SEU OSMAN, BARBUDINHO

PIM!

-Barbudinho!

-Fala, gurizadinha!

PIM!

-Barbudinho, onde está o Mariano?

-Não sei de nada, dona Maria! Não sei de nada!

PIM!

-Barbudinho! O Marianinho tá puto contigo!

PIM!

-Olha! Vão acabar descobrindo vocês! Isso vai acabar mal!

PIM!

-Já vêm vocês com esses cachorros sujar meu elevador.

PIM!

-Olha, Muller, as coisas não funcionam assim aqui, não!

PIM!

PIM!

PIM!

Hoje a maioria o chama de Seu Osman. Antigamente o chamavam de Barbudinho. O tempo passou pelas suas barbas, a embranqueceu, mas não lhe tirou o sorriso do rosto. Sorriso de dentes pequenos.

Osman Ramos Corrêa. O Seu Osman. Não me revela sua idade e nem cai nas pequenas armadilhas que tento deixar pelo caminho da nossa conversa. Diz-me que antes mesmo de eu nascer ele já conhecia esses truques. Mas claro que ele não fala isso de forma rude. Apenas me abre um grande sorriso que escondia os olhos negros entre as rugas da idade e me diz em tom brincalhão:

-Não sei minha idade! Esqueci!

Estamos no Café Cristal, onde o conheci numa roda de samba, em 2008. Falando nisso, o dia da entrevista era uma sexta-feira, dia de samba no Cristal. Talvez por isso hoje ele pareça tão mais animado. Seu Osman é um homem simples, mas de gostos refinados, e o samba é uma de suas paixões.

Seu Osman já estava bebendo seu Campari quando cheguei ao café. A cena me é familiar, visto que muitas e muitas vezes já o cumprimentara, trocara algumas palavras com ele, e sempre havia um copo com a bebida vermelha à sua frente. Vai ao Cristal diversas vezes por semana, desde a juventude. Pega ônibus na Vila Brasil, desce na parada da Rua Professor Braga, caminha algumas quadras e chega no bar perto das 20h. Seu lugar é logo abaixo de um porta-retrato um pouco empoeirado, em que está exposto um desenho de traços simples que lhe fizeram em 2006: o copo de Campari na mão, o cigarro no cinzeiro, a barba branca contrastando com a pele morena e o sorriso no rosto. Inconfundível.

Seu Osman se aposentou como assistente de administração, a última das funções que exerceu na Universidade Federal de Santa Maria, mas entrou na instituição por outra porta, a do elevador.

Mesmo tendo estudado para ser telegrafista na Escola Profissional Ferroviária, Osman prestou concurso público para ascensorista da universidade, numa época em que ela ainda se resumia ao prédio que hoje é conhecido como CCSH do centro ou como Antiga Reitoria. Ficou em terceiro lugar e havia três vagas a serem preenchidas.

Enquanto conversamos, o Cristal vai se enchendo aos poucos.

-O homem sabe fazer dinheiro – me diz Seu Osman, referindo-se ao Brasil, o dono do café.

-Faz muito tempo que o senhor vem aqui?

-Faz! Quando eu saia da reitoria vinha pra cá fazer um samba. Quando eu era pequeno já vinha no Cristal, mas na época em que ele era em outro endereço e eram outros donos. Nem sei por que eles continuaram com o mesmo nome.

Seu Osman conta então que todos o conheciam pelo apelido de Barbudinho. Os alunos, os professores, o reitor. Pergunto se ele e o Mariano da Rocha conversavam durante a rápida ida do térreo ao segundo andar, onde ficava a sala da reitoria. Com cara de quem sabe de muitos segredos, ele responde:

-O velhinho não era bobo. Às vezes se sumia por aquelas salas vazias. O velhinho que sabia o que era bom! A mulher do velhinho aparecia lá às vezes e me perguntava, “Barbudinho, cadê o Mariano?”

-E o senhor, o que respondia?

-Eu dizia “Não sei de nada, Dona Maria! Não sei de nada!”. Nunca dedurei ninguém.

Seu Osman era o ascensorista do elevador do final do corredor ao lado esquerdo de quem entra. Muitos que hoje têm seu nome conhecido na política, como Tarso Genro, Cezar Schirmer e Paulo Pimenta passavam diariamente pelo elevador do Barbudinho, enquanto eram estudantes. Isso na década de 70, em plena ditadura militar.

Seu Osman diz ter o ouvido treinado de telegrafista. Estava sempre atento ao que todos diziam, mesmo quando não falavam com ele. Logo, ele sabia de todas as manifestações e protestos com antecedência. Diz que certa vez sentiu muito medo, tinha certeza que “os homens” iam chegar à porta de sua casa, pra levá-lo pra um interrogatório. Mas eles nunca chegaram.

Durante a ditadura, Seu Osman disse que o Governo mandou um militar, Muller, (“Não ‘Miler’… ‘Muler’, mesmo, com U”) como secretário do Mariano da Rocha. O militar então passou a mandar e desmandar por lá, tentando implantar uma disciplina militar na universidade.

-Olha, Muller, as coisas não funcionam assim aqui, não! – Osman dizia para ele, em tom de quem fala verdades brincando.

Seu Osman chama Karen, a garçonete do Cristal, e pede outro Campari. Ainda há muita conversa pela frente.

-Agora vou contar uma história que tu não vai acreditar! Uma vez quase perdi meu emprego. Tinha um negão que trabalhava ali no andar térreo, na parte onde ficavam os cadáveres. Ainda existe aquele restaurante ali na entrada? Bem, era ali perto. Os alunos estavam cansados de pregar sustos no português que era dono do restaurante, sentando os cadáveres novos no restaurante do português. Bem. E esse negão, que até já morreu, uma vez me convidou pra ir num baile no Comercial. Eu não quis, claro, aquela época o Comercial não aceitava negros como a gente. Mas ele acabou me convencendo. Só que ele queria levar um cadáver junto. Ele era o responsável por passar formol nos cadáveres, tu sabe? Bem. Ele acabou me convencendo. Vestimos o morto, passamos talco e perfume nele e chamamos um carro da universidade pra nos levar pro baile. Só que quando o motorista viu claro que não deixou a gente entrar no carro. Então a gente chamou um táxi. Dissemos pro taxista que o nosso amigo tinha bebido demais, acho que o taxista não acreditou, mas no levou pro Comercial mesmo assim. Entramos no clube no meio de uma confusão, o segurança nem prestou muita atenção na gente. A gente sentou o cadáver, encostou a cabeça dele na mesa e colocou um copo na mão dele. Parecia que tava bêbado, mesmo. Aí cada vez um de nós ia dançar e o outro ficava fazendo companhia pro morto. Lá pelas tantas uma guriazinha me perguntou se meu amigo não dançava. Eu disse que ele só bebia. E ela “Mas eu não to vendo  ele beber, também”. Olha, gurizadinha, eu sei que lá pelas tantas um professor da universidade nos reconheceu e viu o morto. Quando eu vi ele vindo na nossa direção eu saí de perto, né. Não sou bobo. No outro dia eu, que sou muito fiel ao meu trabalho, disse pra minha mulher: “Hoje eu não vou trabalhar!”. ”Mas por quê, Osman? Tu não é de faltar ao trabalho”. Expliquei pra ela o que tinha acontecido de noite e ela me convenceu que era melhor eu ir pra saber no que ia dar. Chegando no prédio, tava aquele barulho todo e…

-Seu Osman, quanto tempo! Fiquei sabendo que o senhor teve no hospital esses tempos, é verdade? – perguntou uma mulher loira que entrara no bar e viera diretamente conversar com ele.

-É, guria! Mas não foi dessa vez, não! O Velho não me quer lá em cima ainda! Vaso ruim não quebra!

-Ahahah! É assim que se fala, Seu Osman.

Quando a mulher se afastou ele ainda ficou vendo ela com olhar perdido.

-Então, Seu Osman? O que aconteceu no final da história do cadáver?

-Ah, onde eu tinha parado? Bem. Vestimos o morto, passamos talco e perfume nele e chamamos um carro da universidade pra nos levar. Só que o motorista viu o que a gente tava aprontando, né!? Aí chamamos um táxi, o taxista fingiu que não tinha entendido o que a gente tava fazendo e nos levou pro Comercial. Aí lá no clube tinha um professor filho-da-mãe que nos viu, enquanto a gente tentava fazer o morto dançar.

-Sim, Seu Osman. Me lembro que o senhor já disse isso. Continue da parte em que o senhor chegou na universidade, na outra manhã.

-Ah, sim. Bem, cheguei e tava aquela confusão, só falavam nisso. Uma das mulheres da limpeza, muito amiga do Marianinho, o velhinho, não o filho, me disse na entrada. “Barbudinho! O Marianinho ta puto contigo! Quer que tu vá falar com o professor Fulano de Tal, agora.” Fui com a cabeça baixa pra sala do professor. Chegando lá ele me perguntou o que tinha acontecido e eu só dizia que não sabia de nada. Bem, o negão foi despedido. Ele que era o responsável pelos cadáveres, mesmo. Claro que abafaram essa história. Ninguém ficou sabendo.

Seu Osman me sorri. Neste dia ele está todo vestido de preto. Camiseta preta, calça social preta, sapato muito bem lustrado. O copo de Martini já está pela metade. Acende um cigarro, traga-o e em um instante seu rosto fica mais magro. Seu Osman tem os olhos apertados, de quem levou sua vida toda sorrindo. Diz-se negro, mas sua pele é mulata. As mãos são o que mais chamam atenção: mãos de telegrafista, dedos longos, com as falanges grossas e as pontas um tanto achatadas.

Duas semanas antes desta entrevista, todos sentiram sua falta no Café Cristal. Só depois ficaram sabendo que ele sentira-se mal no ônibus, a caminho do bar. Um conhecido seu o levara para o hospital, onde ficou algum tempo internado. Poucos dias após dar alta, já estava de volta ao Café Cristal.

-O que o senhor menos gostava da sua época de ascensorista?

-Os cachorros! O pessoal da Veterinária, do último andar, chegava com aqueles bichos de rua e entravam no meu elevador. Claro que eles sujavam tudo lá dentro, ficava um fedor e eu tinha que limpar. Eu via os alunos chegando com um e já dizia: “Já vêm vocês com esses cachorros sujar meu elevador”. Eles riam, claro. Tinha vez que eles chegavam com uns cachorros com as bolas desse tamanho – e faz um sinal com as mãos de dedos longos, mostrando o volume dos testículos inchados dos animais. – Claro que a maioria dos que subiam não desciam mais. Ficavam por lá mesmo.

-Mas o senhor chagava a brigar com os alunos? – perguntei.

-Não! Não sou de brigar! Só repreendia eles. Eu era muito amigo dos alunos. Claro que eu avisava eles. Essas coisas que estouraram hoje, na geração de vocês, já acontecia naquela época. Não, não adianta insistir. Não vou falar disso aqui. Mas acontecia e vocês sabem do que to falando! E também tinha aquelas gurias que me roubavam a chave da casa de máquinas do elevador, lá no alto e iam pra lá com os namorados.

-O senhor chegou a surpreender algum casal lá no alto? – indago, curioso.

-Claro! Aí eu dizia um “Oh, gurizadinha, como vocês me fazem isso?”. Mas claro que eles me pediam desculpas e saiam. Nunca deu problema. Nunca dedurei ninguém, também. Eu era amigos dos alunos. Vou te contar uma coisa: naquela época o vestibular era feito no Colégio Santamariense. E eram os funcionários que aplicavam as provas. Eu via que os alunos ficavam nervosos, coitados. Aí eu soprava pra turma. Sabe? Umas questões fáceis, mas eles ficavam tão nervosos. Eu sou o burro lá de casa, minha mulher é professora, tenho três filhos, uma é formada em educação física, outro é professor de geografia e o outro é militar e eu era só telegrafista. Mas mesmo assim, quando eu sabia as respostas, ajudava.

Seu Osman ri ao relembrar a história e parece que é assim que levou sua vida toda. Sua figura é a própria do malandro brasileiro, do sambista bem arrumado e mulherengo. A maior das suas diversões depois que saiu do elevador e foi para o topo do prédio, na sala do telegrafista, era ficar debruçado no parapeito olhando as “gurias que ficavam tomando banho só de maiô na piscina”. A piscina a que ele se refere é a do atual Museu Gama D’Eça e hoje encontra-se tomada por pastos.

Osman conta como passou de ascensorista à telegrafista:

-Olha, guri. Um professor descobriu que tinha sido colega do meu pai no quartel. Aí conversando eu disse pra ele que tinha curso de telegrafia, e ele abriu um sorrisão e me disse que estavam precisando de um telegrafista. Me passou de cargo, e eu nem queria. Eu queria continuar no elevador, sabe? Ficando lá em cima eu perdi o contato com os alunos, que eram a graça da universidade. Tanto que uma vez um professor disse que trabalhava só pelo dinheiro, por que pouco se importava pros alunos. Eu disse pra ele, “Mas como professor? Se não fosse os alunos o senhor não estaria aqui!”. Mas sabe. Lá na sala da telegrafia eu fiz uns amigos que vinham pro Cristal comigo, fazer samba. Acho que hoje eles já morreram. Lá em cima eu ficava recebendo mensagem de Manaus, Rio de Janeiro, Brasília… Os figurões, todos, amigos do Velhinho. Diziam coisas como “As coisas estão feias por aqui, estão apertando o cerco. Mas amanhã eu vou pescar com fulano”. Mas eu gostava mesmo era de viver com os alunos, gente jovem.

A entrevista é interrompida pelo samba, que finalmente começou. Seu Osman, sorrindo, começa a batucar na mesa e a cantar junto. O samba sempre foi uma de suas maiores paixões, tanto que foi um dos fundadores e Presidente da Escola de Samba Vila Brasil. Hoje, no entanto, estava totalmente afastado. Perguntado o porquê do desligamento, ele diz, com tristeza, que foi por brigas políticas. Queriam acabar com todo o trabalho social que a Escola fazia, e ele preferia não frequentá-la mais a vê-la perder tanto do seu significado.

-Sabe, eu escrevia sambas dentro do elevador. Mas não mostro pra ninguém, nem adianta pedir! Mas carrego o samba pra todo lado. Olha só.

Alcança-me um caderninho em que estão escritas as letras dos sambas que mais gosta de ouvir. Na primeira página, com a caligrafia bem desenhada de telegrafista, está escrito:

Cego é quem vê

Só até onde a vista alcança

Mandei meu dicionário às favas

Mudo é quem só se comunica com palavras

Se o dia nasce

Renasce o bamba

Se o dia morre

Revive o samba.

-Por favor, seu Osman, cante pelo menos um pedacinho de um samba seu! – peço.

-Não posso. Esqueci. – diz ele, abrindo um sorriso.

[Perfil escrito para a disciplina de Jornalismo Literário, no 1º semestre de 2009]

SEU OSMAN, BARBUDINHO, pelo viés de Felipe Severo

felipesevero@revistaovies.com

3 comentários em “SEU OSMAN, BARBUDINHO

  1. bonita narrativa. logo coloca o leitor na mesa ao lado com a impressão de também ouvir, como fosse para si, as histórias do seu osman…

  2. Muito boa a narrativa e a descrição de detalhes, me senti sentada, próxima ao Seu Osman, ouvindo suas histórias.

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