As Retomadas Guarani e Kaiowá no MS: A saga de uns quantos poucos

Ao lado das rodovias e estradas empoeiradas do Estado do Mato Grosso do Sul verdadeiros oceanos de monocultura se estendem triunfantes como estandartes que o latifúndio exibe para consolidar seu império, para afirmar que, fora da lógica do agronegócio, nada vive nem pode viver. Nesta lógica mortal, impulsionada pela vibração eufórica da mídia que referenda 24 horas por dia, nos “níveis de produtividade” do Estado até o ser humano e a natureza viram inços daninhos a serem duramente combatidos. E nestas terras, desafortunados são os homens e o mato decretados como praga, pois os jagunços não medirão esforços, seja por meio de veneno ou por bala, para expurgar suas raízes e apagar seus rastros, assegurando a cana e a soja o repouso em berço esplendido no coração dos campos mais férteis.
Campos estes, que há poucas décadas se faziam matas firmes. Matas que há centenas de anos são os territórios sagrados de muitos povos indígenas e que hoje, são apenas um eco na memória daqueles que os habitavam, que entre safra e outra, jazem em visões de descampados e desertos frente ao mundo da transgenia e da exportação.

Manifestação por rapidez na regularização fundiária da aldeia Água Bonita, em Campo Grande, MS. Foto: Lucas Moreira/Brigada de Solidariedade 13 de Janeiro
Manifestação por rapidez na regularização fundiária da aldeia Água Bonita, em Campo Grande,MS. Foto: Lucas Moreira/Brigada de Solidariedade 13 de Janeiro

Em clareiras em meio à monocultura, raízes nunca arrancadas
Enganam-se, porém, aqueles que passam por estas estradas e admitem ou vislumbram em seus pensamentos a intocabilidade destas nada louváveis lavouras. Lá no meio da cana, ou de qualquer outra cultura predatória, os guardiões do mundo, das matas de outrora, abrem valentes picadas e clareiras, estabelecem acampamentos, afirmam raízes nunca desprendidas de suas terras, cobram a devolução daquilo que lhes foi espoliado e vão retomando passo a passo pequenas partes de seus territórios ancestrais.
As chamadas Retomadas, práticas de avanço e resistência direta dos povos indígenas na conquista de seus direitos, têm preocupado tanto os fazendeiros da região, que existem, no Estado, campanhas difamatórias massivas que apontam os Kaiowá como bandos de milícias organizadas com objetivo de espoliar propriedades.
Nem por milícias nem por bandos, as retomadas são muitas vezes comandadas por poucas famílias, geralmente em número reduzido. São constituídas por pais, mães e filhos comuns que, munidos das rezas, cantos de seus Nãnderu (Rezadores tradicionais) e da valentia de seu povo, resistem como poucos no planeta acreditariam ser possível em condições incríveis ou, às vezes, na falta total de condições. Embora, em verdade, algumas fazendas maiores tenham sido recuperadas pelos povos originários e reincorporadas a seus territórios, na maioria dos casos as retomadas são, na verdade, o avanço dos indígenas sobre pequenos espaços de terra. Nessas clareiras, as famílias permanecem na esperança de que seus filhos um dia possam ter acesso a um mundo melhor do que eles tiveram. As clareiras viram aldeias e as aldeias viram esperança. Assim o povo Kaiowá reencontra sua liberdade.
Famílias que se movimentam, correntes que se rompem
As Retomadas são, na verdade, causadas pelo próprio latifúndio. Os avanços são, em essência, uma reposta das gerações mais novas aos roubos infringidos às gerações anteriores. São o “dizer de chega” daqueles que não podem mais suportar a violência do agronegócio e de sua expansão, que tem o significado de um verdadeiro genocídio para o povo Guarani e Kaiowá. Proporcionalmente, morrem mais Kaiowá assassinados no estado do MS do que palestinos nas guerras e chacinas do oriente médio.
Este fenômeno reflete, portanto, a comprovação absurda, e em escala desastrosa, da violência que o mundo do latifúndio impõe sobre os povos originários e os pobres do campo. Como ocorre também no Rio Grande do Sul, onde os indígenas ocupam apenas 0,4% das áreas do estado, no MS a área requerida pelo conjunto de todas as demarcações e Retomadas territoriais dos povos indígenas ocupa um espaço igualmente irrisório. Segundo apontamentos do Ministério Publico Federal, não chegam a 2% das áreas utilizáveis do território de todo o estado. Sendo que a agricultura familiar, incluindo os assentamentos do MST, também ocupa uma proporção inacreditável de apenas 1,8% das terras utilizáveis; os quilombos, tampouco, ocupam espaço expressivo, isto significa que o agronegócio ainda possui domínio de, pelo menos, 96% das terras.
Mesmo assim, a voracidade dos ruralistas parece desconhecer limites. Em uma sociedade declaradamente anti-indígena, onde a monocultura vale mais que a vida, as lideranças Kaiowá são caçadas noite e dia, estando na mira constante de centenas de pistoleiros profissionais contratados abertamente pelos fazendeiros da região. No ano passado, o anúncio do genocídio pretendido pelos ruralistas contra o povo Kaiowá foi tão explícito que foram organizados leilões intitulados de “leilões da resistência” para arrecadar fundos para organização de milícias anti-indígenas com o objetivo de retirar (lê-se matar) o povo indígena das áreas de retomadas. As chamadas para os leilões passavam em horário nobre na televisão e o assunto chegou a ser discutido pela bancada ruralista em sessões ordinárias no Congresso Nacional. A realização destes preparativos para matanças premeditadas só cessaram com intervenção direta da justiça, quase que tardiamente.
Do outro lado, rotulados pelas campanhas difamatórias como um povo hostil e perigoso que compões milícias, os indígenas se defendem como podem. Para explicitar a realidade de uma Retomada Kaiowá e demonstrar do que são feitas as “milícias indígenas”, usemos o exemplo da “retomada das mães”, que ocorreu no último dia 4 de julho deste ano.  Cerca de 50 mulheres e seus filhos, armadas com arcos e instrumentos tradicionais de reza, com instrumentos de cozinha e de trabalho (inclusive facões), com uma coragem admirável, cansaram de assistir a morte de seus filhos nas proximidades de uma fazenda e decidiram ocupar uma área de 30 hectares no limite da terra indígena em que vivem, entrando em confronto direto com o fazendeiro. O estopim para a tomada da nova terra foi o corpo de um jovem, filho de uma das mães, encontrado junto à estrada, executado, segundo elas, pelo próprio fazendeiro. Marcando a entrada que dá acesso às barracas das mulheres Kaiowá em seu novo acampamento, uma cruz silenciosa marca a lembrança do assassinato e do porque lutar.
O detalhe é que esta área já está garantida aos indígenas como continuidade de seu território, porém encontra-se paralisada pelo Governo Federal. Enquanto a paralisação das demarcações segue, e os ruralistas protocolam inúmeros projetos de lei para rever as demarcações já existentes, os indígenas desta referida área vivem totalmente sem condições de sobrevivência.
Em outros casos, e não são poucos, a história que envolve as fazendas retomadas pelos Kaiowá, assim como por outros povos indígenas, tem a mesma sinopse. Primeiro houve a expropriação das terras. Depois os antigos Kaiowá passaram a trabalhar para os autointitulados “novos donos”, em todo tipo de trabalho agrícola, inúmeras vezes de modo servil. Com o passar dos anos, chega a vez das novas gerações herdarem o trabalho dos pais e, em alguns casos, chega a vez dos filhos destes repetirem a jornada, garantindo, assim, aos “patrões”, uma sequência de levas de trabalhadores explorados. Na voz e na memória dos jovens que participam das retomadas, está clara a indignação com este processo de espoliação e exploração. Para eles, retomar a terra é também libertar as correntes que aprisionaram suas famílias há muito tempo. É a possibilidade de que os Kaiowá sejam novamente os senhores de seus próprios destinos.
Família indígena da aldeia Água Bonita, em Campo Grande, MS. Foto: Lucas Moreira/Brigada de Solidariedade 13 de Janeiro
Família indígena da aldeia Água Bonita, em Campo Grande, MS. Foto: Lucas Moreira/Brigada de Solidariedade 13 de Janeiro

Retomando a cultura, as retomadas como processo de aprendizagem
Sem dúvida, o que garante toda a resistência destas famílias é a fortificação dos Guarani em torno de suas crenças e de sua cultura ancestral. Quando vão para as retomadas, os Guarani se pintam como há muito faziam, trajam suas roupas que há muito trajavam, levam seus instrumentos que há muito tocavam. Reafirmam a si mesmos, relembram seus contos e seu passado e ensinam aos mais novos como é ser um Guarani, como é ser um Kaiowá. Suas armas são seus arcos e suas cruzes, suas marcas e suas pinturas, a luta das retomadas é uma escola para além da luta em si. Na retomada há uma semente que germinará sobre as velhas terras que se tornam, de novo, novas terras. O povo Guarani e Kaiowá, retomando seu território, retomam também as veias mais profundas de sua própria história.
A saga de uns quantos poucos
Com o processo de paralisação das demarcações de terra e os açoites infligidos aos direitos indígenas com total aval ou participação do Governo, as retomadas, processo de luta e resistência secular dos povos indígenas, voltam a se mostrar como uma saída para que os indígenas tenham acesso a suas terras tradicionais, garantidas pela Constituição Federal de 1988.
Em meio às clareiras e nas imediações das plantações, resistem pequenos grupos composto por algumas famílias que ousam enfrentar o latifúndio e defender com uma força sagrada seus direitos encentrais. São como formigas em seu trabalho obstinado, organizado, com uma certeza inabalável de resistir ou morrer tentando. São homens e mulheres que decidem de uma vez por todas que não suportarão mais o gosto amargo do destino que o mundo ruralista lhes infringe e impõe. São crianças que, a qualquer hora, distribuem sorrisos doces e inocentes, mas que trazem no rosto marcas de uma maturidade muda que chegou sem lhes pedir licença. Uma certeza que lhes foi passada, a responsabilidade por continuar carregando a esperança de todo um povo. Em meio a brincadeiras, perdem o medo e, cada vez mais, vão tornando-se Kaiowá.
Estas famílias são como formigas que são como fogueiras. Espalhadas em várias retomadas e aldeias, vão sinalizando esperança e solidariedade para todos aqueles que se movimentam. Assim, em cada clareira são “poucos”, mas são uns quantos “poucos” espalhados por muitos lugares. Ao sinal do perigo ruralista, se unem, se juntam, ainda não como milícias, ainda como famílias, então são muitas famílias. Ainda são mães, mas então muitas mães. Ainda pais, mas então muitos pais. E filhos, muitos filhos, de todas as idades, de muitos sorrisos. Quando tantos poucos viram uns quantos assim, os Kaiowá retomam fazendas inteiras, fazem justiça, mudam e retomam até mesmo a própria história.  Muitos nascem em retomadas, nascem lutando e, provavelmente, morrerão ou lutando ou vítima desta luta pesada. São pessoas obstinadas que, vivendo a mesma sina e peso de uma mesma trajetória, resolvem mudar os rumos do destino de uns quantos, de seus quantos. Uns quantos montinhos de poucos gigantes que fazem do Povo Guarani, sem dúvida, um grande povo.
As Retomadas Guarani e Kaiowá no MS: A saga de uns quantos poucos, pelo viés de GAPIN.

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