Sete gatinhos em retalhos

Foto: Atilio Alencar.

Enquanto aguardo uma trégua no tumulto pacífico que se instala na entrada do Espaço Cultural Victorio Faccin, tento puxar pelo fio da memória a última encenação adulta que assisti da Cia. Retalhos de Teatro. Minha recordação relutante me transporta para 2007, ano em que a companhia dirigida por Helquer Paez participou do prestigiado festival Porto Alegre em Cena, com a montagem do clássico rodrigueano O Beijo no Asfalto. Oito anos depois, cá estou eu prestes a encontrar novamente uma versão de Nelson Rodrigues concebida pelo imaginário irrequieto do diretor nascido em Rosário do Sul e radicado desde há muitos anos em Santa Maria.
De uma coisa eu já tinha certeza ao escolher meu lugar na intimidade daquela plateia: fosse o que fosse acontecer no palco, eu não deveria esperar nada ortodoxo. Se o dramaturgo e o diretor em questão guardam algo em comum, é uma atração explícita pelo profano. E a total ausência de preocupação com convenções sociais que versam sobre as regras suspeitas do ‘bom-gosto.’
Já na entrada do teatro sou advertido que devo ser econômico com as fotografias. Sabia, desde antes, que as cenas de nudez e violência eram parte essencial do espetáculo. Para quem, como eu, lembra das adaptações televisivas d‘A Vida Como Ela É, que o programa Fantástico exibia em horário nobre no início dos anos 90, isso era o mínimo a se esperar. Longe de mim a intenção de arruinar as surpresas que a peça reserva; mas acredito ser prudente alertar sobre a armadilha para incautos que o título do texto esconde. Os Sete Gatinhos pode ser tudo, menos uma daquelas atrações fofas que garante diversão para toda a família tradicional – se bem que, pra quem acredita na supremacia do tal modelo tradicional de família, a experiência de assistir a montagem da Retalhos tende a ser particularmente didática. Aliás, a leitura da obra de Nelson Rodrigues já seria por si só um bom antídoto contra esse tipo de credulidade pudica.
No palco, não faltam os arquétipos das tragédias suburbanas estilizados pela sensibilidade perversa do escritor: estão lá o pai que reivindica para si, como direito legítimo do provedor, o abuso incestuoso do corpo da filha; a prostituta em busca de redenção; a mãe em anômala erupção erótica; a virginal santa-do-pau-oco; o funcionário remediado que abusa do seu minúsculo poder; o cafajeste que corrompe moças na flor da idade. Mas também estão lá os rearranjos e releituras que Helquer impõe à obra, atualizando-a em gestos de subversão que garantem o contraste entre a atemporalidade das tragédias cariocas e o aqui/agora da percepção contemporânea.
Foto: Atilio Alencar.

Em vários momentos do espetáculo, é possível discernir a interpretação plástica e textual de Helquer em meio ao sopro rodrigueano. Numa cena emblemática, o diretor optou por imprimir sua assinatura irreverente, desviando a epifania que anuncia “o homem vestido de virgem com um olho só” da sua condição original de pastiche de coro grego em uma transmutada visita ao terreiro – cena essa que causa vertigem pela solução física encontrada pela direção.
Os Sete Gatinhos que miam convulsamente no espetáculo da Retalhos o fazem com a inegável marca de Nelson Rodrigues. Melodrama, expressionismo, crítica social, obscenidade e alguma gratuitade no grotesco são vínculos de uma elaboração teatral comum entre autor e diretor. No elenco, que conta com boas atuações (embora com alguns momentos de oscilação), as personagens desempenham com fluidez as nuances que atravessam o ideal feminino patriarcal e o seu oposto perfeito. São, todas elas, Eva e Lilith, a santa dedicada ao lar e a mulher educada na noite, Maria que pariu o menino-deus e a outra que o poupou da castidade arbitrária. Gravitam apenas na aparência em torno dos homens; no subterrâneo, e às vezes acima dele, expressam a inconformidade física e moral com uma sociedade que as quer docilmente submissas. São rebeldes –  mesmo quando sua rebeldia não ultrapassa a amplitude de um desenho obsceno feito a giz na parede do banheiro. Ou o assassinato de uma gata prenha.
Saí do teatro, e enquanto refazia o percurso do Rosário ao centro, pensei comigo mesmo que havia assistido um espetáculo com muitos acertos, alguns erros e – acima de tudo – coragem para correr os riscos necessários. Num tempo de moralismo galopante, à esquerda e à direita, toda coragem para fazer arte sem rédeas periga ser castigada.
Que bom que a Cia. Retalhos ignorou esse perigo.
 
Sete gatinhos em retalhos*, pelo viés de Atilio Alencar
*Resenha elaborada a partir da apresentação do espetáculo Os Sete Gatinhos, encenado pela Cia. Retalhos de Teatro, dia 07/11/15 no Espaço Cultural Victorio Faccin.
 

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