SORÔCO, FAMIGERADO E A TERCEIRA MARGEM DO RIO

Sorôco estava dando o braço a elas, uma de cada lado. Em mentira, parecia entrada em igreja, num casório. Era uma tristeza. Parecia enterro. Todos ficavam de parte, a chusma de gente não querendo afirmar as vistas, por causa daqueles transmodos e despropósitos, de fazer risos, e por conta de Sorôco – para não parecer pouco caso. Ele hoje estava calçado de botinas, e de paletó, com chapéu grande, botara sua roupa melhor, os maltrapos. E estava reportado e atalhado, humildoso. Todos diziam a ele seus respeitos, de dó. Ele respondia: – “Deus vos pague essa despesa… ”
O trecho do conto “Sorôco, sua mãe, sua filha” exposto acima é uma prévia do que o texto e as vidas estabelecidas pelos sentimentos escritos por João Guimarães Rosa nos propõe quando nos apoiamos calma e quase cientificamente às obras do mineiro.
O texto de Guimarães Rosa é visivelmente entorpecedor. Não há maneiras de lê-lo no ônibus, no restaurante, nas praças movimentadas distante de concentração. Para fazê-lo, segurar um livro como “Primeiras Estórias”, requer cuidado e benevolência com a leitura que há de se fazer. Deve-se dar tempo a Guimarães Rosa. Deve-se dar tempo aos neologismos e às pausas obrigatórias na sequencia da leitura pelo uso magistral de termos e passagens breves, entretanto, abarrotadas de sentido.
Joãozito, um menino acanhado com menos de 7 anos, começou a estudar francês sozinho, por conta própria. Com a chegada de um frade franciscano holandês, pode iniciar-se no holandês e prosseguir os estudos de francês sob a supervisão daquele frade.
Aos nove anos, Joãozito vai morar com os avós em Belo Horizonte e estudar no Grupo Escolar Afonso Pena. Iniciou o curso secundário no Colégio Santo Antônio, em São João del Rei, onde permaneceu por pouco tempo em regime de internato.
De volta a Belo Horizonte matricula-se em uma escola de padres alemães e aprende rapidamente o idioma. Aos poucos, João Guimarães Rosa tornava-se um poliglota. Falava português, alemão, francês, inglês, espanhol, italiano, esperanto e um pouco de russo. Lia sueco, holandês, latim e grego; estudou a gramática do húngaro, do árabe, do sânscrito, do lituânio, do polonês, do tupi, do hebraico, do japonês, do tcheco, do finlandês e do dinamarquês. Achava que estudar o espírito e o mecanismo de outras línguas ajudava muito à compreensão mais profunda do idioma nacional.
Foi por compreender o âmago do idioma nacional que Guimarães Rosa, um dos nossos mais relevantes escritores contemporâneos, historiou os contos “Sorôco, sua mãe, sua filha”, “A terceira margem do rio” e “Famigerado”, os três relançados na edição comemorativa de 40 anos da Editora Nova Fronteira do livro “Primeiras Estórias”.
Guimarães Rosa faz parte da Geração de 45, junto à Clarice Lispector e João Cabral de Melo Neto, com seu realismo mágico preciso, o regionalismo compreendido em “Famigerado” e propulsor de neologismos até hoje “mal traduzidos” pelos editores.
Seus personagens são felizes em serem tristes ou são tristes sem perceber. Os espíritos de Guimarães Rosa são ingênuos ao passo de serem intricados e sentidos no íntimo, no gesto, na cena de quem vai embora num vagão de trem para nunca mais voltar de uma loucura plena e comiserada.
O pai que sobe na canoa e com a família manterá contato pelo olhar, pelos símbolos criados numa vida inteira com o filho que levava alimentos e os pendurava na beira d’água. Famigerado coloca o idealismo de grandes homens à mercê de uma língua que não parece própria, assim como a escrita de Guimarães Rosa, que ultrapassa o simples português sem rebuscar. Guimarães Rosa é expoente da língua não por tê-la usado de forma culta ou tornando-a ilegível. Com a simplicidade das vozes regionais que ouviu em toda sua vida, desde quando morou em Itaguara, soube entrelaçar palavras das páginas de nossa gramática com o mais belo e pueril dos idiomas sertanejos e populares, rígidos em sua forma, difícil de compreender se não bem posicionado em uma frase. Foram as compilações de saberes que construíram suas gloriosas inovações na linguagem?
À primeira vista, “Primeiras Estórias” pode, falsamente, soar erudito de palavreado ininteligível, o que pode afastar o leitor recém apresentado ao autor. O que ocorre é a recuperação da escrita trabalhada a serviço da aura da estória, criando cena a cena uma língua própria da totalidade e do anseio que impregnará no leitor um sertão cheio de atores, principalmente, atores carregados pelo íntimo, personagens críticos e miseráveis de exultações extremas.
Gênero psicológico, gênero fantástico, gênero autobiográfico, todos num mesmo livro. Para terminar, as dicas da Estante, mesmo com o livro “Primeiras Estórias” relançado as 21 estórias completas, baseia-se nos contos “Sorôco, sua mãe, sua filha”, “Famigerado” e “A terceira margem do rio” . Três contos pequenos, significativos. Histórias bonitas e dolorosas.

SORÔCO, FAMIGERADO E A TERCEIRA MARGEM DO RIO, pelo viés de Bibiano Girard

bibianogirard@revistaovies.com

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