Fernando Resende: "Vários protagonistas estão presentes em qualquer acontecimento".

Foto: Bibiano Girard.

Como narrar um acontecimento complexo sem apontar para heróis ou vilões? Para Fernando Resende, professor da Universidade Federal Fluminense no departamento de Estudos de Mídia e no Programa de Pós-Graduação em Mídia e Estudos Culturais, não basta apresentar os “dois lados da história”, jargão repetido exaustivamente nos cursos de jornalismo. É preciso representar o dissenso, aquilo que não está em harmonia – afinal, a linguagem é antes um problema do que uma técnica. A tarefa, Resende admite, não é fácil.
O pesquisador esteve no dia 8 de maio em Santa Maria para ministrar a Aula Magna do Programa de Pós-Graduação em Comunicação, na UFSM. Durante a conversa, Resende apresentou sua pesquisa e criticou o pensamento dominante no campo comunicacional – o paradigma da informação, pautado por princípios positivistas, preocupado apenas com a transmissão. O projeto ideal de comunicação, para o professor, seria aquele que coloca em conflito os sujeitos do acontecimento e traz à tona um paradoxo; trata-se, portanto, do paradigma relacional, que não ignora a presença dos diversos “outros”.
A mudança não é tão simples. Para Resende, o problema não está em quem fala, mas nos modos de falar. Portanto, o interesse de sua pesquisa recai na construção de um real que nunca está dado, mas que se constitui por meio de uma trama narrativa. O pesquisador parte de uma premissa que desconstrói o imaginário do jornalista como o profissional que explicará os fatos – o que estaria em consonância com o paradigma da transmissão. Segundo o professor, o discurso jornalístico é apenas um dos mais diversos discursos que buscam falar a verdade. Admitir isso não significa cair em um completo subjetivismo, mas adotar uma postura que busque menos apontar certezas e mais indagar acerca dos fatos – estes que, por sua vez, nunca falam por si mesmos, mas são tecidos pelos modos de narrar do jornalista.
Na conversa a seguir, o professor Fernando Resende aponta para o difícil papel do jornalismo frente à complexidade dos acontecimentos, trazendo exemplos que vão das narrativas sobre o Estado Islâmico aos novos lugares de fala proporcionados pelas redes sociais na cobertura de protestos e ocupações. Acompanhe abaixo a entrevista.
 Professor, qual é o estado atual da tua pesquisa?
FR: O que me interessa é entender, no caso específico do jornalismo, como ele pode dar conta de narrar um fato de modo que evidencie para nós, leitores, o que naquele fato é o embate, a luta. Não é narrá-lo no sentido de dizer “isso aqui é A”, “isso aqui é B”, mas mostrar quais são os protagonistas que estão em cena naquele acontecimento. No caso da ocupação da Câmara de Vereadores, em Santa Maria, há vários protagonistas que são sujeitos de relevância para essa ocupação acontecer, por exemplo. Então a problemática é menos se o jornalismo está chamando aquilo de invasão – embora isso seja um dado importantíssimo -, do que a possibilidade de que aquele acontecimento apareça naquilo que der o embate. E aí, tanto o movimento Trançarua, como a polícia seriam protagonistas importantes – não tem um que seria mais, ou menos.
O meu problema é: o que o jornalismo faz com isso? Como ele vai lidar com esses protagonismos todos? Isso muda uma ideia de que eu, jornalista, estou no lugar, de que aquele ali é a minha fonte. Muda um princípio da própria relação que eu tenho com o acontecimento. É muito mais a ideia de mediação participativa, do jornalista que está dentro daquela história. De um ponto de vista teórico, digamos, seria a possibilidade dessa inserção do jornalista. O que não tem nada a ver com parcialidade ou imparcialidade.
 Isso seria possível numa mídia empresarial, em que geralmente um lado fica mais explícito?
FR: Acho que em todo jornalismo um lado fica mais explícito. E esse é o princípio do jornalismo: os interesses são sempre determinantes. A questão do jornalista que eu queria pensar é o que ele faz com todos esses interesses na mão.
 Então é menos um texto que crie uma harmonia e certeza ao leitor, e mais que questione.
FR: Que questione, muito mais. Temos exemplos. Na minha tese de doutorado, analisei o texto de um jornalista da Folha de S. Paulo. Ele tinha ido para o Afeganistão fazer uma entrevista com alguém que seria do Talibã. No meio da entrevista, o jornalista para e fala: “até aqui, foi tudo mentira. Esse cara foi orientado a me responder desse jeito”. O que esse jornalista mostra, nesse caso específico? Exatamente o processo dessa correlação de forças. Quando ele faz isso, ele coloca em evidência o fato de que o Talibã tem suas regras internas, que definem tal coisa, o que vão fazer com aquele sujeito. O jornalista poderia pensar “esse cara poderia ser um entrevistado ideal para o jornalismo”, porque ele vai dar todas as respostas que o jornalismo está esperando, entendeu? No entanto, ele [o entrevistado] está sendo orientado a responder desse jeito. O jornalista, sabe-se lá por que, não foi orientado – ou ele próprio não se autocensurou – a dizer “não vou colocar essa entrevista, ela é mentira. Que vou fazer? Dizer a verdade”.
Quer dizer, eu acho que ele sacou na hora que a própria verdade daquele acontecimento era muito complexa. E ele revela isso, ele dá isso para o leitor. É um exemplo que ajuda a entender um pouco melhor o que eu chamo de mostrar essa correlação, esse embate que acontece entre vários protagonistas que estão presentes em qualquer cena e acontecimento.
 Você comentou durante a Aula Magna sobre o jornalismo dualista que restringe certas pautas complexas, criando personagens duplos que são bons ou maus. E agora, sobre o Talibã, essa questão pode ser trazida também para o Estado Islâmico e a sua construção na mídia.
FR: O Estado Islâmico é um ótimo exemplo de um fenômeno complexo, no sentido de quais são as estruturas que estão por trás daquilo, fazendo aquilo acontecer – o que não significa justificar aqueles atos. Estou dizendo que a complexidade desse fenômeno é que coloca uma questão para nós. “Como eu posso dar conta disso, como jornalista?”. “O que eu posso fazer no meu próprio texto para isso aparecer?”

Eu acho que um dos problemas é quando o jornalista já parte para a rua tomado por uma crença de que ele sabe o que aquilo é. Isso já define muito o quadro do que ele vai apresentar. É o modelo explicativo: eu vou lá para ver o que é e para explicar a coisa. Não é um problema simples, mas da cultura do próprio jornalismo, de um imaginário (…) Mudar a forma de como eu concebo o meu papel, do que eu estou fazendo como jornalista, pra mim, seria o princípio. Eu iria para aquele lugar sem saber o que é.

Isso é um problema pra nós, hoje. Não é uma questão de identificar quem está certo ou errado, quem é o mal ou o bom. Isso é fácil; a gente sempre faz isso na ótica do poder. Sempre o errado é aquele que tem menos poder, é o que tá brigando com o poder instituído. E o jornalista, nessa lógica binária, parece que não consegue sair fora do poder instituído. Ele se torna outra lógica desse mesmo poder.
Então, o que eu estou tentando fazer na minha pesquisa é tentar pensar isso. Esses poderes estão em cena; o jornalista faz parte dela e não é um suprapoder; se ele faz parte dessa cena, como é que isso acontece do ponto de vista do acontecimento que vai ser representado? Eu reconheço que isso é uma perspectiva que requer muita aprendizagem e muito esforço de compreensão, e eu tento identificar alguns momentos em que isso aparece, pra ver se minimamente a gente consegue aprender um pouco também. Mas o que tá me dando mais condições de pensar isso é olhar para esses acontecimentos contemporâneos que a gente vive – a tragédia de Santa Maria, a ocupação da Câmara, o conflito Israel e Palestina. Essas complexidades são de uma evidência tão absurda que me parece que não lidar com elas é fazer igual avestruz, tampar a cabeça na terra. E eu acho que o jornalismo, por muito tempo, pôde fazer isso, porque tinha um quadro, um momento que dava conta. Mas hoje não temos mais condições de fazer isso.
 De manhã, na sua fala, você citou as situações de caos em que ao jornalista, inevitavelmente, só resta narrar. Tomando, por exemplo, o caso dos protestos de junho de 2013, em que mesmo os especialistas, como sociólogos e cientistas políticos, não sabiam explicar o que acontecia. Como o jornalista – que não é um sociólogo, que não tem uma linguagem científica -, pode dar conta desse fenômeno?
FR: Eu acho que um dos problemas é quando o jornalista já parte para a rua tomado por uma crença de que ele sabe o que aquilo é. Isso já define muito o quadro do que ele vai apresentar. É o modelo explicativo: eu vou lá para ver o que é e para explicar a coisa. Não é um problema simples, mas da cultura do próprio jornalismo, de um imaginário. Qual é o papel do jornalista? Aquele que vai explicar, elucidar, que vai trazer clareza pra coisa. Então mudar isso não pode implicar em obscurecer, não pode ser o oposto disso. Mudar a forma de acesso a esse conhecimento, do ponto de vista de um caráter que não seja explicativo, mas indagativo, é mudar uma forma de apreensão do acontecimento. Mudar a forma de como eu concebo o meu papel, do que eu estou fazendo como jornalista, pra mim, seria o princípio. Eu iria para aquele lugar sem saber o que é.

Não tem jeito, o jornalismo é mais um lugar de enunciação possível. Eu posso escolher olhar pra ele, mas eu posso escolher não olhar pra ele.

E aí talvez isso pudesse produzir outra narração, que é muito mais chegar identificando quem é A e quem é B, do que chegar indagando “o que você é”, “por que tá aqui”, para entender aquele fenômeno. Tratar desse acontecimento em erupção, em desenvolvimento, é um desafio para o jornalista. É olhar para aquela coisa que está acontecendo, e não como aquilo é, ou o que aquilo vai ter que ser para o que eu vou explicar. Essa outra possibilidade de uma narração do acontecimento parte do princípio de uma lógica não-explicativa. Eu acho que isso [o modelo explicativo] serviu em determinado momento, mas o que a gente tem, hoje, é outra perspectiva, diferente do paradigma informacional transmissivo.
 

Foto: Bibiano Girard.

 É eu ter o poder de colocar a questão em jogo.
FR: Em relação. Tem algo que acontece nos últimos 15 anos, talvez, que tem a ver com esses recursos tecnológicos, possivelmente colocando para gente essa imposição. A crise que o jornalismo fala tem algo a ver com isso, com a própria identidade: “o que é o jornalismo, então?”. Não acho que o jornalismo deve voltar ao que era, mas ver o que é possível e o que se pode fazer. Com todo esse avanço tecnológico, com essa condição de ter mais acesso às dimensões que são protagonistas nos acontecimentos, é inevitável pensar que o mundo tem, hoje, essa correlação [de forças] de modo muito mais imediato.
 O problema talvez esteja no fato de que o Facebook não é jornalismo.
FR: Acho que temos que aproveitar a existência do Facebook, que é também um fenômeno, e pensar o jornalismo com ele. “Não ser” jornalismo não pode significar que aquilo não nos diz respeito. Eu gosto de trabalhar com a ideia de que [o Facebook] não é jornalismo, mas tem algo de cunho jornalístico que acontece ali.

Talvez a palavra “mediação” devesse ter mais força pra nós no jornalismo, e menos as palavras “verdade” e “imparcialidade”.

Eu trabalho muito com quadrinhos e documentários, pensando o que há de cunho jornalístico neles, quais questões e potências eles colocam para mim e para o próprio jornalismo. O documentário é maravilhoso porque não tá preocupado com a ficção ou o fato. A gente, às vezes, tem muito mais verdades nele do que no jornalismo, e os recursos narrativos no documentário são abertos demais.
Esses lugares, que são parajornalísticos, extrajornalísticos, têm muito a ensinar. Não porque eles são melhores, mas porque tem alguma coisa que acontece ali que dá conta de escapar de uma lógica precária. Ou então a gente assume de vez que o jornalismo é sempre aquilo, que ele não tem outros recursos, que cabe a ele narrar o fato, que o fato é aquilo e pronto, acabou. Eu não faço parte dessa linha de pensamento. Porque eu gosto do jornalismo, e porque ali há um lugar importante de mediação, é que acho que a gente devia olhar para esses outros espaços que tem alguma coisa de cunho jornalístico. Como as redes, por exemplo.
 Ao mesmo tempo em que podemos pensar nas redes como possíveis transformadoras do jornalismo, como lidar com a falta de credibilidade delas e com a sua irresponsabilidade em disseminar boatos, por exemplo?
FR: Eu não acho que a rede é jornalismo, então essa ideia de que ali deveria haver algum tipo de credibilidade não é uma questão. Ela está ali e também produz algum sentido sobre o fato. Eu, no lado do jornalismo, acho que a minha credibilidade, hoje, deveria advir da relação que eu estabeleço com aquilo ali, e não com a ideia de que eu tenho um diploma, de que eu sou jornalista, de que eu falo a verdade.  Antes, no paradigma informacional, isso valia – eu digo “antes”, mas nós não saímos dele, ainda. A questão não é mais essa. A ideia de credibilidade está na própria apuração, por exemplo, no sentido de não buscar a única verdade, mas fazer daquilo o seu elemento mediador também. O que está na rede é um dado importantíssimo para o fato que eu vou costurar. Talvez a palavra “mediação” devesse ter mais força para nós no jornalismo, e menos as palavras “verdade” e “imparcialidade”. Não acho que seja uma questão de brigar com a rede, porque ela não estabelece relações com a credibilidade. Mas aquilo faz parte do acontecimento, do tensionamento, e aí eu, jornalista, não posso abrir mão daquilo.
 Porque antes a gente tinha mais certezas, né? Certezas erradas.
FR: É, a gente estabelecia certezas, e certezas muito calcadas em legitimidades. A própria ideia de que eu vou falar a verdade: isso era um pressuposto, era um dado. Para o paradigma relacional, isso é uma questão: é só mais um falando a verdade. Eu não sou o único. Não tem jeito, o jornalismo é mais um lugar de enunciação possível. Eu posso escolher olhar pra ele, mas eu posso escolher não olhar pra ele.
 O senhor falou da questão de representar o irrepresentável, de entender as limitações de representar. O papel que a gente vê no jornalista é ir a um lugar que não é o dele e contar histórias que não são as dele. Pressupõe-se que ele está representando. Pensando, por exemplo, nos indígenas que postam seus vídeos no CIMI, a noção de “irrepresentável” é a mesma quando eu estou falando da minha comunidade, da minha história?
FR: Eu acho que é, porque se pensarmos em polos – “eu” ou “ele” falar -, os problemas estão colocados no mesmo lugar. Eu vou falar da perspectiva desse “eu” que é tomado pelo próprio interesse. Não estou dizendo que isso seja algo ruim: é maravilhoso que os indígenas falem, que as ocupações tenham lugares de fala. A minha dúvida é o que o jornalismo faz com isso, porque se ele ficar nesse mesmo lugar, ele está nada mais do que reiterando, tomado de um poder instituído por lógicas que são da educação, e não de uma experiência. Aí é difícil, porque eu, jornalista, que tenho meu diploma, posso falar do índio – mas o índio não pode falar dele mesmo. Então, o que estou dizendo é que o jornalismo talvez devesse ser esse lugar extra que olha para isso e traz esses embates, esses problemas. Se não for assim, a gente vai ficar brigando nesses dois polos – eu falo, você fala.
Nessa ideia de uma representação, num sentido não-mimético, o irrepresentável é sempre dado. A representação instaura a falta, por princípio. No momento em que nós sairmos daqui e eu contar o que aconteceu, vou instaurar uma falta. Vocês também vão ter o trabalho de traduzir essa cena e, nessa passagem, alguma coisa disso aqui se perdeu. Outra coisa vai ficar, e é essa outra coisa que é o trabalho de vocês, de construírem uma narrativa em cima disso. Na lógica da narrativa que vocês vão construir, está a própria representação do acontecimento – e há algo nesse acontecimento que é irrepresentável.
Fernando Resende: “Vários protagonistas estão presentes em qualquer acontecimento”, pelo viés de Bibiano Girard, Dairan Paul Nathália Costa e participação de Aline Dalmolin*.
*Dra. Professora do Departamento de Comunicação Social da UFSM.
 

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