SOLO DAMANT, O CONTADOR DE HISTÓRIAS

O operário que pega o mesmo trem opaco, dia após dia, e traz nas mãos os calos que garantem trigo ao berço. O uruguaio que vem para o Brasil tentar a sorte com um restaurante, longe da família e sem poder ver os filhos pequenos que, enquanto isso, crescem. A dona de casa obcecada pela novela, que observa atentamente – até demais – as cenas cotidianas da vizinhança pela janela, enquanto sonha com a vida das celebridades. O rico executivo e a jovem faxineira que, embora oriundos de universos distintos, compartilham o mesmo andar do prédio e entrecruzam angústias e aspirações pelos corredores. Estes são alguns dos personagens de Solo Damant, MC que conta suas histórias através da música e, mais especificamente, do rap.

O MC, cujo nome é uma derivação do francês “Solo Demont” – o solitário do monte – narra histórias de gente comum e expõe, nos detalhes e na simplicidade de seus relatos, a riqueza e a multiplicidade da vida. Mas Solo Damant também é um personagem, assim como Marmontel Zancannaro, que assina as bases instrumentais e a produção musical de suas canções.

Ambos são criação de Thiago Gautério, este sim, de verdade – ou melhor, de carne e osso. Com 27 anos e natural de Porto Alegre (RS), Thiago vive da produção de áudio publicitário e tem na música e no personagem Solo Damant sua forma de se expressar, de questionar, de propor reflexão – mesmo que indiretamente, por meio das histórias de outros que, justamente por não existirem “de verdade”, acabam sendo um retrato possível das verdades que existem nas pessoas por aí.

Em uma nem tão breve entrevista, Thiago Gautério falou um pouco sobre música, arte e criação e também sobre a (sua) arte de Solo Damant e suas motivações.

Leia a entrevista abaixo e aproveite para conhecer o trabalho de Solo Damant (ou de Thiago, como preferir) e ouvir algumas de suas músicas – todas liberadas gratuitamente na internet:

– Quem é Solo Damant?

O Solo Damant é um MC que canta rap, criei ele por volta de 2007 com o objetivo de apresentar um trabalho acessível e simples.

Ele é um observador, que percebe os detalhes e procura ver além daquilo que as pessoas transmitem superficialmente; ele é como uma pessoa sozinha em um monte, olhando a todos atentamente e relatando todos detalhes.

– Como tu defines a arte do Solo Damant?

Eu diria que o trabalho feito pelo Solo Damant consiste, principalmente, em contar histórias através da mecânica e formato do rap.

Estas histórias geralmente retratam algum conflito ou problema de uma pessoa, sem a necessidade de que a história tenha um final feliz ou triste, ou nem mesmo que tenha um final, é apenas um filme daquela pessoa.

– Tu tratas o Solo Damant como um personagem. Como é essa tua relação com a produção artística que é assinada pelo Solo Damant? No que tu acreditas que ele, teu personagem, se diferencia de ti, o criador?

Essa relação é estranha, pois eu me vejo no trabalho do Solo Damant muito mais do que eu veria se assinasse como Thiago Gautério.

Sem este personagem, eu apresentaria a tendência de me defender e de não citar aspectos que me incomodam pessoalmente; criando estas histórias eu percebo que, de certa forma, eu sou todos os personagens e o Solo Damant é minha consciência, é aquele pensamento sábio e questionador das minhas ações, dos meus medos e vontades.

– Gostaria que tu contasses um pouco do princípio. Como começaste a escrever? De onde vem a tua relação com a música? Fizeste aulas de piano, não? E especificamente na relação com o rap, como ele passou a fazer parte da tua vida?

Por volta de 1995, 1996, comecei a gostar de rap, pois eu gostava muito de basquete e sempre que aparecia alguma cena de basquete em um filme, tinha algum rap tocando como trilha sonora.

Eu comecei a escrever em 1998, aos 13 anos, rimava em cima das músicas dos artistas gringos, não estou falando das instrumentais e sim das músicas com letra e tudo mais; eu gostava muito do Wu-Tang Clan, desenhava o símbolo deles onde quer que fosse, coisa de adolescente mesmo.

As aulas de piano vieram depois, lá por volta de 2001 e me ajudaram a ter uma noção básica de teoria musical, eu só comecei a fazer aula para me ajudar na composição das minhas instrumentais. Aliás, todo meu conhecimento em áudio, música e poesia só foi adquirido por conta do rap.

– E a cronologia do Solo Damant, qual é? Tem cinco músicas antigas e outros três singles lançados em uma nova leva. Quando foram lançados os primeiros? Tu disseste, outro dia, que as músicas antigas já não eram mais tuas. Poderias explicar isso?

Cara, no final das contas minhas músicas são um registro de alguma fase e daquilo que eu acreditava no momento em que eu as fiz. Quando eu soltei as primeiras músicas foi sem pretensão alguma, simplesmente subi no myspace e já era.

Já as últimas três músicas fazem parte de um suposto álbum que eu lançaria em algum momento no passado e que até hoje não foi lançado. Havia a ideia de trabalhar com maior seriedade e de maneira mais profissional, mas para mim, isso fez com que eu criasse um padrão de exigência tão alto que não foi saudável e o processo não fluiu como deveria, pois eu não estava pronto para produzir no nível de “qualidade” que eu imaginava.

E quando eu digo que as músicas não são minhas é porque não são mesmo, alguém subiu no youtube e outras pessoas põem pra baixar, isso faz com que elas não sejam mais minhas, são de todos e é assim que tem que ser a música.

– O som do Solo Damant é rap, mas é fácil de perceber que as tuas referências vão além disso e vêm de um leque maior. Pra ti, qual a importância desse cruzamento? Daria para dizer que o trabalho do Solo Damant propõe uma espécie de síntese? Gostaria que tu citasses algumas dessas referências importantes pra ti, mesmo que de maneira mais ampla.

Pra mim este cruzamento é natural e é natural na história da música. O que eu faço é pegar elementos pontuais de várias músicas de estilos diferentes e juntar numa só para dar a minha visão disso; eu faço a música que eu gostaria de ouvir, apesar de muitas vezes não conseguir chegar ao resultado esperado, mas este é o objetivo.

As referências que eu usei pro trabalho do Solo Damant variam de acordo com o elemento, eu não tentei imitar um artista específico, mas eu imito vários elementos de vários artistas diferentes, o que gera um trabalho único.

E quando eu digo imitar é imitar mesmo, usar o mesmo padrão rítmico do flow de um MC e misturar isso com a entonação de outro MC. Quanto mais elementos diferentes eu imito, mais eu crio algo que pertence a mim.

Alguns artistas que servem de referência são Marcos Valle, J Dilla, Jayme Caetano Braun, Brother Ali, Erykah Badu e a lista vai adiante.

– E Marmontel Zancannaro, quem é? Como tu definirias o trabalho dele? O rap tem bastante essa cultura do produtor, que normalmente faz um trabalho em cima de samples (“amostras” de som retiradas de outras gravações). As produções do Solo Damant, no entanto, contam com vários elementos orgânicos – instrumentos, sintetizadores e linhas melódicas. Como tu percebes essa questão do uso dos samples? Por que a opção por instrumentos reais?

O Marmontel Zancannaro é o produtor de tudo que eu faço, tudo que sai de mim musicalmente é feito por ele. Eu gosto muito de usar samples e acho isso importante pois estimula uma busca que não existiria se não houvesse o universo do sample e dos DJ’s; posso dizer que comecei a gostar de jazz porque pesquisei os samples das músicas que eu gostava.

Eu não toco nada a não ser piano e sou muito limitado, não me considero um músico e sim um produtor. Para gravar algumas músicas do Solo Damant eu convidei um pessoal pra cantar e para tocar sax, flauta, guitarra,etc.

– Como é o teu processo criativo? Tu mesmo que cuida de todas as etapas da produção? Pensas antes nas histórias, nas melodias, nos samples ou não tem necessariamente uma ordem? Ainda a respeito disso, tem alguma dessas etapas que te exige mais, ou alguma que tu curtes mais? Um processo como a mixagem, por exemplo, tu assumes como parte do processo criativo ou questão técnica?

Eu geralmente parto da instrumental. Para estas faixas do Solo Damant eu pensei em alguma base que eu gosto e tentei achar um sample com um clima que me leve a um lugar parecido, depois de ter a base já estruturada eu escrevi as letras e refrões, e este é o melhor momento pra mim, quando eu deixo a base loopando [repetindo] durante horas e sinto vontade de rimar em cima e de escrever, isso é muito bom e é de longe o melhor momento do processo criativo.

A mixagem para mim foi um problema, pois estava adquirindo experiência, mas hoje é algo que flui naturalmente e muito mais prazeroso. Durante a mixagem, eu cuido da parte mais técnica antes, como fazer os elementos da mix conversarem bem e depois eu vou para a parte mais criativa, de criar as texturas, trabalhar com o espaço, etc. Por mais que a mixagem seja vista como um processo técnico, o importante é como ela funciona para a música; por exemplo, alguém pode dizer que o álbum 36 Chambers do Wu-tang Clan é mal mixado e esta pessoa não estará errada, mas aquela característica de ser um álbum “sujo” contribui pra essência do som e faz com que a mix cumpra seu papel no disco.

– As músicas do Solo Damant contam histórias de pessoas comuns, trazem uma visão bem particular da vida. Qual a tua relação com os personagens? Por que a opção pelas histórias, pelos contos?

Como eu já disse, os personagens acabam falando muito de mim e eu uso histórias para rimar pois acredito que a história permite que qualquer pessoa pelo menos visualize o que eu estou falando. Se esta pessoa vai ir fundo na letra é outra coisa, mas pelo menos quando eu digo “Roberto Alves, cabelo claro, olho claro…” não há outra opção para quem ouve a não ser imaginar um homem de cabelo claro e olhos claros; o ouvinte pode interpretar a história de várias maneiras, mas as ações específicas e detalhes são estabelecidos por mim.

– Ainda nessa questão, o Solo Damant faz rap, e o rap tem uma relação bem próxima com essa questão da narrativa, existe até um estilo, se é que podemos chamar assim, para isso, chamado nos EUA de story-telling, que inclusive marcou bastante os primeiros anos do rap no Brasil. Mas tu citaste também, como referência,o Jaime Caetano Braun. Tu achas que existe relação entre essa prática dos payadores e a dos MCs? Tem algum que te encanta mais, aqui e fora? E na questão da literatura, mesmo, tem algo que tu gostas mais?

Eu acredito demais nesta relação, para mim só muda o formato e o contexto que é narrado. O Jayme Caetano Braun, Slick Rick, Slug, mesmo apresentando histórias diferentes, muitas vezes estão falando a mesma coisa, pois estão falando do ser humano e isso vai ser igual em qualquer lugar do mundo.

Eu tenho minhas fases, teve uma época que eu lia muito Castro Alves, depois muito Mário Quintana, não tenho um preferido, gosto do que vi do Michel Melamed, que é um cara novo que faz de tudo e isso acho massa.

– Tu trabalhas com produção musical para publicidade, jingles e afins, não é? Para ti, qual a relação dessa tua produção, que te sustenta e, creio, é feita sob demanda, com as músicas do Solo Damant ou as produções do Marmontel Zancannaro? Encara as duas como arte? Tu consideras que, hoje, vives da música? Queria que tu comentasses um pouco a respeito, também, da tua percepção dessa questão relacionada a mercado, música e indústria fonográfica, até porque as músicas do Solo Damant são todas disponibilizadas de graça.

Eu trabalho com produção de áudio para publicidade, exceto jingles, pois não conseguiria fazer um jingle, acho horrível. Eu não enxergo muita relação entre meu trabalho autoral e profissional, são estímulos diferentes e visam atender a necessidades diferentes.

Acredito que eu vivo da produção de áudio, não de música, um músico tocaria em bandas e a minha realidade tem mais a ver com programação, efeitos, etc. Não considero este trabalho que eu faço arte, pois há uma motivação totalmente diferente daquela que eu tenho quando produzo um trabalho autoral, mas isso não exclui o fato de que, muitas vezes, existem trabalhos extremamente interessantes do ponto de vista criativo e que estimulam o crescimento e apresentam um desafio que não haveria durante a produção de um trabalho autoral.

Eu acredito que minha percepção do atual momento da indústria fonográfica  não seja diferente da maioria das pessoas, estamos passando por um momento de transição do antigo modelo de vendas baseado em mídias físicas e limitadas para mídias digitais. Pra mim o produto que as gravadoras vendiam era o vinil, o cd ou qualquer outro artigo físico e vender esses produos fazia sentido, mas hoje eu não acredito que faça sentido algum cobrar por um arquivo digital, no máximo uma doação de qualquer valor feita pelo usuário.

Tu estavas trabalhando em um álbum do Solo Damant, do qual as três últimas músicas seriam singles. Um trabalho mais amplo ainda está nos teus planos? Qual o teu ideal de álbum? Queria saber também se acreditas que a cultura da internet influencia algo na forma de produção musical – na opção por lançar músicas avulsas ou álbuns – de maneira geral e no teu caso especificamente.

Eu vou lançar o que restou deste álbum que são mais três músicas, e além disso quero fazer mais músicas diferentes este ano, com outras pessoas, sozinho, outros estilos, etc.

Eu não acredito num ideal de álbum, pois qualquer idealização de algo me prejudica, mas se tivesse que falar de um álbum perfeito seria o primeiro Nas [Illmatic, lançado em 1995], para aquele contexto.

Eu acho que a internet ajuda demais, na verdade só consegui lançar minhas coisas através da internet e só possuo o conhecimento de hoje por causa da internet. Em 1998 eu pagava R$ 50,00 em um CD importado, hoje nós podemos ouvir qualquer artista do mundo e qualquer estilo. Até estávamos falando outro dia sobre o acesso livre a conteúdos, isso é perfeito.

– Os últimos trabalhos do Solo Damant saíram pela Dama. O que é a Dama, e que outros projetos a compõem?

Nem nós sabemos o que é a Dama. Posso dizer que a Dama é um grupo de amigos que quer produzir material relacionado à música, seja música autoral, podcast, vídeos, o que for.

Outros artistas da Dama são Maza 2000, Tropical Reset e Dazz Le Groove, que é pra mim um dos melhores DJ’s que já vi tocar.

Para conhecer mais do trabalho de Solo Damant, acesse sua página no myspace ou no bandcamp. Para conhecer mais projetos da Dama, acesse sua página no myspace ou no bandcamp.

SOLO DAMANT, O CONTADOR DE HISTÓRIAS, pelo viés de Tiago Miotto.

tiagomiotto@revistaovies.com

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

xxn xnnx hindi bf xnxxx junge nackte frauen

Posts Relacionados

Comece a digitar sua pesquisa acima e pressione Enter para pesquisar. Pressione ESC para cancelar.