A última viagem de um escritor fantástico

Arte: Bibiano Girard e Rafael Balbueno/revista o Viés.
Arte: Bibiano Girard e Rafael Balbueno/revista o Viés.

Muitos anos depois, diante do pelotão familiar, Gabriel havia de recordar aquela tarde remota em que seu avô o levou para conhecer as plantações de dendê. Aracataca era então uma aldeia de vinte casas de barro e taquara, construídas à margem de pântanos e rios de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos. A América Latina não era tão recente, mas muitas coisas careciam de nome ou para mencioná-las se precisava usar termos estrangeiros. Todos os anos, pelo mês de março, uma família de ciganos esfarrapados plantava a sua tenda perto da vila e, com um grande alvoroço de apitos e tambores, dava a conhecer os novos inventos.
Foi impossível ao colombiano Juan Gabriel Vasquez, no janeiro quente de 2014, recusar a visão e os sentidos sobre a casa onde se encontravam em festejo os moradores de Aracataca, a recitar trechos decorados daquilo que um dia fora escrito pelo nativo Gabriel: “Eu sei que nesta casa havia flores, lá por 1927, onde esvoaçavam borboletas amarelas”, disse o visitante em homenagem à casa célebre. Na sensação de que tudo ali existia para ser Macondo, Vásquez assumiu a existência de duas cidades – uma espiritual e outra referencial – no corpo de uma. “Macondo é a transcrição poética de Aracataca”. Na casa de seu mais ilustre coronel das letras, o povo se sentia feliz. Uma das duas cidadelas, fosse a de tijolos de barro, fosse a de letras, estava novamente no mapa.
Morador da Cidade do México desde 1961, García Márquez era a própria fantasia transformada em papel e símbolos. Traduzido para mais de 25 línguas, Cem Anos de Solidão, que o colocou na linha Nobel dos mais relevantes escritores da contemporaneidade, vendeu cerca de 50 milhões de exemplares. No Brasil, desde sua morte, a Editora Record contabilizou a venda de 15 mil exemplares do livro, que segundo o autor, não é seu maior livro.
“Meu livro é “O amor nos tempos do cólera”. Ali as personagens são reais, são pessoas como todos nós, cheias de vidas e escolhas reais”. Mesmo assim, contrariando o colombiano, morto em abril deste ano, está programada mais uma edição do livro que conta a epopeia dos Buendía, com 8.000 exemplares. Com isto, as vendas apenas deste romance, no Brasil, alcançam a marca dos 500 mil exemplares.
Mas contrariando o morto, na certeza de não ser execrado pelo menos por ele, o dono de tudo, resta aos que ficaram a incerta noção de que em Macondo tudo também era realidade, e que como afirma o poeta Ferreira Gullar, a arte existe porque a vida não basta. Mas se é a vida que propõe o salto ao fantástico de García Márquez, quem serão aqueles que delimitarão o que afinal é vida e o que afinal é fantasia, se há por aí doidos leitores varridos afirmando que se pode sim voar por entre os lençóis e sumir nas nuvens?
Quando a mulher mais bonita que já existiu no mundo levantou de corpo e alma sobre os lençóis e sumiu no céu de Macondo, permitiram-se os admiradores de Remédios simplesmente aceitar que a verdade é um falso perceber das coisas. O que há em Macondo jamais o mundo apaga, e como disse seu criador, deixar que o tempo passe e ver o que ele traz é um caminhar que a humanidade, agora, busca prescrever solitária nos solitários anos que nos seguem.
No dia 21 de abril de 2014, a viúva Barcha e os filhos do casal, Gonzalo e Rodrigo, cerimoniavam diante da urna com as cinzas de García Márquez no tributo realizado no Palácio de Belas Artes da Cidade do México, na Cidade do México, onde o escritor viveu seus últimos cinquenta e três anos. Naquela urna, jaziam cinzas que antes de pó foram letras, letras misturadas em trinta e seis idiomas para o entendimento de 40 milhões de leitores pelo globo terrestre. Isso se ao mínimo para cada exemplar tenha existido apenas um leitor solitário.
Inevitavelmente, García Márquez fez de seus leitores, no dia 17 de abril, moradores de Macondo, onde muitos de nós já havíamos morrido um pouco. A morte do escritor parece ser a primeira, e amparados na descrença que ele mesmo nos impôs sobre o real, nos colocou, nos últimos tempos, a delirar com a mesma doença que Visitación reconheceu nos olhos fosforescentes, como os de um gato, na escuridão de Rebeca: a peste da insônia.

Circuito Elétrico 16.07.2014 by Supernovaradio Web on Mixcloud

García Márquez foi correspondente em Roma e depois em Nova York, de onde precisou ir embora. Sua proximidade com o presidente cubano Fidel Castro o colocava em situação de perigo, com a Agência de Espionagem estadunidense, a CIA, o vigiando. No México, dirigindo seu Opel em direção a Acapulco, freou e deu meia volta. A história dos Buendía, martelando, exigiu que o escritor retornasse para casa. Abandonou o emprego para dedicar-se integralmente. Na Cova da Máfia, um quartinho apertado criado por ele em San Angel Inn, resistia às leis do simples fato de ser morador do lugar: deu à esposa todo o poder sobre as decisões da casa, e pediu que só o importunassem da Cova em caso de morte próxima.
Em Brasília, o escritor moçambicano Mia Couto sentenciou: “ele terá que morrer várias vezes, porque a vida dele está na obra”. Dialogando com Mia, responderia Márquez que “o que importa na vida não é o que acontece com você, mas o que você lembra e como você lembra”. Se a vida existe na invenção e na memória, há alguns meses García Márquez iniciava a decifrar os pergaminhos que encontrara pelos corredores do hospital na Cidade do México, assim como Aureliano Buendía um dia descobrira seu fim.

Arte: Bibiano Girard/revista o Viés

Quando acabou de decifrar os pergaminhos e percebeu que tudo o que estava escrito neles não se repetiria desde sempre e por todo o sempre, porque as estirpes condenadas a oitenta e sete anos de solidão não tinham uma segunda oportunidade sobre a terra, decidiu abanar aos jornalistas e cantarolar com eles como uma prova de admiração, deixando-nos de presente aquilo que havia de exercer uma influência decisiva sobre o futuro da aldeia mundo: um laboratório de alquimia literária. Depois dele, vieram tantos outros mais livres de amarras mundanas, como disse um dia Saramago, e a literatura aprendeu a levitar.
O amor do telegrafista Gabriel Elígio García, que construiu uma rede de comunicação capaz de alcançar seu amor, a moça Luiza Márquez, fez suportar os tempos duros do cólera. A história real dos pais do menino Gabriel, que no futuro viria a transformá-la em romance, acontecida às personagens Florentino Ariza e Fermina Ariza, dá uma ideia de como seus livros estão recheados, na verdade, de uma biografia dividida em dezenas de narrativas que ainda as temos como fantasiosas, mas que, no fundo, são genuinamente fantásticas.
García Márquez não escondia que suas duas mais célebres histórias surgiram principalmente a partir do que contaram seus velhos avós, com quem foi criado a ouvir histórias exóticas sobre rituais e lendas indígenas, por parte da avó, e sobre bravura viril de um combatente da guerra civil nas próprias memórias do avô. Não parece que tenha sido involuntária a escolha pelos três narradores de seu primeiro livro, “A revoada (O enterro do diabo)”, onde surge Macondo: um velho coronel, sua filha e o neto, ainda criança.
As cinzas de García Márquez, depois da saga passagem pela Cidade do México, expostas no Palácio de Bellas Artes, representam o lado delirante ainda existente entre as pessoas: a ilusão de um querer estar próximo, mesmo depois da morte. Além das despedidas do povo pelo qual sempre lutou – e bradou orgulho – , suas cinzas precisaram ser divididas, pois a primeira e a segunda pátria do escritor assim decidiram.
Um homem que fez um relato do mundo imerso na inventividade de fundar outra realidade mereceu láureas enquanto vivo, como o prêmio Nobel. O mundo já era um pavoroso redemoinho de poeira e escombros, centrifugado pela cólera do furacão bíblico, quando Gabriel pulou onze páginas para não perder tempo com fatos conhecidos demais. No dia 17 de abril, ninguém sabe a explicação, começou a chover flores amarelas por todo o planeta, e foi preciso varrer com pás as ruas e as calçadas para que o cortejo fúnebre pudesse passar.logo
 
Este é um texto de abertura para uma série especial sobre García Márquez e sua obra. Acompanhe a revista o Viés. 
A ÚLTIMA VIAGEM DE UM ESCRITOR FANTÁSTICO, pelo viés de Bibiano Girard

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