O Brasil de novembro/dezembro

ilustração: Rafael Balbueno
ilustração: Rafael Balbueno

O novembro pós-eleitoral era um de cenário de pós-guerra. A vida seria um permanente estado de pós-guerra para pessoas como o Brasil. Durante os primeiros dias, comeu apenas para ter certeza que não falaria. Cafés da-manhã reforçados e principalmente os lanches vespertinos chamaram logo a atenção na assessoria. No almoço, economizava para se empanturrar às favas e estrangular a possibilidade de ocupar a boca com outra tarefa. Há tempos era visado na empresa, só não percebia, mas agora chamava mais atenção pelos hábitos que pelos sacrilégios. O Brasil estava literalmente ruminando algo duro de roer. Os sucos gástricos tentavam dar conta do que entrava traqueia adentro, o Brasil estava mais inchado, estalado, com gestos mais mecanizados, aquele corpo, daquela maneira com os respectivos sintomas eram o próprio arquétipo da depressão. Uma depressão de sapatos antiquados de camurça desgastada.

Estar em novembro, àquela altura, era mesmo um baque. O ano constrói e corrói, faz e desfaz, remenda e rompe e depois de tudo o fim de ano é a angústia mais visceral. Recebeu um telefonema da mãe. Ninguém nunca ousou desacatar um pedido da matriarca, que mandara toda família se hospedar na estância do falecido avô do Brasil, o grande general e líder farrapo e posteriormente também do exercito imperial que jazia no que se chama Ponche Verde, a formosa terra da paz encravada nos pampas a que deram o nome de Dom Pedrito. O Brasil segurava o telefone enquanto uma súbita lembrança se materializava na sua frente, ainda menino corria em disparada para fugir de um touro, chegando perto da porteira de madeira já sem fôlego, gorducho, de cabelo claro e bochechas rosadas, e, subitamente, decolava com a cabeçada do touro. Sua mãe lhe disse que teria que estar logo na segunda-feira sem falta. O Natal seria na quinta-feira e desde já tinha um conflito de interesse difícil de contornar. Nunca se nada contra a corrente da fonte de renda e o Brasil, cada vez mais lapidado pela deformidade do tempo, acusa os primeiros sinais de cansaço e não apresenta resistência. Sucumbe solenemente. Sucumbiu o telefone novamente no gancho, pensando naquele instante em que o touro o atingiu pela primeira vez, e que ele voou com a cara na cerca, e que o touro insistiu no escracho até levantar-lhe pelos ares e jogar-lhe esparramado até o outro lado. Ele não se ferira gravemente, não fora atingido pelos chifres, mas ficara de quarentena e com uma leve sequela: um zunidinho no ouvido direito, que ele lutou metade da vida para abandonar, usando aparelho auditivo até descobrir um tratamento alternativo e diminuir a frequência mentalmente, através da meditação. O zunidinho voltou por alguns instantes e permaneceu por um tempo enquanto o Brasil olhava por cima dos óculos e para baixo da mesa empoeirada de sua sala. Sai zunido, sai ruído, pensava. O som simplesmente voltara a sua cabeça, uma frequência baixa como uma chuvinha que cai ao longe.

nessa hora, até um sacripanta como ele seria capaz de forcejar para não perder a teta. O mercado devora todas as tetas do dia para a noite, e existe muito jornalista sem teta e com família constituída.

ilustração: Rafael Balbueno
ilustração: Rafael Balbueno

O ano inteiro de trabalho pós Copa do Mundo e Eleições se acumulara a ponto de estrangular o mês de novembro e o ambiente primaveril. O Brasil engordou oito quilos, e estava realmente se esforçando para não ser demitido. As postagens no facebook diminuíram e, burocraticamente, em um fenômeno de resiliência e seleção natural, o Brasil resolveu tentar remar a seu favor, e se esmerou nas ações que administrava das contas de cada um dos clientes os quais era responsável na assessoria de imprensa. O Museu de Carros Antigos receberia um evento beneficente, onde o empresário responsável doaria miniaturas de carros de luxo que estavam expostos para crianças consideradas carentes; o Brasil sabia do alcoolismo do editor do suplemento Carros, e tentaria uma foto na coluna do conterrâneo e depressivo ex-colega de faculdade. Divulgaria também para as editorias de economia o balanço financeiro da empresa de tapeçaria que era do pai do dono da assessoria e agora taciturno amigo. Os colegas estavam com contas mais interessantes, com resultados melhores, e o Brasil percebia que a corda decididamente rondava-lhe o pescoço, e nessa hora, até um sacripanta como ele seria capaz de forcejar para não perder a teta. O mercado devora todas as tetas do dia para a noite, e existe muito jornalista sem teta e com família constituída. O momento mais tenso do ano foi justamente o que marcou a entrada de dezembro. Com um carnaval no mês de março, Copa do Mundo e Eleições, profissionalmente, os grandes eventos e atividades concentravam-se naquelas semanas. Até um novo cliente apareceu: um resort serrano que investiu para receber os turistas e a magia natalina. Dos jornalistas que trabalhavam na assessoria, o Brasil era o que possuía menos contas, porém, ao invés de confiar naturalmente a ele o novo cliente, o próprio chefe decidiu se encarregar da conta. Todos na assessoria arregalaram os olhos e espicharam a sobrancelha. Chefes fazerem o trabalho histórico dos funcionários, definitivamente, não era usual. Àquela altura, todos só pensavam no recesso de fim de ano, no entanto, a força dos fatos ao longo do ano não dava certeza nem segurança: poucos foram os que planejaram viagens para aquele fim de ano e, ao que parecia, o chefe era astuto em esconder o jogo sobre se haveria ou não paralisação das atividades. O ar condicionado ligado no máximo, com aquele barulho estridente e particular, somado às vozes dos colegas e agora do chefe em diversas ligações com os jornalistas dos veículos de comunicação, e sua impotência perante a força e complexidade dos fatos aturdiam o Brasil. Ele estava suando, em uma espécie de transe olhando a tela do computador e praticamente paralisado, concentrado, atento a frequência que voltara misteriosa e de forma súbita. Resolveu fazer um café, no entanto, colocou a água esquentar e esqueceu completamente. A água começou a evaporar e entrar na sala onde todos trabalhavam, misturando-se com a temperatura fria que o ar colocava para dentro do cômodo, a chaleira estava incandescente e já havia derretido parcialmente seus acabamentos em plástico. O objeto fora um presente de alguém importante, pela forma ríspida que o chefe reagiu. Não dava para acreditar. Seria o inferno astral daquele homenzarrão de barba por fazer. A tarde se arrastou por mais algum tempo e o Brasil evaporou antes que todos fossem embora. À noite, em casa, bebeu uma garrafa de gin. Procurou pensar, e para isso, estacionou no vazio que era sua própria existência. Assistiu a um programa de retrospectiva do ano que acabava de acabar e percebeu que sua vida era uma grande tolice e que não era culpa deste ano ou de algum infortúnio específico senão a soma sucessiva de erros e de uma postura malemolente.

O Brasil estava cada vez mais deprimido. Não fazia mais piadas e estava afastado dos grandes temas da rede social. O massacre dos 43 estudantes no México e as milhares de postagens do avanço e das incursões do Estado Islâmico não o comoviam. Algo parecia estar fora de lugar, talvez finalmente ele mesmo se sentisse fora de lugar. O zunido no ouvido o acompanhou da sua mesa até a do chefe, nas primeiras horas da manhã, antes que os demais colegas chegassem. Pediu para conversar brevemente. Na semana anterior, todos ficaram sabendo que, de fato, só haveria recesso para aqueles cujas contas tivessem obtido um resultado satisfatório e que não tivessem volume de trabalho no período de festas. Falou ao chefe que havia recebido uma proposta, um amigo estava com planos de abrir um negócio próprio no ano seguinte e que havia pedido consultoria para ele, propondo uma sociedade em termos satisfatórios e que ele gostaria de seguir um novo rumo. Estava dizendo isso para agradecer pela oportunidade. Na verdade, e isso só o Brasil sabia, era por falta de coragem de pedir folga para seguir um pedido da mãe na tradicional visita aos parentes. A resposta do chefe foi difícil de ouvir sem que desmoronasse emocionalmente e, curiosamente, o zunido o ajudou a concentrar-se e ouvir até o final: ouviu que todos estavam cansados de seu comportamento, que uma hora ou outra esta conversa teria de acontecer, que não havia descoberto a maneira de lhe falar, mas que infelizmente não gostaria de contar com o trabalho dele no ano seguinte, que comunicação é um negócio que é preciso estar atento às novas tendências e que ele parecia cada vez mais fora de perfil e que era inadmissível alguém que trabalhasse com contas em redes sociais ter um comportamento tão esdrúxulo em seus perfis pessoais, que jornalista era uma categoria como a dos médicos, que deveria estar sempre de plantão, e que lhe desejava sorte no novo desafio e que o contador entraria em contato para acertar todos os detalhes funcionais. Foram 15 minutos ouvindo. Se sentia concretado naquela cadeira, enquanto as janelas, as paredes, o edifício inteiro derretia até o chão. Desceu pelas escadas de serviço para não encontrar ninguém no caminho, saiu sem se despedir dos colegas e deixou alguns objetos na antiga mesa, que agora era só uma mesa e não mais sua trincheira para a guerra virtual. Agora estava no ônibus, vendo a paisagem passar por seus olhos, as árvores, o gado, as coxilhas, as porteiras com os nomes das estâncias, toda aquela imensidão de verde e azul e da própria vida. Estava envelhecendo.

Durante o Natal, a matriarca da família serviu os tradicionais cordeiros assados para toda a família. Os netos e bisnetos corriam por todos os cantos do palacete e divertiam-se com os novos presentes. Os adultos da idade dele estavam todos acompanhados e falavam das viagens que haviam feito durante o ano e os planos para o Réveillon em Punta Del Este. Já não detinha mais o mesmo prestígio que antigamente. A atenção era toda para os novos integrantes: grávidas, bebês e os tradicionais agregados: genros e cunhados. O Brasil estava de corpo presente, mas era mais um objeto decorativo, tal qual a grandiosa árvore de Natal abarrotada de presentes e o presépio montado na figueira com os animais da própria estância. Todos os parentes só falavam da crise da Petrobrás e dos haras que estavam à venda nas redondezas e o quanto isso poderia prejudicar os negócios e desvalorizar aquela região. Ele seria mais um cúmplice destes assuntos, esperando a hora certa de pedir a palavra. No entanto, estava cansado, não via mais graça em nada e percebeu que frequentemente estava do lado do que perdia. O Natal passou e a caravana de caminhonetes importadas pegava a ruta mais rápida para Punta. Sua mãe tradicionalmente passava o Ano Novo em Buenos Aires e aproveitava para gastar alguns rolos de dólares nos cassinos. O Brasil, no entanto, resolveu ficar em retiro na estância, no lugar das sete ondas no mar gelado do sul do continente, terminou por jogar sete pedras no lago, sozinho. E sem internet.

O Brasil de setembro/outubro, pelo viés do colunista Calvin Furtado e com ilustrações de Rafael Balbueno.

Leia também os demais textos da série clicando aqui.

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