O manual antijornalístico de Umberto Eco

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“Senhores, estamos fazendo jornalismo, não literatura”, exclama Simei, editor de redação do jornal Número Zero. A afirmação talvez confunda quem tente classificar a obra homônima de Umberto Eco: no fundo, Número Zero, o livro, trata-se de ficção, embora os paralelos com a realidade sejam claros. Acostumado a escrever sobre ordens e sociedades secretas em seus romances, o filósofo, semiólogo, professor e escritor italiano desvela na sua obra mais recente o nada glamouroso mundo dos jornalistas.
É exatamente essa a figura mais interessante do livro: o jornalista, trabalhador como qualquer outro ser humano – mesmo que ele não se reconheça como tal, muitas vezes. Sim, Eco traça alguns debates técnicos sobre o ofício, como a fabricação de mentiras, a separação entre fato e opinião ou os bastidores da escolha de uma pauta. No entanto, salta aos olhos a arrogância com que jornalistas nivelam seu público-leitor em Número Zero – talvez a raiz que justifique comportamentos tão descarados por parte dos redatores do jornal fictício de Eco. Curiosamente, o futuro distópico que o autor sinaliza tem como horizonte a própria figura do jornalista: é ele, afinal, quem tem o trabalho de apontar o que é mentira e boato na contemporaneidade.
À época do lançamento de Número Zero, no começo do ano, Umberto Eco criticou o ambiente nocivo das redes sociais, plataformas que facilitariam a proliferação de notícias falsas. O pessimismo do autor transparece também no livro, cujo enredo se passa em 1992, Milão, quando a operação Mãos Limpas buscou dar um fim na corrupção da sociedade italiana – no entanto, como resultado, emerge a figura pouco salvadora de Silvio Berlusconi. Em meio a esse caos, o editor Simei propõe a criação do jornal Amanhã, precedida de doze edições número zero (ou seja, as versões teste do periódico). Para tanto, a redação conta com seis jornalistas – dentre eles, Colonna, o protagonista, que trabalha como ghost writer; Maia Fresia, que até então escrevia em uma revista de celebridades, e Romano Braggadocio, o jornalista alucinado por teorias da conspiração.
Na verdade, apenas Simei e Colonna sabem que Amanhã nunca sairá – entenda a metáfora de Eco como quiser. Simei está a mando de Vimecarte, magnata da comunicação à la Berlusconi, que deseja criar um experimento. As edições teste, por sua circulação apenas interna, veiculam qualquer notícia – o plano do empresário é criar factoides tão reais que intimidem os anunciantes de Amanhã a pagarem para que o jornal não ultrapasse o período experimental dos doze “número zero”. Uma chantagem política, portanto, utilizando o jornal como arma.
Nada que seja muito difícil para os redatores de Amanhã. “Percebam que hoje, para contra-atacar uma acusação não é necessário provar o contrário, basta deslegitimar o acusador”, ensina o editor Simei. A rigor, nenhuma novidade: o argumento ad hominem, que visa invalidar antes o autor do que o conteúdo da crítica, é comum quando se pretende atingir figuras políticas contrárias à linha editorial de certas publicações. E não apenas no jornalismo: a falácia geralmente descamba para o embate pessoal, perigoso em tempos efervescentes, como as campanhas presidenciais nas redes.
Apesar de tudo, Eco ainda encontra uma dose de humor, especialmente nas aulas de Colonna aos outros redatores sobre como separar fato de opinião. “Muito simples”, diz ele: basta recorrer ao uso das aspas de duas testemunhas para que suas falas se transformem em fatos. É importante que as declarações discordem, a fim de manter a credibilidade do jornal e expor todos os lados – um dos mantras sagrados da profissão. No entanto, Colonna revela o segredo: “a esperteza está em pôr antes entre aspas uma opinião banal e depois outra opinião, mais racional, que se assemelhe muito à opinião do jornalista. Assim o leitor tem a impressão de estar sendo informado de dois fatos, mas é induzido a aceitar uma única opinião como a mais convincente”. Pinçando algumas doses de teoria do jornalismo, Eco, ao misturar humor e pessimismo, trata de maneira um tanto rasa a produção da notícia. No entanto, há certa pertinência: o jornal Amanhã é o próprio exemplo de jornalismo superficial.

Um viaduto desmoronou, um caminhão caiu e o motorista morreu. O texto, depois de relatar rigorosamente o fato, dirá: ouvimos o senhor Rossi, 42 anos, que tem uma banca de jornal na esquina. “Fazer o quê, foi uma fatalidade, disse ele, sinto pena desse coitado, mas destino é destino”. Logo depois um senhor Bianchi, 34 anos, pedreiro que estava trabalhando numa obra ao lado, dirá: “É culpa da prefeitura, que esse viaduto estava com problemas eu já sabia há muito tempo”. Com quem o leitor se identificará? Com quem culpa alguém ou alguma coisa, com quem aponta responsabilidade. Está claro? O problema é no quê e como pôr aspas. Vamos fazer uns exercícios.

Dentre as partes mais interessantes do livro, estão as referências que os jornalistas trazem dos futuros leitores de Amanhã, costumeiramente tratados como idiotas e preconceituosos. Não raro, Simei lembra seus redatores que “nosso leitor não é nenhum intelectual que leu os surrealistas, que faziam… como era mesmo?… cadáveres esquisitos”. Em outra ocasião, o editor presume que “bicha é um assunto que sempre atrai”. Ao ser questionado por uma das redatoras sobre o termo pejorativo, Simei responde: “eu sei, eu sei, queridinha, mas os nossos leitores ainda dizem bicha (…). Eu sei que agora não se diz preto, mas negro, não se diz cego, mas deficiente visual. Mas negro é sempre negro, e um deficiente visual não enxerga um palmo à frente do nariz, coitadinho. Não tenho nada contra os bichas, é como os pretos, adoro todos, desde que fiquem em suas casas”.
Chavão comum quando se busca criticar os meios de comunicação, o mandamento de que “a mídia emburrece” pode ser um tiro no pé. Ora, o jornalismo possui, afinal de contas, um papel esclarecedor, quando busca trazer à tona discussões que exploram a contradição e apontem para um viés. Não é por isso, no entanto, que ele deve tratar seu leitor como um acéfalo. A mídia não “emburrece”; é a própria concepção torpe que editores têm de seus públicos que nivelam por baixo os produtos jornalísticos. Amanhã demonstra bem como Simei subestima seus leitores, cortando pautas porque seu público, presumivelmente, não se interessaria por elas, ou utilizando uma linguagem disfarçadamente preconceituosa, no intuito de aproximar-se do senso comum do leitor.
Apesar do tema interessante, a narrativa de Número Zero é mais discreta do que as outras obras de Eco, como os aclamados O Pêndulo de Foucault e O Nome da Rosa. Não tanto pelo seu número de páginas – Zero é consideravelmente menor -, mas por um enredo que se mostra instigante no começo, especialmente para quem não é familiarizado com o tema e, ao, fim, é atravessado por um romance policial inconcluso. Eco também se repete em algumas passagens, tornando a leitura levemente previsível: o primeiro capítulo, que é retomado futuramente, o necessário romance entre o protagonista e a personagem feminina, um assassinato e, é claro, as teorias da conspiração.
A impressão final é a de que Número Zero poderia ser muito mais – assim como o jornal homônimo presente no enredo, o livro soa tal qual uma promessa que, no fim das contas, não é lançada. Surpreendentemente sem o fôlego de suas obras anteriores, Eco ainda mantém o humor característico de seus personagens, mesmo que a obra, como um todo, pareça uma autoparódia inconclusa. Vale a leitura para os curiosos que desejam aprender o pior do jornalismo em um manual de pouco mais de 200 páginas.
O manual antijornalístico de Umberto Eco, pelo viés de Dairan Paul.

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