25 mil pra não arriscar, e pra conseguir logo a grana pra dar jeito no teto e no chão do teatro.

 Felipe, e a carta aberta aos vereadores que tu publicou nas redes sociais? Há pouco tempo tu recebeu uma menção da Câmara pelo teu trabalho no teatro, mas pelo visto isso não se traduziu em apoio concreto ao espaço.

FM: Esse é um ponto muito importante. As pessoas perguntam o porquê da campanha no Catarse. É pra conseguir o dinheiro e consertar o teto, é por causa dos cupins, claro. Mas principalmente, foi a solução mais rápida e funcional frente à administração medíocre que a gente tem hoje. A gente sabe que pode ter problemas com os bombeiros, e por mais absurdo que seja, a gente não consegue ser aprovado numa LIC Municipal, enquanto uma Igreja Evangélica aprova um projeto de reforma do templo. Ironicamente, é a mesma quantia, se não me engano. E a gente sabe que eles vão conseguir captar tudo, com certeza isso já está pré-captado. A gente não consegue aprovar, porque somos grupos independentes que administram um espaço privado com fins lucrativos. A gente não é hipócrita de dizer que não tem fins lucrativos, porque sem isso a gente não vive. Mas acontece que não tem nenhuma lei de incentivo hoje em Santa Maria que contemple um espaço como o nosso. E mesmo que tivesse, poderia demorar anos, como é o caso do Bombril, da Casa de Cultura. E como as eleições estão longe, a tendência é que a prefeitura não invista na gente. E existe esta ferramenta, com o apelo que o Catarse tem, que a gente decidiu usar. Então teve essa homenagem que eu recebi, que não foram os vereadores que deram, eles apenas aprovaram a indicação da Iara Druzian, ex-secretária de Cultura. Foi um prêmio que recebi em nome do grupo e do espaço, na verdade, um prêmio coletivo. No meu próprio discurso ao receber o prêmio, eu fiz questão de dizer isso, que infelizmente receber essa homenagem não significava maravilha nenhuma. Se desse pra trocar isso por alguma coisa efetiva em prol do nosso trabalho, eu trocava. 

CB: O TUI parou de tentar aprovar projetos na Lei de Incentivo à Cultura Municipal, porque não havia chances ao competirmos com projetos da própria prefeitura, como a Feira do Livro, a Tertúlia, a Feísma, a Festa do Carreteiro. Não sobra pra quem é independente, no final. Como as empresas registradas no Simples estão descartadas, sobram poucas que podem apoiar os projetos. E empresário quer a visibilidade que a gente não pode dar, não tá interessado no valor humano, artístico, de um projeto. 

FM: Então a gente tem que contar com os apoios individuais, porque não temos um poder público que dê conta disso. Embora as pessoas possam dizer: “eu já pago pra cultura acontecer, quando eu pago impostos”. Enfim, a merda é grande.

  O investimento em cultura no governo do prefeito Cezar Schirmer (PMDB) até hoje, acarretou algum benefício para o Victorio Faccin?

FM: Muito pouco, alguma atividade que a gente conseguiu incluir no Mês da Cultura, mas a contrapartida que a gente tem que dar é sempre maior que o incentivo, no final a gente trabalha de graça. Eu não sei bem o que interessa ao governo atual, mas nós obviamente passamos longe disso. A Iara Druzian fez pouco, e a nova secretária, Marília Chartune, a gente tinha uma expectativa, por ser uma artista, mas se mostrou muito fraca. Gosto dela como pessoa, mas esperava mais. E o cargo de secretária de cultura é moeda de troca, a pasta não tem orçamento, nem um nome com conhecimento na área. A secretaria tem um limite de orçamento, eles são fodidos, não tem grana pra cultura. A gente estava pedindo uma placa de indicação do espaço, porque as pessoas não sabem onde fica, se perdem. Daí o cara chega 15 ou 20 minutos atrasados, porque estava procurando o espaço, e a gente não pode deixar entrar. Uma plaquinha simples na praça resolvia. Na última eleição, em 2012, falaram que estavam fazendo a tal placa. Estamos esperando até hoje. Eu entendo que há outras áreas prioritárias para o município, mas há um descaso imenso com a cultura.

CB: Existe dentro do legislativo um conselho de cultura, nomeado pela Câmara, o representante de cada setor recebe por sua função. Mas isso é uma palhaçada, reverte esse dinheiro pra cultura, não pra quem vai ficar tomando uísque e cafezinho sem fazer nada. Que adianta dar grana pra quem não vai mover uma palha? A distância entre teoria é prática é enorme, por isso eu parei de frequentar esses conselhos. São cargos de confiança camuflados, que não fazem nada. 

FM: O que a gente tem que cuidar com um projeto assim, é não fazer com que o sucesso de uma campanha de financiamento colaborativo sirva para o poder público lavar mais ainda as mãos em relação à cultura.

CB: Até o índio Chiquinha falou isso: Santa Maria é o único lugar do mundo em que um artista de rua precisa retirar uma autorização para estar na praça. Tanto que ele saiu algemado do Calçadão. Eu era petista, mas me desfiliei quando percebi o nível dos secretários de cultura do partido. Fiquei apavorado. Publicamente, um escroto de um secretário falou: “esse povo do teatro não me dá trabalho, porque sabe tirar leite de pedra”. Eu estava de nariz, subi no palco e pedi licença, olha senhor secretário, com todo respeito, mas se a gente quisesse tirar leite de algum lugar, a gente comprava uma vaca, seria mais racional. E olha que não dá nem pra reclamar, porque tem muita gente do partido que tá ajudando na campanha do Catarse. A atual secretaria mal sabe que a gente existe.

Os domingos culturais no Espaço Victorio Faccin reunem gente interessada em arte e diversão no Bairro do Rosário/ Foto: Rodrigo Ricordi

  E em caso de fracasso da campanha, existe um plano B? 

FM: Eu sou otimista, eu acredito que a campanha vai dar certo. E caso não desse, a gente não fecharia as portas de todo, isso aqui viraria um espaço de ensaio, até que a gente reunisse forças para uma nova campanha.

CB: Eu acho que a questão seria perguntar para a prefeitura: vocês querem que a gente volte a funcionar clandestinamente? Porque parar, a gente não quer parar. E teria uma outra solução, que é a ocupação pública.

Neste link, é possível colaborar com a campanha para reforma do Espaço Victorio Faccin: http://catarse.me/pt/cupim Mas atenção: as doações serão recebidas apenas até o dia 07 de abril de 2014. 

O TEATRO PEDE SOCORROpelo viés de Atilio Alencar¹

1.  Atílio Alencar é produtor cultural e midialivrista, formado em História pela Universidade Federal de Santa Maria.

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