Na América, Ifemelu se descobriu negra

Chimamanda Ngozi Adichie, assim como a personagem Ifemelu, somente descobriu sua identidade negra quando pisou nos Estados Unidos. Créditos: Chris Boland/Flickr.

Foi em um dia ensolarado de julho que Ifemelu parou de forçar um sotaque que não tinha. O ultimato aconteceu logo após ouvir de um funcionário de telemarketing que sua voz soava tal qual uma norte-americana – nem parece que você mora há apenas três anos nos Estados Unidos! A frase do rapaz era em tom de elogio e os parabéns indicavam que a moça devia ter alcançado alguma vitória particular. Na verdade, serviram mais para irritá-la. Se não fosse pela decisão daquela manhã, Ifemelu voltaria à Nigéria como uma americanah.
O termo, quase um homônimo da língua portuguesa, é pejorativo: representa a adequação aos padrões americanos, bem como as consequências geradas a partir disso – afetações e maneirismos no sotaque, negação da língua nativa, mudança de costumes e hábitos. No romance de mesmo nome, escrito pela autora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, a palavra aparece pela primeira vez em referência a uma menina que viaja para os Estados Unidos. “Voltará uma tremenda americanah”, dizem suas amigas.
Ifemelu, a jovem que decide renegar o uso do sotaque americano, é a protagonista na obra de Adichie, lançada em 2013. Hibisco Roxo (2003) e Meio Sol Amarelo (2006) são os dois primeiros romances da autora, publicados no Brasil pela Companhia das Letras; o terceiro é um livro de contos de 2009, The Thing Around Your Neck, ainda inédito por aqui. Não demorou muito para que Americanah fosse reconhecido como um dos dez melhores livros do ano pela New York Times Book Review, além de vencer o prêmio National Book Critics Circle Award. O lançamento coincide com o auge na carreira de Chimamanda, cujos discursos sobre racismo e feminismo tornaram-se famosos mundo afora. Um deles, Sejamos Todos Feministas, foi lançado como eBook – na Suécia, o livro é distribuído gratuitamente desde dezembro de 2015 para adolescentes que estão no ensino médio.
Americanah não foi premiado à toa. O romance épico, com pouco mais de 500 páginas, é um livro assumidamente político. Trata-se de uma genealogia dos costumes das sociedades americana, britânica e nigeriana em suas mais variadas acepções: nas duas primeiras, o racismo é o ponto forte a ser discutido; no caso da terceira, as lembranças de Lagos, capital da Nigéria, e o estranhamento com que Ifemelu retorna ao país (invariavelmente, mais americanah do que desejava) após viver nos Estados Unidos por mais de uma década.
“A única história cria estereótipos, e o problema com estereótipos não é que eles sejam mentira, mas que eles sejam incompletos. Eles fazem uma história tornar-se a única história”. Créditos: TEDxTrondheim/Flickr.

Logo no começo, o leitor já está ciente de que Ifem mora em Princeton e está prestes a regressar ao seu país de origem. Subitamente, deixa para trás Blaine, o namorado que a fazia feliz, e uma vida relativamente estável que levava com seu blog, o Racenteeth ou Observações Diversas Sobre Negros Americanos (antigamente conhecidos como crioulos) Feitas Por uma Negra Não Americana. Na página, Ifemelu escrevia crônicas sobre situações em que presenciava casos de racismo, em um estilo permeado de humor e ironia. Ao longo do livro, é comum encontrarmos posts do blog fechando capítulos – alguns deles você pode conferir nessa resenha, em destaque.
O desenvolvimento de Americanah gira em torno dos motivos que fizeram Ifemelu voltar ao seu país. A idéia de sair dos Estados Unidos e retornar a Nigéria parece surreal para alguns personagens, especialmente as cabeleireiras africanas que acompanham a protagonista na primeira cena do livro. As razões para essa ação são apresentadas sem pressa: o andamento da narrativa se dá pela memória de Ifemelu, de forma não-linear. Isto porque o enredo é intercalado com a história de um segundo protagonista – Obinze, namorado de Ifem na época do ensino médio. Sua primeira aparição na trama acontece ao lado da esposa Kosi, em Lagos.
O romance juvenil entre os dois é o fio condutor de Americanah. Acompanhamos o primeiro beijo do casal, suas brigas, descobertas sexuais e a entrada na faculdade. Ambos se separam quando Ifemelu finalmente viaja aos Estados Unidos para concluir a faculdade – seu país de origem vive uma ditadura e as universidades estão em greve. É na despedida da Nigéria que entramos em um novo conflito: Ifemelu, ao chegar à tão proclamada terra da liberdade e das oportunidades, descobre que é negra.
Em entrevista, Chimamanda Adichie comenta que não pensava em si como negra até chegar aos Estados Unidos, tal qual sua personagem. Segundo a autora, questões raciais não são tão proeminentes na Nigéria. “Muitos leitores me dizem que não entendem o debate sobre esse tema nos Estados Unidos”. O país africano concentra suas discussões baseadas mais na etnia do que na raça. “Não temos tantas categorias, como branco, meio branco, meio negro”.  A descoberta da raça e de suas conseqüências baseadas em estereótipos causa certo estranhamento em Ifemelu – tanto quanto a maneira exótica como outros personagens a veem. Em um de seus posts, a personagem descreve o que chama de “tribalismo americano”, tentando entender por que um judeu sofre preconceitos no país se a sua pele é branca. “Quanto mais tempo você passar aqui, mais vai entender”, conclui.

Querido Negro Não Americano, quando você escolhe vir para os Estados Unidos, vira negro. Pare de argumentar. Pare de dizer que é jamaicano ou ganense. A América não liga. E daí se você não era negro no seu país? Está nos Estados Unidos agora. Nós todos temos nosso momento de iniciação na Sociedade dos Ex-Crioulos. O meu foi numa aula da faculdade, quando me pediram para dar a visão negra de algo, só que eu não tinha idéia do que aquilo significava. Então, simplesmente inventei.

Alguns dos casos mais simbólicos de racismo acontecem de forma sutil no universo de Americanah, embora o leitor perceba a maneira escancarada com que o preconceito se desvela graças à escrita bem humorada de Chimamanda, repleta de ironia. Quando Ifemelu acompanha sua amiga Ginika na compra de um vestido, ambas são atendidas por uma vendedora negra. No caixa, a funcionária deseja saber quem as atendeu, a fim de pagar a comissão: “Chelcy ou Jennifer?” – Ifemelu e Ginika não se lembram –; “Foi a de cabelo comprido?” – as duas tinham cabelo comprido –; “Foi a de cabelo preto?” – as duas tinham cabelo preto. Na saída da loja, Ifem questiona a amiga: “Por que ela não perguntou se tinha sido a negra ou a branca?”. “Porque aqui é a América. A gente tem que fingir que não nota certas coisas”.
A dificuldade em lidar com temas raciais é cristalizado na personagem Kimberly, chefe de Ifemelu no primeiro emprego como babá. Generosa e frágil, Kim vive utilizando o adjetivo “lindo” para designar homens e mulheres negras. No primeiro encontro com Ifem, pergunta qual o significado do seu nome, ao que a jovem responde não saber. “Amo nomes multiculturais”, diz a chefe, “porque eles têm significados maravilhosos de culturas maravilhosas e ricas”. O narrador acrescenta: “Kimberly estava dando o sorriso benevolente das pessoas que pensam que ‘cultura’ é uma propriedade estranha e pitoresca de pessoas pitorescas, uma palavra que sempre tinha de ser acompanhado do adjetivo ‘rica’. Ela jamais acharia que a Noruega tinha uma ‘cultura rica’”.
Ao longo da trama, Americanah não perde o humor certeiro de Adichie, embora seus temas fiquem cada vez mais pesados: a xenofobia que Obinze sofre na Inglaterra, a depressão de Ifemelu, tentativas de suicídio. Passamos também pelos novos relacionamentos da protagonista, como Curt, o namorado branco e rico que esbraveja a cada ato de racismo que vê, embora ele próprio não esteja livre de perpetuar seus vícios. A súbita paixão por Barack Obama também une Ifemelu a Blaine, o professor cercado de um círculo acadêmico de amizades. É com ele que a protagonista tem um relacionamento feliz – e é com ele que termina, logo no começo do enredo, para ir embora. Na volta para a Nigéria, o leitor poderá concluir se Ifemelu tornou-se uma americanah ou não.
Uma Nigéria de muitas histórias
“- Você não pode escrever um romance honesto sobre a questão racial neste país. (…) se você for escrever sobre raça, precisa ter certeza de que vai ser tão lírico e sutil que o leitor que não lê nas entrelinhas nem vai saber que aquilo é sobre raça.
– Ou arranje um escritor branco. Os escritores brancos podem ser francos em relação à questão racial e ser muito ativistas, porque a raiva deles não ameaça ninguém”.
A conversa entre duas personagens de Americanah exemplifica apenas uma das diversas áreas em que o racismo se manifesta: a literatura. Shan, irmã de Blaine, está prestes a publicar um livro e reclama com a amiga sobre a censura que sofre de seu editor. Duas das cenas presentes no manuscrito da escritora abordam casos evidentes de racismo. São situações tão flagrantes que o chefe de Shan pede mais “sutileza” e “nuance” no enredo – afinal, aqueles conflitos não podem ter como causa apenas a raça. Deve haver algo mais complexo para além disso, insinua o editor. Um romance não pode ser tão panfletário.
Felizmente, este não é o caso de Americanah: aqui, o racismo assume sem pudores o seu papel de protagonista na trama. O diálogo anterior, entre Shan e sua amiga, funciona como uma espécie de exercício metanarrativo proposto por Chimamanda– ou seja, a reflexão sobre o fazer literário no enredo do seu próprio livro. Essa situação é ponto-chave para compreendermos o cerne de Americanah na medida em que acompanhamos outro caso citado por Adichie, agora em uma fala proferida pela autora durante o evento TED Talks. Na palestra de 2009 – quatro anos antes do lançamento do romance -, a nigeriana ilustra com diversos casos o que chama de “o perigo de uma única história”. Em um deles, conta ter recebido críticas de um professor para um dos seus primeiros livros. O motivo seria a falta de uma “autenticidade africana”. “Minhas personagens dirigiam carros, elas não eram famintas”, diz Chimamanda, referindo-se ao que o professor lhe disse. “Por isso, elas não eram ‘autenticamente africanas’”.

Se estiver falando com uma pessoa que não for negra sobre alguma coisa racista que aconteceu com você, tome cuidado para não ser amargo. Não reclame. Diga que perdoou. Se for possível, conte a história de um jeito engraçado. E, principalmente, não demonstre raiva. Os negros não devem ter raiva do racismo. Se tiverem, ninguém vai sentir pena deles. Isso se aplica apenas a liberais brancos, aliás. Nem se incomode em falar de alguma coisa racista que aconteceu com você para um conservador branco. Porque esse conservador vai dizer que VOCÊ é o verdadeiro racista e sua boca vai ficar aberta de espanto.

Adichie alerta para o risco de nos tornarmos reféns de estereótipos, de narrativas únicas sobre determinados povos. Não à toa, essas histórias prevalecem dependendo de quem as conta – normalmente, os que detêm poder, seja na forma de classe, raça, etnia ou gênero. A narrativa que costumeiramente chega a nós, ocidentais, sobre o continente africano – a despeito da homogeneização sobre a África, ignorando particularidades de cada país – não condiz com pessoas de classe média que dirigem carros, como no romance de Chimamanda criticado pelo professor. Conhecemos apenas a fome e a selvageria desumanizada de um “outro” que sempre nos é estranho.
Evidentemente, não se trata de negar a existência de problemas sociais no continente africano, por exemplo. Em seu discurso, Adichie rapidamente argumenta que o problema dos estereótipos não reside no fato de que eles são mentirosos, mas incompletos. A insistência nas experiências negativas, reiteradas das mais diversas formas, torna superficial a leitura de um povo para quem não conhece as outras histórias que o compõe. Assim, as narrativas dominantes são tomadas como as únicas existentes – logo, verdadeiras, aplicadas a povos inteiros. Reduz suas histórias, apaga suas identidades.
Americanah situa-se entre dois extremos. Por um lado, é um romance assumidamente político – ou panfletário, como diria o editor de Shan, na tentativa de desmerecer uma obra por simplesmente tratar de racismo. O preconceito, aqui, aparece sem floreios, cru como a realidade. No entanto, o enredo do livro também traça outros caminhos – eles podem soar românticos ou demasiadamente presos ao cotidiano para os mais desavisados, embora demonstrem situações tão políticas quanto as postagens no blog de Ifemelu.
Essas diversas camadas que se sobrepõe aos conflitos da trama não estão construídas como uma forma de apagar, minimizar ou tornar mais tragável o horror de uma sociedade francamente racista. Chimamanda está preocupada em nos mostrar outras facetas: estamos tratando, afinal de contas, de uma história de amor (e a chave está aqui: sim, existe amor na Nigéria – a despeito da miséria, das ditaduras e de tantas outras narrativas reducionistas).
É por isso que as cenas corriqueiras de Americanah são tão importantes quanto as observações de Ifemelu sobre o comportamento doentio e racista de uma sociedade americana tentando se reconciliar com seu passado escravocrata. Não é à toa que Chimamanda dedica algumas páginas para falar de música nigeriana (Yori Yori é a trilha sonora das viagens de Ifem e Obinze), Nollywood (a indústria de cinema na Nigéria) ou o sistema educacional americano (“quando eu era da sua idade, já fazia divisões simples”, diz Ifemelu ao primo criado nos Estados Unidos). São observações nada triviais, colocadas com uma intenção clara: elas se traduzem na ideia de Chimamanda em representar as múltiplas histórias de um povo, evitando confiná-los apenas em uma única narrativa.

Nos Estados Unidos, o racismo existe, mas os racistas desapareceram. Os racistas pertencem ao passado. Os racistas são os brancos malvados de lábios finos que aparecem nos filmes sobre a era dos direitos civis. Esta é a questão: a maneira como o racismo se manifesta mudou, mas a linguagem, não. Então, se você nunca linchou alguém, não pode ser chamado de racista. Se não for um monstro sugador de sangue, não pode ser chamado de racista. Alguém tem de poder dizer que racistas não são monstros. São pessoas com famílias que as amam, pessoas normais que pagam impostos. Alguém tem de ter a função de decidir quem é racista e quem não é. Ou talvez esteja na hora de esquecer a palavra “racista”. Encontrar uma nova. Como Síndrome do Distúrbio Racial. E podemos ter categorias diferentes para quem sofre dessa síndrome: leve, mediana e aguda.

Mesmo o amor entre Ifemelu e Obinze não escapa de uma análise que contempla questões políticas. É ela quem toma a iniciativa do primeiro beijo, em uma cena memorável que flerta com o posicionamento feminista de Chimamanda:
“A gente não vai se beijar?”, perguntou ela.
Ele tomou um susto. “De onde veio isso?”.
“Só estou te perguntando. Estamos sentados aqui há tanto tempo”.
“Não quero que você pense que só quero isso”.
“E quanto ao que eu quero?”
Em 2015, Chimamanda foi convidada para discursar na formatura da universidade americana Wellesley (com tradução aqui). O término de sua fala lembrou aos estudantes “a coisa mais importante do mundo: o amor”. Adichie finaliza: “garotas são frequentemente criadas para entenderem o amor apenas como doação. (…) Mas amar é dar e também receber. Por favor, amem dando e recebendo”.
Assim como a trama de Americanah – em que nada é apenas aquilo que parece -, o fio condutor do romance entre Ifemelu e Obinze não é simplesmente uma história de amor. É uma história política. Sabemos que ambos estão apaixonados desde a adolescência. Mas, após um reencontro de mais de dez anos, a equação de “amar é dar e receber” ainda se mantém? A resposta de Chimamanda Ngozi Adichie é conhecida na última linha do romance, em uma frase nada singela e direta ao ponto, como deve ser. 
Na América, Ifemelu se descobriu negra, pelo viés de Dairan Paul.

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